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Mário Pontes




O Cego, a viagem, o vôo

 


"...lança-te para cima, livre como o ar,
tornar-te-ás matéria de liberdade."
(Gaston Bachelard, L’Air et les Songes)



 

Meu pai, de profissão marceneiro, sabia fazer muitas coisas belas e boas, entre elas instrumentos musicais: violões, cavaquinhos, rabecas, bandurras. Certo dia — eu teria então cinco anos — parou à porta de sua oficina um homem alto e forte, chefiando uma pequena caravana. Um dos membros do grupo segurava-lhe a mão, guiando seus passos incertos pela rua esburacada. Os outros seguiam-no, e todos eram jovens, à exceção do próprio homem alto, cujo rosto começava a envelhecer. Ele se protegia do sol com um chapéu de abas largas, escondia os olhos atrás de vidros negros e, como os demais, trazia a tiracolo um instrumento musical. Quando meu pai perguntou com quem falava, o desconhecido respondeu numa voz que daria para ouvir-se a cem metros de distância:

— Com o Ceg'Aderaldo.
 

Tão forte a emoção se estampou no rosto de meu pai, ao se saber honrado com a visita do lendário cantador, que até eu, uma criança, pude notar sua perturbação. Aderaldo explicou que viera trazer-lhe uma rabeca para conserto: instrumento de estimação, presente já antigo de um admirador. Meu pai tomou carinhosamente a rabeca em suas mãos de artesão, examinou-a com olho crítico e prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance. Dias depois o cego veio apanhar o instrumento: e satisfeito por reencontrar a qualidade do som original, perguntou quanto devia pelo trabalho.

— Nada — respondeu meu pai.
 

Corno o cego insistisse, meu pai propôs que, em pagamento, fosse fazer uma cantoria na pequena fazenda, a uns 3O quilômetros da cidade, onde viviam sua mãe e vários dos seus irmãos, quase todos notavelmente dotados para a música. Aceita a forma de pagamento, para lá nos dirigimos, meu pai, eu, Aderaldo e sua pequena comitiva de músicos ambulantes. E de todas as viagens que fiz em minha vida, aquela foi a única realmente inesquecível: a que permaneceu não como uma viagem que foi, mas ainda é; não como uma lembrança, mas como um sonho que continua.

Íamos a cavalo, por uma estrada obediente aos caprichos do terreno, contornando colinas, estirando-se por várzeas arenosas. Cada vez que o caminho vencia uma elevação e desembocava numa pequena planície, os cavalos lançavam-se a galope. por puro gosto, por pura vontade de chegar ao término da viagem — e nessas ocasiões eu não podia despregar os olhos de Aderaldo. A princípio, por medo de que algum mal lhe sucedesse; depois, por simples deslumbramento. Andasse o cavalo como andasse, ele permanecia firme e elegante na sela — e mais que firme, indisfarçavelmente feliz com o vento a bater-lhe no rosto, a rapidez e o ritmo ondulante do galope.

Aliás, iam todos alegres: todos falavam, riam, contavam histórias, faziam piadas. E sempre que alguém dizia qualquer coisa que o cego julgasse interessante, suas palavras eram apanhadas como mote e imediatamente glosadas com improvisos. Aderaldo improvisou sobre muitas e muitas coisas: sobre o perfume dos imbuzeiros que ladeavam a estrada; sobre o pio assustado de aves que fugiam do tropel; sobre o seu chapéu que em determinado momento foi arrancado pela ventania e rolou muitos metros pela estrada — e quando a noite desceu, sem luar porém rica de milhares de estrelas, improvisou sobre a Via Láctea, que não podia ver, mas cujo curso, ele bem sabia, orientava a nossa caminhada.

Rindo, galopando e improvisando, Aderaldo era a imagem da liberdade. Decerto, estava acorrentado pelas cadeias de sua cegueira; mas, como Prometeu, era no alto de um monte a que fora acorrentado - muito acima de nós, lá onde não podíamos chegar, e tinha a cabeça erguida e os olhos da voltados para regiões ainda mais elevadas e de acesso ainda mais difícil. Nós, os que enxergávamos, tínhamos consciência da terra sob as patas dos nossos cavalos. Para ele, ao contrário, a terra não era uma prisão: quando o seu cavalo se lançava a galope era nos ares que galopava, era pelo altíssimo Caminho de São Tiago que galopava. E foi assim, quase fantástico, que eu o retive na memória.

O que retive na memória, do visto naquela viagem, creio agora que foi a própria encarnação da poesia do povo nordestino. Essa poesia pode, naturalmente, ser pensada de muitos ângulos; mas para o que no momento me interessa, importa constatar, antes de tudo, que para a ela a terra também é estranha, a terra como símbolo de imobilidade, de duro realismo, de rigidez falsamente racional. Como Aderaldo, ela pode ser cega, mas é num corcel fogoso que cavalga, um corcel cuja marcha normal é o galope disparado.

Eu diria, pois, que ela é sobretudo uma poesia do movimento. Poesia da viagem. E do vôo.

Nada é estático na poesia dos Aderaldos. Tudo nela é dinâmico, em particular a narrativa, que freqüentemente se move em ziguezague, tomando por veredas e caminhos secundários, num alegre desconhecimento — eu ia dizer: desprezo — das estradas reais da coerência.

Muitas vezes, o começo do poema é a captação de um movimento já em curso:

Quando Jesus e São Pedro
pelo mundo viajaram
em casa de um ferreiro
uma tarde eles chegaram...
(Francisco Sales Areda: Jesus, São Pedro e o Ferreiro da Maldição)
 

Em outros, o próprio poema dá início ao movimento:

Para me certificar
da Morte de Lampião
arrumei o matulão
andei para me acabar...
(José Pacheco: O grande Debate de Lampião com São Pedro)

 

Se a Primeira estrofe é uma introdução, uma sinopse da história ou unia "invocação às musas", o movimento virá na estrofe seguinte:

Tudo se deu com um moço
do Rio Grande do Norte
que foi para o Amazonas
para melhorar de sorte...
(Manoel Camilo dos Santos. São Francisco do Caníndé, um Grande Milagre)
 

Mesmo quando o poema obedece (casualmente, é certo) às clássicas unidades de tempo, lugar e ação, a força que dispara é movimento anterior, e freqüentemente o final é apenas o descer do pano sobre um movimento que continua. Uma peleja entre contadores parece à primeira vista estática: apresenta-nos duas pessoas sentadas, uma diante da outra, a dedilhar violas e fazer improvisos. Mas ainda que consideremos apenas esse aspecto exterior, a peleja será simples pausa de um movimento que chegou até aqui e que prosseguirá não se sabe onde. Nem Riachão nem o Negro com quem trava o seu famoso duelo eram de Assu; estavam apenas de passagem pela cidade onde se deu o encontro. No folheto em que narra sua peleja com Zé Pretinho (real ou imaginária, não importa) Aderaldo começa por informar:

Um dia determinei
a sair do Quixadá
fui até ao Piauí ver
os cantores de lá.

 

Severino Milanez não é de Floresta, e também não é de lá o seu adversário Manoel Raymundo; Severino Simeão e Ana Roxinha não são de Petrolina, onde se batem; Severino Borges e a Negra Furacão vieram de longe para cantar no município de Bom Jardim. E assim em todas as pelejas. Terminado o desafio, os cantadores põem o pé no caminho e vão em busca de nova aventura, que este é o seu destino de menestréis: mover-se.
E que dizer da dinâmica interna da peleja? Para bem compará-la, seria necessário evocar a tempestade. O seu começo é, em geral, lento e quase frio. com os dois cantadores fazendo as "louvações" de estilo, exaltando as virtudes do dono da casa que os acolheu, as virtudes e a beleza da senhora e suas filhas, a amabilidade dos espectadores que vieram de longe para vê-los, ouvi-los, aplaudi-los, decorar seus versos e repeti-los pelo sertão afora, num movimento de expansão circular do ato criador. Em dado momento, cessa o capítulo dos louvores e um dos dois julga chegada a hora da provocação. Atirada a luva, o adversário se agita, agita-se o público, um arrepio nervoso percorre as cordas das violas. A cantoria sobe de temperatura, vai ganhando um novo ritmo. Antes que os ouvintes tenham tempo de habituar-se a essa segunda velocidade do vento poético, uma terceira é inaugurada - salta-se da meia-quadra para o quadrão, deste para o beira-mar, formas progressivamente mais complicadas de poesia — e assim até a peleja adquirir características de furacão, resolvendo-se não com um lento retorno à calmaria, mas com o súbito e necessário naufrágio de um dos contendores.

Poesia da viagem. O Camões de Severino G. de Oliveira (As Perguntas do Rei e as Respostas de Camões) aos sete anos de idade:

Começou a viajar
pelo mundo abertamente...
 

e é por isso que se transforma num sábio, capaz de conhecer o passado das pessoas e até de profetizar o seu futuro. Certas pelejas, como a de Manoel Xudu versus Severino Pereira e a de Zé Monteiro versus Cachimbinho, são verdadeiros tratados de Geografia (arrevesada e incorreta, é verdade) através dos quais se expressa o anseio de conhecer todos os acidentes e conviver com todos os povos. E como ocorre nas pelejas, nos romances também não há fronteiras, as histórias se passam nos lugares mais distantes e exóticos — O Pavão Misterioso, na Grécia; o drama de Aprígio Coutinho e Neusa, no Japão.

É viajando que o poeta vem a saber dos casos e conhecer aqueles que os viveram:

Tenho visto muitas coisas
nesta vida de ambulante
e vendendo meus folhetos
já tenho andado bastante.
(José João dos Santos, Azulão: Os Matutos na Feira)

O homem quando vigia
sempre encontra presepadas...
(Manoel de Assis Campina: Discussão de um Fiscal com uma Fateira)

E viajando este mês
pela linha do Agreste
fui parar numa feira...
(Vicente Vitorino: Discussão de um Crente com um Cachaceiro)

 

Todo personagem importante do romance de cordel está partindo ou chegando. A ação sempre dispersa os atores ou, como um catalisador, os atrai para o centro do drama. A celebridade do boi do coronel Sesinando (O Boi Misterioso, de Leandro Gomes de Barros) traz à sua fazenda vaqueiros dos mais distantes lugares. Um deles vem de Minas Gerais, o que, considerando-se os meios de comunicação e os sistemas de transporte da época em que se passa a história (início do século XIX) é quase uma odisséia, dois mil quilômetros de distância. Mas não tinha aventura impossível para a imaginação do poeta, que, como o próprio boi por ele criado, não admite peias nem currais.

Viajar é preciso. Para saber e agir é preciso viajar. Os próprios espíritos, quando querem comunicar-se entre si, deslocam-se de suas moradas. Para falar com Deus, o Diabo é obrigado a sair dos "antros negros da terra" e viajar até às alturas. Trata-se, certamente, de uma viagem longa e cansativa, pois só de tempos em tempos a empreende:

Em quarenta o Satanás
foi ao céu ligeiramente
do que havia no mundo
ele a Cristo fez ciente
e agora resolveu
fazer queixa novamente
 

informa José Vila-Nova em Segunda Queixa de Satanás a Cristo, escrita muitos anos depois da primeira.

Viagens com as mais diferentes finalidades, ou mesmo,sem finalidade. Viagens iniciatórias, muitas vezes, plenas de peripécias e dificuldades, de perigos e obstáculos que se ,avolumam à medida em que o herói se aproxima de seu destino. onde o esperam, finalmente, o amor, a felicidade ou o conhecimento. Viagens para a liberdade, quantas! Raptos de donzelas que são perseguidas pelo pai tirânico, destinado no final a ser humilhado em seu orgulho (p. ex., Mariquinha e José de Souza Leão). Bem sucedidas fugas de heróis solitários e sempre nômades, que conseguiram derrotar, com inteligência e bravura, a força de latifundiários malvados (p. ex., Zé Mendonça, o Sertanejo Valente) Fugas desesperadas de.jovens amorosos, contra os quais se levanta não apenas o ódio dos homens, mas também a fúria dos elementos, transformando longo trecho de sua vidas em uma luta constante com a morte (p. ex., as intermináveis peripécias de Aprígio e de Alonso).

Viagens por terra, a pé, a cavalo. em veículos antigos ou modernos; lentas. com paradas freqüentes, ou às carreiras, em disputa com o tempo sempre inimigo da integridade física e da liberdade do herói. Viagens por mar, entre portos de um mesmo país da terra natal ao estrangeiro, do lar ao exílio, dos campos aos campos da guerra, do familiar ao exótico, do certo ao duvidoso, do aqui ao fim do inundo, do presente ao passado do longínquo ao futuro. Viagens às montanhas, ascensão aos lugares elevados, onde está a salvação e às vezes a realização do senhor. Como voam os personagens do romance de cordel! Com que facilidade e prazer os seus corpos se libertam do peso da gravidade.

Poesia do vôo, portanto. Quase obcecados pelo vôo, eles usam de todos os recursos para se elevarem acima da terra e se deslocarem com rapidez através das distâncias, por maiores que sejam. Voam escanchados no dorso de pássaros, como João Cambadinho na última etapa de sua longa peregrinação em busca do Reino do Miramar, onde o aguarda uma princesa que prometeu ser sua mulher. Cambadinho, que apesar de sua ignorância de pastor de cabras aspira as alturas e estremece de alegria ao ver montes azuis no horizonte., pois sabe que eles representam a luz e e são a morada natural daqueles que podem voar.

Não havendo pássaros de carne e de penas, os heróis recorrem à habilidade dos mecânicos e voam com o auxílio de máquinas engenhosas. Tão engenhosas. às vezes. que apesar de criados há dezenas de anos por poetas semi-analfabetos até hoje não puderam ser de fato construídos pelos técnicos em aeronáutica. Como o já referido pavão de João Martins de Athayde:

que levantou vôo da Grécia
com um rapaz corajoso
raptando uma condessa
filha de um conde orgulhoso.

 

Belo pássaro de metal, que além do inusitado da forma tinha toda uma série de vantagens sobre os aviões convencionais: era movido a eletricidade, não fazia ruído, não trepidava, podia ser desarmado com um simples toque de botão, decolava verticalmente, descia com suavidade no teto de uma casa qualquer, era rápido como uma flecha e

voava igual ao vento
para qualquer direção.
 

E se não houver aeronaves fantásticas? E se não for possível construir uma com a leveza do alumínio? Nem por isso o herói deixará de voar. Tudo o que ele necessita é de uma rica, poderosa e ardente imaginação, pois esta se encarregará alegremente de prover o transporte para qualquer tipo de viagem. Para ter a certeza da morte de Lampião, José Pacheco percorre as sete partes do mundo, e chegando à conclusão de que o cangaceiro já não se encontra na face da Terra, solta as asas da criatividade a fim de continuar a busca:

... atravessei os mares
montado em um planeta
que ao som de uma trombeta
vinha descendo dos ares
visitando aqueles ares
terra de santos e fadas...
(O Grande Debate de Lampião com São Pedro)
 

Por meios e caminhos semelhantes, José Camilo dos Santos voou até a sua ilha da felicidade, o País de São Saruê, aonde o manda Mestre Pensamento. Para lá chegar, o poeta viaja sucessivamente no "carro da brisa", no "carro do mormaço" e nas costas da "neve fria". É voando que se pode chegar ao lugar onde rompe a "nova aurora".

Poesia do movimento, da viagem, do vôo. Poesia da imaginação sem travas e sem fronteiras. Poesia da liberdade, apesar de tudo o que se opõe à liberdade. Presa pelas cadeias da cegueira, da pobreza, do analfabetismo, das superstições, do preconceitos — é certo, mas não a um rochedo imóvel e sem vida, e sim ao lombo de um cavalo fogoso, cuja marcha normal é o galope e cujo roteiro preferido é o altíssimo Caminho de São Tiago.

 



Ceg'Aderaldo
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