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Mário Pontes


 

A presença do mal
 

 

Jornal do Brasil

27.08.2005
 

 

Lúcio Cardoso, que tem títulos reeditados, é um dos poucos ficcionistas brasileiros cuja obra encerra uma filosofia

 

Entre os muitos livros de ficção publicados cada ano, poucos continuam a ser lidos e, sobretudo, a atrair novos leitores. Em nossa literatura, Crônica da casa assassinada é uma dessas exceções. Integra a minoria de obras que, embora de leitura pontuada por obstáculos, não tropeça na posteridade. Uma sexta edição, comemorativa do 40º aniversário do seu aparecimento, motiva a reedição pela Civilização Brasileira de quase todos os outros títulos da ficção de Lúcio Cardoso (1912-1968). Mas, embora digno de nota em termos editoriais, a possibilidade de reencontro com a maior parte dos romances e novelas de Lúcio Cardoso não parece ter trazido muitas contribuições à sua fortuna crítica. Afora uns recentes e contados estudos acadêmicos - inspirados mas um pouco desnorteados pelo excesso de teorias nas quais o romancista deve se encaixar -, o fato geral é que a vontade de examinar a obra de Lúcio parece ter estagnado após os muitos artigos e resenhas - na maioria ricamente adjetivados e escassamente analíticos - que saudaram o surgimento, no já remoto ano de 1959, da Crônica da casa assassinada.

Essa longa Crônica foi o fecho de uma trajetória de criação ficcional, cujos primeiros passos datam do final da década de 1920. O resultado mais conhecido dos esforços criativos do adolescente Lúcio Cardoso foi uma peça de teatro, Reduto dos deuses. O ficcionista apareceria em 1934, aos 22 anos de idade, com Maleita. Tratava-se de um romance cuja ação decorria no final do século 19, e testemunhos dão conta de que em seu protagonista há muitas reminiscências do pai do escritor. Lúcio conta o desbravamento e a ocupação de uma faixa de terra pertencente à bacia mineira do Rio São Francisco. A temática de Maleita não é estranha, pois, àquela linhagem romanesca que se firmara em 1924 com Tigipió, do cearense Herman Lima, e muitos títulos depois ainda se mostraria vigorosa com Cascalho, do baiano Herberto Sales. Incorporava elementos do modernismo, logo assinalados pelos críticos. Mas sob vários aspectos - escassez de humor, realismo paisagístico, precisão nos quadros de costume, o ar de saga que envolve os passos do protagonista e outros - o romance distinguia-se das ficções produzidas pelos participantes ou seguidores do movimento de 1922.

Ao livro inaugural seguiu-se Salgueiro, ainda por reeditar. E a este um terceiro romance, A luz no subsolo, marco da guinada que, em definitivo, afastaria do realismo a ficção de Lúcio Cardoso e a levaria a planos cada vez mais profundos do labiríntico e nevoento mapa das almas. O romance também deixava clara a identificação do autor com a ficção católica, que florescia na Europa e cujas sementes começavam a ser plantadas do lado de cá do Atlântico. As preocupações da maioria dos autores católicos da época eram menos estéticas do que ideológicas, como o próprio Lúcio reconhece em seu Diário. Obras de Bloy, Bernanos, Julien Greene eram barreiras destinadas a deter a vaga de materialismo que se espraiava sobre a cultura do século 20. Relato da destruição infernal de um mundo familiar que se torna insuportável, A luz do subsolo é também um desses campos de batalha. O romance da virada literária de Lúcio Cardoso foi sucedido por várias novelas, que o seguiam de perto em sua temática: O desconhecido, Mãos vazias, Inácio, O enfeitiçado e Baltazar. Em algumas, os cenários eram quase os mesmos de A luz do subsolo. Em outros, a ação (sempre escassa de fatos ocorridos à luz do dia) deslocava-se para o Rio, cujo ambiente não contribuiria para que os condenados deixassem de remoer o velho ódio, viver a experiência de sentirem-se barrados pela impossibilidade de amar, debater-se na constante atração pela obscuridade.

Embora em termos de conteúdo pouco se distanciasse dos livros anteriores, A crônica da casa assassinada surpreendeu antes de tudo pelo seu fôlego, e também pelo uso apropriado e coerente de vários instrumentos narrativos, cada um deles a cargo de um narrador diferente. Enquanto viaja a passo de camelo por uma trilha escura, à margem da qual se sucedem os sinais de desvios psicológicos e conflitos de natureza moral, o leitor testemunha a demorada queda da casa dos Menezes, tradicional família mineira - esse reduto de dominação e violência discreta que o autor fazia questão de atacar sem piedade.

Quer se desenrolem contra um pano de fundo rural ou urbano, as ficções de Lúcio Cardoso, a partir de A luz no subsolo, podem ser referidas, na essência, como uma longa e ininterrupta tentativa de conscientização, localização, descrição e diagnostico da presença do Mal que habita os subterrâneos da existência humana. Mas, embora a convocação do Mal provoque desespero nos personagens e ansiedade no leitor, o romancista escreverá milhares de palavras antes de chegar a algo que possa ser considerado conclusivo. Também não deixará qualquer pista segura sobre a origem do Mal. É ele congênito? Alcança a todos? Poupa um pequeno número de escolhidos? Desencadeou-se a partir de uma escolha? Alimenta-se de um modelo de vida?

A luz no subsolo está sempre em fuga, negando-se a iluminar a narrativa e permitir que ela responda às indagações sugeridas. Chega, no entanto, o momento no qual um dos personagens que vagueiam pelo subterrâneos sente inscrever-se no coração estas palavras: ''... existe uma realidade que não vive em nós, senão de maneira incompleta... Assim como existem outras que não vivem absolutamente... Estamos envolvidos pelas trevas mais densas - a realidade não é a realidade -, premidos num subsolo, nós não a podemos ver senão de um modo arbitrário e confuso...''. Mas, apesar de uma certa semelhança das palavras, essa passagem, especialmente sua última frase, não é metafórica. É afirmação direta, que leva a outra: ''...o que nós sentimos, essa inquietação e essa angústia do sobrenatural, é o vago desejo da unidade, a nostalgia de um todo partido...''. E esta, a outra que não resolve o problema, mas fecha o círculo novamente: ''...se não existisse o mal da treva também não poderia haver subterrâneo''.

Em todo o ciclo romanesco de Lúcio Cardoso, a única resposta explícita às perguntas que ele mesmo libera só virá no final da Crônica da casa assassinada. O capítulo com o qual o romance termina reproduz uma carta do padre Justino. Começa com afirmação esperançosa: ''...a última das coisas a que o Todo-Poderoso não nega seu beneplácito é a eclosão da verdade''. À qual, linhas depois, segue-se um diagnóstico: ''Tantos de nós confundem Deus com a idéia do bem''. Ou seja, preferem conceber Deus como um conceito de que já se ocupavam filósofos da Antigüidade, a aceitá-lo como o Deus da ''tempestade, não da calma''. Em termos filosóficos contemporâneos, poderia sugerir o desejo de um retorno à experiência religiosa primária, de tradução em termos de racionalidade.

Quanto à possibilidade de escapar do subterrâneo, a resposta não está em nenhuma passagem da ficção, e sim no Diário do escritor, e traz a marca agostiniana: ''E só aqueles a quem Deus elegeu com o esplendor de sua Graça podem, sem trair e sem pecar, comprometer o máximo amor na fé mais extrema. Na fé absoluta''.

Diante de suas muitas sugestões e referências a problemas sobre a existência e seus desdobramentos é no mínimo curioso que depois de A luz no subsolo, mas principalmente após a Crônica da casa assassinada, os críticos não tenham ousado destrinchar a obra do romancista a fim de analisá-los no contexto. Em vez disso, o que aconteceu foi uma espécie de estabilização, de quase unificação de julgamentos. Temos uma variedade de rótulos para uma visível semelhança de conteúdos. Todos disseram mais ou menos o mesmo. Além de terem proclamado Lúcio Cardoso um mestre da ficção, assinalaram que ele representou a reação ao romance fotográfico, foi um irredutível intimista, um agudo psicólogo, um parceiro dos escritores católicos europeus, um herdeiro dos romancistas-toupeiras do início do século 20. Mas nem os que o declararam discípulo de Dostoievski propuseram-se a fazer aquilo que os críticos russos fizeram, na primeira hora, com o mestre de Crime e castigo e O Idiota: colheram e destilaram a filosofia presente na seiva de suas narrativas inquietantes, às vezes caótica. E o que encontraram? Uma filosofia que começa pelo Outro e deságua no estuário da Liberdade.

Lúcio Cardoso não é o Dostoievski brasileiro. Seu intimismo leva a uma espécie de paralisia da ação, enquanto o fato de buscar lá embaixo não impede que os personagens de Dostoievski vivam em constante estado de peripécia. As criaturas dostoievskianas dialogam, as de Lúcio Cardoso falam por turnos. E ao contrário das que foram criadas pelo romancista de O Idiota, as do redator da Crônica quase só vêem o Outro no espelho deformado de seus egos. Mas, agrade-nos ou não, Lúcio Cardoso é um dos poucos ficcionistas brasileiros cuja obra encerra uma filosofia. Dará trabalho separá-la daquilo que a esconde do nosso olhar, reconstruí-la. Mas é inevitável que algum dia alguém se disponha a fazê-lo. De preferência antes que chegue a hora de celebrar mais 40 anos de existência da Crônica.

 

Lúcio Cardoso

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07.04.2006