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Mario Sabino


 


A utopia dissecada

(Veja On-line, Edição 1919, 24 de agosto de 2005)




Em Um Amor Anarquista, Miguel Sanches Neto mostra por que é o melhor autor da sua geração


 

O paranaense Miguel Sanches Neto não é badalado pelos editores dos cadernos culturais, não faz parte de panelinhas literárias, não tem lobistas na universidade, não reivindica financiamento estatal nem posa de injustiçado pelas "elites intelectuais". Não bastassem essas qualidades (grandes qualidades, enfatize-se), ele é um ótimo escritor. O melhor da sua geração. Ao contrário dos seus pares, Miguel Sanches Neto não escreve croniquetas que, sob o disfarce de uma linguagem aparentemente experimental, são vendidas como contos ou romances. Ao contrário dos seus pares, ele tem algo a dizer, como prova o seu livro Um Amor Anarquista (Record; 250 páginas; 29,90 reais).

As ilusões que recheiam a experiência humana constituem o assunto de Miguel Sanches Neto. No seu novo romance, ele parte de um episódio real para desenvolvê-lo mais uma vez: a criação da Colônia Santa Cecília, no interior do Paraná, na última década do século XIX. Seus fundadores foram anarquistas italianos, que fugiram da miséria e da repressão política em seu país. Eles sonhavam implantar no Brasil o paraíso do socialismo utópico, para usar a ultrapassada definição marxista – uma comunidade sem propriedade privada, sem hierarquia de qualquer espécie e que também abolisse a família nuclear e a fidelidade conjugal, duas concepções vistas como intrínsecas à sociedade e moral burguesas. "Numa colônia em que sempre foram raras as mulheres solteiras, o amor livre é necessário para que a comunidade cresça dentro de seu espírito libertário, superando a organização familiar, na qual o homem faz as vezes de figura odiosa do patrão", explica o protagonista Giovanni Rossi.

No cotidiano paupérrimo e de trabalho duro da colônia, as quimeras anarcossocialistas vão-se decompondo por obra da mesquinhez, do egoísmo, da inveja, do ciúme e da percepção de que tudo aquilo, afinal de contas, não passa de romantismo com sinais trocados. Rossi é centro de um círculo ideológico que não se fecha e ângulo mais aberto de triângulos amorosos que não se querem como tal. A desagregação do experimento é narrada de maneira seca, numa prosa em que as descrições do dia-a-dia dos colonos e a parcimônia no uso de adjetivos realçam a aspereza da paisagem exterior e também das interiores – as das almas.

Um Amor Anarquista é um belo romance, escrito por um autor que teve de superar obstáculos imensos para seguir sua vocação. Filho de pai analfabeto e mãe costureira, Miguel Sanches Neto, hoje com 40 anos, cresceu sob um padrasto que odiava livros. Na juventude, ele chegou a penar como trabalhador escravo numa fazenda de soja em Rondonópolis, onde fez as vezes de cozinheiro e montador de silos. De um ambiente de pobreza, ignorância, ferocidade e esqualidez existencial, nasceu um escritor – e um homem – que jamais caiu na tentação da autocomplacência. Essa é outra qualidade de Miguel Sanches Neto. Mas não de um certo presidente da República.

 

O amor livre e o banimento da família

"Eu havia conhecido Adele em novembro de 1891, na Itália, quando falava do amor livre, da necessidade de mudança nos relacionamentos, só quando a mulher não pertencesse a ninguém e os filhos fossem não de um pai, mas da comunidade, a noção de família estaria banida. Falava entusiasmado, idealizava bastante, e no final, quando conversava com algumas pessoas, contando as novidades da Colônia, ia muito bem mas ainda faltavam mulheres, que se aventuram menos do que os homens, ela se aproximou e, levando-me a um canto do salão, disse que concordava comigo, a mulher não podia se prender a nenhum homem, devia querer bem a todos; ao querer bem a uma pessoa, o sexo com ela é mais legítimo do que com o cônjuge; no casamento, o sentido da obrigação anula o desejo."

Trecho de Um Amor Anarquista


 



Miguel Sanches Neto, 2002
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27/01/2006