Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

 

Maurício Matos


 


O futebol e a adversativa


 


 

Menino brasileiro que não sabe jogar bola tem uma parte da infância mutilada. Lembro-me de um, que de tão ruim nem para goleiro servia. Quando os dois craques do colégio tiravam a sorte para saber quem começaria a escolher os jogadores, este menino já sabia que, sem dúvida, iria para o time de quem perdesse no par ou ímpar, com a seguinte observação: “fica na zaga e, quando vier a bola, chuta com força em qualquer direção”. Um outro sempre comentava rindo: “cuidado com o calcanhar para não fazer gol contra”. Era humilhante. Apesar disso, o menino adorava jogar bola. Humilde, ficava ali na defesa, quieto e atento. Quando vinha a bola em sua direção, sacudia o corpo desproporcional em direção a ela e chutava... as pernas do atacante, o chão, muitas vezes o ar e, muito raramente, a bola, que saía com (d)efeito para as direções mais diversas. O objetivo maior era se desvencilhar o mais rápido possível da pelota para evitar o uníssono refrão: “Pereba!”. A falta de coordenação motora parecia um deus perneta que insistia em sacanear o menino, possuindo o “professor” decadente de educação física. Ainda assim, ele gostava de futebol.

Como há em tudo uma adversativa, um dia este deus se atrapalhou com seus próprios desígnios. Tudo como sempre: estava o menino na zaga, chutando vento, pernas de atacantes, o chão. O jogo estava empatado em zero a zero. Era o último minuto da última partida de uma melhor de três, que também estava empatada. O “professor”, louco para fumar um cigarro, caminhava em nossa direção para acabar com a brincadeira. Ele nos odiava, mas não era sua a culpa. Havia um deus insano dentro de cada professor daquele colégio. Quando este deus abandonava seus corpos, eram sumariamente demitidos pelos padres que, por sua vez, viviam todos possuídos por um único demônio: o poder. A muitos destes padres sucederam coisas terríveis que jamais foram explicadas, mas cuja origem, nós, as vítimas, perdão, os alunos, conhecíamos muito bem. Naturalmente, as meninas eram sacaneadas de outras formas, já que todos os padres eram homens... Diziam que algumas gostavam, e nunca vi uma ser reprovada.

Pois vinha o “professor” com uma nuvenzinha negra sobre a cabeça, e um deus misterioso dentro dela, desesperado para terminar a “aula” e se esconder com seu cigarro. O jogo empatado em zero a zero, o menino na zaga, atrás dele o goleiro e, vindo em sua direção, o atacante correndo com a bola. O menino recuou instintivamente para a entrada da área. Daquela vez, o espírito maligno dos padres pousou sobre ele e, ao invés de mirar a bola, concentrou-se nas pernas do adversário. O atacante ria. O gol e a vitória eram certos. Fez uma graça e... bomba: o menino errou as pernas do adversário e acertou (quem diria?) a bola. Tudo naquele momento foi paralisado: o “professor” se esqueceu do cigarro e observou estupefato a trajetória da pelota sem acreditar no que via. Assim, também, os outros meninos. Tudo paralisado, até o tempo. A bola atravessou o campo, num gigante lençol em curva, como que levada pelas mãos de um deus adversativo, encobriu os dois times inteiros, o goleiro adversário não acreditou e, quando viu... no ângulo superior esquerdo da trave, caía a bola, sem possibilidades de defesa. Um a zero e fim de jogo.

O menino também não acreditava: tinha feito um gol, um golaço, coisa que nunca imaginaria vir a fazer e, de fato, jamais faria novamente. Vieram em sua direção, carregaram-no, festejaram. Depois, tudo voltou ao normal.

Confesso que não sei se isso realmente aconteceu, mas venho repetindo esta história desde os meus onze ou doze anos. Não preciso dizer: o menino era eu.

 


Mauricio Matos
(10.04.2006)

 

 

 


 

11/04/2006