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Maurício Matos

m.matosrj@globo.com

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Contos:


Fortuna crítica: 


Alguma notícia do autor:

 


Foto de Gustavo Matos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leonardo da Vinci, Embrião

 

José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Maurício Matos



 

Bio-Bibliografia


 

Mauricio Matos (Rio de Janeiro, 1973). Jornalista, poeta, ensaísta. Tem poemas e ensaios publicados em periódicos especializados no Brasil e em Portugal.

Atualmente, maio de 2003, é Professor Universitário de Literatura e Comunicação, enquanto termina o doutorado em Literatura Portuguesa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Maurício Matos


Fantasmagória

 

Vivo no gume abstracto em que perdidos

os fantasmas embatem, nas areias

da madrugada errantes procurando

a fronteira que os mata

                                                    Gastão Cruz

Acorrentado ao tronco do sistema, revivo senzalas inteiras entre as paredes brancas desta casa grande. Com as costas já em carne viva, e moscas à minha volta, entre uma e outra chibatada todavia, me aprofundo alforriado, pensamento a dentro, à zona do baixo meretrício, na rua sotero dos reis. E como o cristo de joãozinho trinta coberto por sacos de lixo: latino americano, percussivamente, me apresento. Laroiê.

*          *           *  

Sinto no metal deste piercing as armas de ogum aiê, com seus dentes de ferro, segundo o efeito, guerrilheiro e grave, das noventa miligramas de remeron, a tornar-me o que sou, diferente de mim. Metade deus, metade bicho, eu pré-socrático, invertebrado como a noite adentro, percebo-me palavra, por intermédio das articulações da fala. Quando um e agora josé se transforma num ser ou não ser, sinto-me o verbo de um elo, perdido entre o que sou e o que de mim poderia ter vindo a ser. Entre um e outro cigarro, reconheço-me no cérebro de uma prostituta assassinada, conservado, frase a frase, em cálices de formol. E, polifórfico a nada, sou a expectativa de mais uma internação psiquiátrica, no logaritmo de um número irracional.

*          *           * 

Exibindo os cornos retorcidos, confabula o diabo. A alongada barba de bode repousa sobre seus braços cruzados, de onde lhe saltam veias, como serpentes em alto relevo. Veste-lhe uma capa preta; estampado em vermelho, um pentagrama invertido. Seus olhos fitam os meus, penetrantes e secretos como velas pretas, acesas em nome do mal. Seria mefistófeles fosse eu o fausto; e ficamos estáticos, ainda nalguma expectativa, como a de quem percebe, um no outro, algo de terrível por acontecer. Do quarto ao lado, parede contra parede, qualquer um me chama. Desperto. À minha frente, um espelho embaçado, e num brinde à maldade, eu também do outro lado. À nossa.

*          *           * 

Entrei secreto num elevador vazio. No meio do caminho, ele havia parado, já então outro quando de sua partida, e eu também outro já naquele momento. Por um instante perscrutei estático, e estético perseverei imóvel, o mínimo quadrado onde me via preso. Ao invés da emergência, pensei nos assentos do tempo, no eterno preciso de tudo, nos ponteiros errados por dentro de mim. Às primeiras palavras de um verso, agora percebo-me nelas: entrei vazio num elevador complexo, que parado jamais existiu.

*          *           * 

Exala um cheiro grave do salão da casa, onde duas mulheres, mãe e filha, mortas ambas, jazem sepultadas em cadeiras de balanço. A idade já lhes roubou o viço do rosto, a depressão, o da alma. Sobre a penumbra densa, projetam-se, ambas em depressão, contra a luz branca e mortiça do aparelho de televisão, num claro e escuro macabro. Temo seus dedos gelados e esqueléticos, seu hálito podre de estar em casa, e há muito, com a morte presente por entre as pernas, em meio à escuridão dos móveis de madeira muito antiga. E através da janela fechada, é sempre noite da vidraça para dentro, é sempre tarde para quem passa, e sempre eterno para quem, por descuido ou por desgraça, na sala se deixa ficar.

*          *           * 

Na ilha dos túmulos, caiu a madrugada. Perdoai-me se caiu a madrugada na parte elemental do pensamento, se é das igrejas o ranger dos assassinos, e das senzalas, o vazar dos atabaques, percutindo as batidas de angola. Com os pulsos cortados, e uma bala perdida no peito, caiu a madrugada como se fosse um corpo, do décimo primeiro andar de todos os edifícios. Caiu, como cai a beleza feminina, como a criança que, brincando, cai, ou como o corpo de kurt cobain, que na sala de casa permanece caindo.

*          *           * 

Perscruto acerca da vida e da morte de antão, santo do século quarto da era cristã, distorcendo-lhe todavia as palavras, em overdrive, segundo a clave da caveira do bode preto em que me sei crucificado aos parafusos. Antigos fantasmas me sofrem, nomeiam e escrevem; e quanto mais próximo da morte, mais difícil a metáfora. Matar e morrer por intermédio da palavra: eis o único, atro e subterrâneo, sentido de fantasmagória.

 

16.05.2002 a 02.06.2002

 

 

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

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Daniel Mazza

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Maurício Matos


 

Infância


Todos os militares eram apenas uma cabeça inútil
a ditar incoerente os limites de tudo;
e eu os ouvia através da ignorância infantil,
e o fascismo fazia-me sentido, sem que sequer o dissessem.
À noite, confuso, eu dormia com nossa senhora,
sedutora, despidos os seios rosados
ante o próprio filho moribundo,
esticado pelos braços na parede branca,
mantida a posição em que morreu, sob tortura,
em pregos milenares pendurado, portanto,
ainda agora a consagrar os mesmos lares
dos mesmos que o mataram noutro tempo,
e que o podendo o farão inda agora,
talvez inda mais lentamente,
que nada mudou, afinal,
em dois mil longos anos de muita conversa.
Eram os primeiros sinais de um inferno sensível,
da primavera macabra que têm sido os meus passos;
esquartejada a vida à maldição divina,
por dentro de mim, repartida em pedaços.

Enquanto as ordens resvalavam bêbadas,
e nada lhes poderia garantir a verossimilhança da inteligência,
à noite, sempre longa e sempre tão macabra,
eu pensava em torturas para não desejar a virgem,
para não sentir, maior ainda e mais afiada,
a longa culpa de ter, simplesmente, sentido.
Crescia-me na alma a árvore do ódio,
a estender seus galhos, como cigarros acesos,
através da retina, circunspecta e triste,
de um olhar que revelava, ensimesmado,
meu desejo prematuro de morrer.
Então, expunha meus pulsos à faca divina,
mas deus não cortava os meus braços
e ria, profundamente ria,
cercado de insetos por todos os lados.

Edificava-se-me, por dentro, uma senzala imensa,
e os escravos-de-mim formavam filas, de medo,
labirintos macabros para o tronco dos outros,
onde estalava a chibata
ao gosto do grande carrasco.
Poder: eletrochoque, estupro, pau-de-arara,
pérolas e champanhe,
o regimento, afinal, sobretudo,
e tudo, por dentro de mim,
era tortura em minha casa, enquanto a festa.
Latejava-me, então, nervosamente o cérebro,
esticava-se-me, nele, a parte da alma,
a tornar-se, talvez, estridente demais,
aguda, talvez, como a dor simplesmente
ou, mais simplesmente talvez,
como a corda primeira, em desafino já,
daquele mais íntimo violino-de-mim,
comigo desavindo, talvez, desde então,
para sempre perdido,
parecia-me enfim.

Todavia, alguém lhes derrubou o rei
no tabuleiro-em-regimento,
onde jogavam, quadriculados, há tanto tempo,
a breve festa da ilustríssima rapina;
e, dentro em breve, ouvir-se-lhes-ia, logo, o pranto,
ruir-se-lhes-ia o castelo, a prata e a lei;
que, por fim, era tudo ruína.
Edificar-se-me-ia, então, um tabuleiro sem casas,
onde eu seria o décimo sétimo peão,
a ver, pelas costelas, nascendo, em contra-ícaro,
um alvíssimo par de asas negras demais,
como as pernas de augusto, dos anjos; e, enfim,
o tabuleiro-de-mim ser-me-ia o chão,
para nele voar, da memória de então,
ao profundo que existe entre o não e o sim.

Os netos e as netas dos grão-generais,
perdemo-nos todos, que o mal foi político.
Sobrou-nos fugir, uns menos outros mais:
maconha, cocaína, álcool, ansiolítico.
Calaram-se as ordens. Ladraram: Sentido!
Já não os ouvia. Pensava na morte.
A morte não vinha. A cabeça era um grito,
dizendo-me: Vive! A idéia é mais forte!
Qual fosse uma Idéia, abria-se-me em pernas
a virgem senhora, que, enfim, me sorria,
dizendo-me: Vem! Que, de pernas abertas,
apenas Maria, Maria, Maria...
Findou-se o regime, de dentro pra fora,
a festa era finda, e ninguém percebeu.
Desfruta, Maria, meu Corpo de agora,
que, agora, Maria, o Demônio-sou-Eu.
Enfim, num sarcasmo, dedico estes versos
aos dias que tive quando era criança,
que, agora, despido de um luto sem nexo,
minh’Alma respira, meu Cérebro dança.

 

 

 

 

Bernini_Bacchanal_A_Faun_Teased_by_Children

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José Geraldo Neres

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Maurício Matos



 

Entre as mãos e a mesa


entre as mãos e a mesa
a caída de um búzio
jamais abolirá o acaso

eu sou este búzio caindo



 

 

 

 

Rubens_Peter_Paul_Head_and_right_hand_of_a_woman

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Majela Colares

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Maurício Matos


 

Aquém das retinas ou como quebrar um brinquedo


aquém das retinas
se o mundo destila peçonha
as pedras do caminho
no meio podem ser filosofais

dinheiro é vida
exclama deus
perdendo sangue todavia

e no último dia
a humanidade vai cair de podre
da árvore onde ainda permanece
é a praga que eu rogo
laus deo



 


Foto: aquém das retinas (cemitério carioca, 1997), por Mauricio Matos

 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Cláudio Portella

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Maurício Matos


 

Reflexões sobre Aline filha de iemanjá no regresso do inferno-de-mim


eu sou o cavalo-dos-dias
virado em caboclos-de-agora
regresso do inferno-de-mim

e ao toque do cabula
segundo as batidas do rum
entre atabaques varo inteira a madrugada
a compreender a inexistência da manhã

se for terra de chuva: saluba, nana[!]

buruquê
e antre mim mesmo e mim, onde a barra é pesada
suposto filho d’obaluaiê
sou alguém que as imagens perscruta
e o corpo deseja
de uma filha, tatuada e prostituta,

por quem iemanjá lacrimeja

 


Foto: reflexões sobre aline (zona do baixo meretrício carioca, 2001), por Mauricio Matos

 

 

 

Aurora, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Ruy Camara

 

 

11/04/2006