Maurício
Matos
Infância
Todos os militares eram apenas uma cabeça inútil
a ditar incoerente os limites de tudo;
e eu os ouvia através da ignorância infantil,
e o fascismo fazia-me sentido, sem que sequer o dissessem.
À noite, confuso, eu dormia com nossa senhora,
sedutora, despidos os seios rosados
ante o próprio filho moribundo,
esticado pelos braços na parede branca,
mantida a posição em que morreu, sob tortura,
em pregos milenares pendurado, portanto,
ainda agora a consagrar os mesmos lares
dos mesmos que o mataram noutro tempo,
e que o podendo o farão inda agora,
talvez inda mais lentamente,
que nada mudou, afinal,
em dois mil longos anos de muita conversa.
Eram os primeiros sinais de um inferno sensível,
da primavera macabra que têm sido os meus passos;
esquartejada a vida à maldição divina,
por dentro de mim, repartida em pedaços.
Enquanto as ordens resvalavam bêbadas,
e nada lhes poderia garantir a verossimilhança da inteligência,
à noite, sempre longa e sempre tão macabra,
eu pensava em torturas para não desejar a virgem,
para não sentir, maior ainda e mais afiada,
a longa culpa de ter, simplesmente, sentido.
Crescia-me na alma a árvore do ódio,
a estender seus galhos, como cigarros acesos,
através da retina, circunspecta e triste,
de um olhar que revelava, ensimesmado,
meu desejo prematuro de morrer.
Então, expunha meus pulsos à faca divina,
mas deus não cortava os meus braços
e ria, profundamente ria,
cercado de insetos por todos os lados.
Edificava-se-me, por dentro, uma senzala imensa,
e os escravos-de-mim formavam filas, de medo,
labirintos macabros para o tronco dos outros,
onde estalava a chibata
ao gosto do grande carrasco.
Poder: eletrochoque, estupro, pau-de-arara,
pérolas e champanhe,
o regimento, afinal, sobretudo,
e tudo, por dentro de mim,
era tortura em minha casa, enquanto a festa.
Latejava-me, então, nervosamente o cérebro,
esticava-se-me, nele, a parte da alma,
a tornar-se, talvez, estridente demais,
aguda, talvez, como a dor simplesmente
ou, mais simplesmente talvez,
como a corda primeira, em desafino já,
daquele mais íntimo violino-de-mim,
comigo desavindo, talvez, desde então,
para sempre perdido,
parecia-me enfim.
Todavia, alguém lhes derrubou o rei
no tabuleiro-em-regimento,
onde jogavam, quadriculados, há tanto tempo,
a breve festa da ilustríssima rapina;
e, dentro em breve, ouvir-se-lhes-ia, logo, o pranto,
ruir-se-lhes-ia o castelo, a prata e a lei;
que, por fim, era tudo ruína.
Edificar-se-me-ia, então, um tabuleiro sem casas,
onde eu seria o décimo sétimo peão,
a ver, pelas costelas, nascendo, em contra-ícaro,
um alvíssimo par de asas negras demais,
como as pernas de augusto, dos anjos; e, enfim,
o tabuleiro-de-mim ser-me-ia o chão,
para nele voar, da memória de então,
ao profundo que existe entre o não e o sim.
Os netos e as netas dos grão-generais,
perdemo-nos todos, que o mal foi político.
Sobrou-nos fugir, uns menos outros mais:
maconha, cocaína, álcool, ansiolítico.
Calaram-se as ordens. Ladraram: Sentido!
Já não os ouvia. Pensava na morte.
A morte não vinha. A cabeça era um grito,
dizendo-me: Vive! A idéia é mais forte!
Qual fosse uma Idéia, abria-se-me em pernas
a virgem senhora, que, enfim, me sorria,
dizendo-me: Vem! Que, de pernas abertas,
apenas Maria, Maria, Maria...
Findou-se o regime, de dentro pra fora,
a festa era finda, e ninguém percebeu.
Desfruta, Maria, meu Corpo de agora,
que, agora, Maria, o Demônio-sou-Eu.
Enfim, num sarcasmo, dedico estes versos
aos dias que tive quando era criança,
que, agora, despido de um luto sem nexo,
minh’Alma respira, meu Cérebro dança.
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