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Maurício Santana Dias


 


A felicidade feroz

(Folha de São Paulo, 07 de maio de 2005)

 


Aclamada por um círculo restrito, mas fiel, a escritora Orides Fontela tem lançada sua "Poesia Reunida"

 

Faz exatamente dez anos que o último livro de Orides Fontela (1940-98) foi publicado. De lá para cá, a autora morreu na miséria e as edições de seus poemas sumiram das livrarias, inclusive "Trevo" (ed. Duas Cidades, 1988), que reunia até então toda a obra poética. No entanto a escritora continuou sendo comentada por um círculo restrito de poetas, leitores de poesia e críticos.

Agora as editoras 7 Letras e Cosacnaify lançam o primoroso volume "Poesia Reunida - 1969-1996" (376 págs., R$ 55), que certamente será fundamental para o reposicionamento e a reavaliação de Orides dentro do quadro da poesia brasileira da segunda metade do século 20.
 

Orides está entre os raros escritores que têm força suficiente para trans-formar o ato de leitura de seus textos numa experiência poética e existencial

 

Contudo não se trata de fazer o elogio póstumo e compensatório de alguém que sempre viveu e fez questão de viver à sombra -mas sem água fresca. Desde já, é preciso dizer que nem tudo o que ela escreveu é excepcional ou excelente. Porém, depois de lido o livro, não resta dúvida de que Orides está entre aqueles raríssimos escritores que alcançam força suficiente para transformar o ato de leitura de seus textos numa experiência poética e existencial.

As razões para isso são muitas, e a citação de uns poucos versos seus será suficiente para dar uma idéia de sua grandeza.

Exemplo: "O fim/ limite íntimo/ nada é além de si mesmo/ ponto último.// A saída/ é a volta" (versos finais do poema "Caramujo"). Por aí já se vê o diálogo cerrado que a poeta estabelece com a "tradição moderna", daqui e de fora (Drummond, Bandeira, Cabral, Murilo, Rilke, Pessoa, Mallarmé).

Como nota o crítico Davi Arrigucci Jr., leitor e amigo de primeira hora, "o senso de transcendência é óbvio em sua poesia, assim como a reflexão sobre o ser, a busca da essência das coisas". Mas "transcendência vazia", circular e sem centro, típica da lírica moderna.

Nesse sentido, é muito reveladora a aproximação que Flora Sussekind faz entre Murilo Mendes e Orides: "Parece acontecer, no percurso poético de Orides Fontela, coisa semelhante à que descreve um poema de Murilo Mendes dos anos 40, "Idéias Rosas': "Minhas idéias abstratas/ De tanto as tocar, tornaram-se concretas/ São rosas familiares". E, como no texto de Murilo, essa poesia também se deixa percorrer por uma espécie de nostalgia da abstração. Os últimos versos de "Idéias Rosas" poderiam mesmo ser lidos como motes secretos do processo de criação literária de Orides: "Rosas! Rosas!/ Quem me dera que houvesse/ Rosas abstratas para mim'" (do livro "Papéis Colados", ed. UFRJ, 1993).

Há em Orides Fontela um permanente sentimento de insatisfação com as coisas, as palavras, a vida. Insatisfação que não se traduz em melodrama ou derramamento verbal, mas numa concisão extremada, que ela partilha com outros poetas contemporâneos seus, como Sebastião Uchoa Leite e Francisco Alvim, embora o humor destes seja substituído, na poesia de Orides, por algo entre a decepção e o espanto.

Deslocamento do "topos"
 

Trabalhando com um repertório extremamente reduzido -flor, pássaro, espelho, pedra, fogo, tempo-, esquiva-se do lugar-comum deslocando essas imagens de seu "topos" tradicional. É o que se vê, por exemplo, nas sete seqüências do "Poema do Leque", em que a poeta flerta com o conceptismo barroco: "Cultiva-se (cultua-se)/ em ato extremo/ a anti-rosa/ esplêndida/ apresenta-se (apreende-se)/ o árido ápice/ luz vertical/ extrema" (poema cinco).

Como observou Antonio Candido, a realidade concreta, natural e histórica, é a matéria que informa seus versos. Mas tudo é progressivamente arrastado num redemoinho de abstração que anula os objetos e estilhaça a forma:

"Os pássaros
retornam
sempre e
sempre.//
O tempo cumpre-se. Constrói-se
a evanescente forma
ser
e
ritmo.//
Os pássaros
retornam. Sempre os
pássaros.//
A infância volta devagarinho".

 

Outro aspecto forte de sua lírica que não pode deixar de ser mencionado aqui, ainda que de passagem, está na relação estreita com as artes plásticas, flagrante no poema "Composição". Nele os adjetivos circulam de um substantivo a outro como as tintas numa tela: "Cavalo branco em campo verde/ parado/ sereno/ branco corcel ao longe/ realidade e miragem.// (...) numa viagem branca, através/ de todos os verdes/ a forma se tornava/ em ritmo, delírio/ de forças desatadas/ impulso leve e forte/ que saltava horizontes/ que rasgava as tormentas/ e as dores...// Mas agora, parado,/ o ser cristalizou-se/ na imagem de si mesmo/ realidade lúcida/ e plácida miragem./...............".

O desencanto lúcido de sua poesia é também a espera de uma felicidade que não se cumpre, mas que persiste mesmo nas passagens mais desesperadas; ainda que seja uma felicidade feroz e terrível, como nos versos finais de "Fera": "O perigo da fera: falsa ausência no desarmado silêncio.// Intensa fera. De súbito, na selva o medo salta! Mas aparece o sentido".


Maurício Santana Dias é professor de literatura italiana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
 



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12/05/2006