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Um esboço de Da Vinci

 

 

Marcelino Botelho


Superfícies semióticas do material do poema e a poesia cabralina.

 

 

 

O poeta traça, percorre um caminho semântico ao longo do qual vai ativando submensagens e iconicidades genuínas, a suplantação do nada pelo sentido da existência, o aniquilamento do vazio pela comunicação ou pela relação das coisas do mundo entre si, o afastamento da morte pela criação; parece-nos que tudo se interrelaciona para referenciar, acreditamos, uma relação de fundo existencialista: concepção —» nascimento —» morte:

 

Em densas noites                                            (4)

Com medo de tudo                                           (5)        

De um anjo que é cego,                                    (5)

De um anjo que é mudo.                                    (5)

 

Raízes de árvores enlaçam-me os sonhos             (6+6)

No ar sem aves, vagando tristonhos.                     (5+5)

Eu penso o poema                                             (5)

Da face sonhada                                                (5)

Metade de flor,                                                  (5)

Metade apagada.                                                (5)

 

O poema inquieta o papel e a sala.                       (6+6)

Ante a face sonhada o vazio se cala.                    (6+6)

Ó face sonhada                                                  (5)

De um silêncio de lua,                                          (6)

Na noite da lâmpada pressinto a tua.                    (6+6)

 

Ó nascidas manhãs                                            (4)

Que uma fada vai rindo,                                    (5)

Sou o vulto longínquo                                       (5)

De um homem dormindo.                                 (5)

 

Aplicando-se os conceitos da semiótica peirceana à iconicidade dos signos e no caso de manter o “representamen” relação triádica de paralelismo entre os dois elementos constitutivos, via paralelismo de uma terceira relação, ele é signo e um ícone dessa categoria é a metáfora. Fazendo-se um breve parêntesis ilustrativo, saibamos que Charles Sanders Peirce (1839-1914) [t2] desenvolveu uma fenomelogia de apenas três categorias universais que chamou de “Firstness”, Secondness” e “Thirdness”: primeiridade, secundidade e terceiridade.

“Primeiridade é o modo de ser daquilo que é tal como é, positivamente e sem referência a outra coisa qualquer: é a categoria do sentimento sem reflexão, imediato e presente das coisas, sem nenhuma relação com outros fenômenos, da mera possibilidade, da liberdade, da qualidade ainda não distinguida e independente. Secundidade é a categoria da comparação, da ação, do fato e da experiência no tempo e no espaço. Terceiridade é a categoria da mediação, do hábito, da memória, da continuidade, da síntese, da comunicação, da representação, da semiose dos signos”. [1]

 

Repare-se que “Metade de flor” e “Metade apagada” são predicativos do objeto; os versos, para melhor compreendê-los, poderiam ser “traduzidos” assim: “O poeta elabora, trabalha, imagina, idealiza ou sabe que a aparência nascitura do poema é ou se mostra de aspectos de luz e de sombra, de mistério e de revelação, parte inteligível e parte indecifrável”.

  

Abstraindo e especulando sobre a natureza triádica do ícone metafórico peirceano e que os três elementos de sua composição, provenientes daquele verso, são «o sentido literal de o poema dividido», «o sentido metafórico de a porção cognoscível do poema» e «o sentido comum aos dois como serem ambos partes da mesma coisa: a unidade do poema».

 

Pode-se conotar também que as idéias que surgem para o poema, e que são pelas mãos transcritas ao papel, não acompanham a velocidade de processamento cerebral daquelas, por vezes muito se perdendo do pensado, como os próprios sonhos que se diluem e nessa diluição parte se perde por esquecida, outra por mal elaborada reconstituição; isso tudo se condensa na matéria do poema. Então o “eu penso o poema”, a “face sonhada”, a “metade de flor” e a “metade apagada” estão em uma relação linear e simbiótica intensa, responsáveis pela ascendência do canto (poema-canção) para o agudo nesse trecho, como veremos mais adiante.

 

Por essa época começava a ter delineamento o que viria a ser a poesia de João Cabral, portadora de uma consciência crítica, analítica e estética fora do comum, por isso muitas vezes injustamente confundida com aridez racional, o que não é verdade; sua obra poética é, acima de tudo, a inscrição viva e permanente de uma consciência artística verbal e imagética poderosa e traslativa de uma observação emocionalizada das realidades captadas por uma inteligência poética genial. Aliás, apesar de sabermos que Samira Chalhub [2] e outros falam de uma poética não caracterizada pela emoção, à qual não confluímos, insistimos que tal constatação não se presta à obra em foco. [3]

A isso decline-se que o mais racional dos homens de ciência, se assim couber dizê-lo, ao elaborar quaisquer que sejam as teorias (física, matemática) não deixam de ser tomados ou movidos por uma sensação de ansiedade e prazer, sublimação, satisfação (auditiva, visual, sensorial) ou completude existencial que lhes guia a um certo nível de êxtase de consciência pelo que fazem ou descobrem; chamem a isto de emoção, inspiração ou apenas de trabalho de construção como Jakobson, mas uma construção feita sob os suores, os hormônios e agentes neuro-sinápticos de uma emoção, que caracteriza o elemento humano.

Não importa, não somos mais os mesmos quando caminhamos para o objeto de nossa própria criação e busca, nem durante nem depois de materializá-lo. O prazer da descoberta científica é tanto percursivo quanto lhe é posterior. É a sensibilidade. Os poetas sabem construir, elaborar e estruturar suas emoções (até mesmo nas frases ou textos mais racionais e científicos pode haver uma passagem que nos revele um certo sentido de poesia); Fernando Pessoa já destacara a capacidade de mimetização, contenção e preposição do poeta “que finge ser sua a dor que deveras sente”.

 

Cabral apreende o mundo não por uma ótica estertora desprovida de emoção mas encorpando as palavras de forma que, com esses signos semióticos poderosos de que se utiliza com minuciosa e elaborada arrumação, possa reconhecer e realinhar as fronteiras entre a emoção pictórica que lhe causa o mundo das coisas, dos fatos e a visual e intelectual dos significantes e significados propostos no pulso de sua estética ocular e verbal “sui gêneris”, criadora de um magnífico espetáculo glótico, um verdadeiro teatro de palavras, marionetes-palavras por ele manipuladas; deixando-as que manifestem as substâncias de si mesmas, o poeta realoca-as com precisão cirúrgica e matematicamente dentro de cada ato e fala que parecem explicitar uma dialética barthesiana permanente entre Fala e Língua nos limítrofes semióticos das mensagens da linguagem cabralina.

 

É, como a si mesmo se definiu: “um engenheiro da composição”, um químico e bruxo em seu plasma poético; as palavras nele deixam de ser meros transmissores ou códigos por onde caminha uma ou mais mensagens estabelecidas, imprevistas ou apenas, digamos assim, “possibilizadas”, quando, adrede, deixam-se desdobrar sintática e semanticamente, mas ainda conseguem manter-se em um corpo morfológico vivo, conservado e posto em um formol temático e conteudístico singular, a se espacificarem dinamicamente como se fora para tocá-las; poesia feita como um “gourmet” prepara uma iguaria, como a química silenciosa que processa o fruto verde e amadurece-o, mesmo depois de arrancado à árvore; como objetos vivos e palpáveis da vitrine frasal do poema.

 


[1] NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica.SãoPaulo: Annablume, 1998, pp. 63-64.

[2] Chalhub, s.  A  Metalinguagem. São Paulo: Ática, 1986.

 

[3]The only way of expressing emotion in the form of art is by finding an objetive correlactive; in other  words, a set of projects, a situation, a chain of events which shall be the formula of that particular emotion.” (ELIOT, T.S. Tradition and the Infividual Talent, In: The Sacred Wood.. Essays on Poetry and Criticism. Londres: Methuen & Co., 1920.) “A  melhor maneira de expressar a emoção de forma artística é ir em busca de algo a ela correlato; noutras palavras, um conjunto de estruturas, uma circunstância, uma seqüência de acontecimentos para melhor representar aquela singular emoção.” Tradução nossa.


 [TVU1]

 [t2]Citar obra. Ver em Eco.