Marcelino
Botelho
Sent: Tuesday, August 12, 2003
11:36 AM
Subject: Habitação
Querido Feitosa:
Poesia
como essa Habitação
é de comentar-se mudo, estatelado, antes de tudo; silenciadamente
mastigá-la,
postergá-la,triturar pa-lavra a
pa-lavra. Portanto, trabalho infindável deglutir tal desjejum dos
deuses.
Mas,
caro poeta, para o deleite de intelectuais socráticos e pós-socráticos,
semióticos ou sociológicos, precisamos primeiro vivenciá-la,
apreender dela o que não lhe pertence (talvez o poeta, como os
dentes, preso em si mesmo, não saiba onde more, mas, ensimesmado,
sabe onde habita). Morar e habitar, nesse desiderato, têm, nesse
poema, semioses diversas: acredito que o aedo simplesmente criou uma
campo sinestésico de verdadeira
grandeza verbal, surpreendente.
É
de notar-se como "morar" torna-se um signo fluido, etéreo,
volátil; e, ao contrário, "habitar" fecunda-se algo
quase que palpável, por conta do efeito do jogo dos
"relata" do signo: significantes e significados sofrem uma
forte compressão de sentido: habitar dentro dos próprios dentes
funciona também como uma hipérbole de habitar-se dentro de si
mesmo, de forma tal que se possa sentir esse estar-ser, que é
abstrato (mas
inteligentemente o poeta coteja-o sinestesicamente, dando-lhe
concretude), daí a intensidade do sentido ser tão crostada.
Ora, o poeta "sabe que não sabe" onde mora porque a
poesia que capta está em todas as coisas: na realidade a poesia é
que mora em todas as coisas, por isso o poeta conecta-se a todas as
coisas por via do que cria; mas, realisticamente, está em si mesmo,
habita-se. Preciso, então, foi separar bem os sentidos, como o fez,
de morar e habitar. O jogo entre o concreto/abstrato vai delinear o
perfil da lucidez peculiar do discurso poético. Veja-
se: penugem/cor (segunda estrofe); ouvido/som (terceira estrofe);
olhos/horizontes (quarta estrofe); mães/branca e preta (quinta
estrofe); mulher/mãe (sexta estrofe); alma(o imaterial)/tudo(o
material: pele, cabelo etc.)...
Evidentemente
uma poesia com essa dimensão não está adstrita a mecanismos semióticos,
lúdicos ou o que quer que se queira exatamente determinar. O dito
do poeta é algo ainda indizível aos olhos e ouvidos os mais
atentos.
Por
outro lado, uma poesia dessa grandeza não se faz só com sentimento
(talvez mesmo sem ele): mas surge de um processo verbal articulado
entre diversas realidades significantes cujas estruturas lingüísticas
revelam uma nova diversidade de significações buscadas
incansavelmente pelas mãos ágeis do escritor, pelo raciocínio
intangível em si mesmo, porque poético.
Seu poema, certamente, não é um texto para ser decifrado
(porque labor impossível), muito menos nessas poucas linhas; também
não é só para ser sentido (labor óbvio ao literário, porque estético).
Mas algo para ser discutido indefinida e incansavelmente dentro da
multifacetadas experiências humanas porque pode dialogar com o espírito,
e apenas ser sofregamente sentido pela carcomida carne.
Marcelino Botelho
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