Moreira Campos
Profanação
A cidade repousava na paz dormente da
tarde. Redemoinhos. Carneiros que ruminavam à sombra da igreja.
Outros animais pastavam na praça principal, que o mato ia farto
naquele fim de águas. De repente, o relincho do jumento cortou o
espaço, vibrante, sincopado, sacudindo concentrações. Jumento só
relincha em hora certa. À larga sombra do oitão na casa da esquina,
Seu Manduca, farmacêutico, concluiu o lance no tabuleiro do gamão e
consultou o relógio: vinte para as cinco. Inesperado! Um erro
qualquer de cálculo. Novo relincho, houve tropel de cascos. Já o
jumento se desembainhara: lança em riste, reluzente, sugestão de um
bacamarte boca-de-sino. O beiço superior dobrado, em cheiro de sexo
ou de cio, um fauno. A jumenta, nova, um mimo de ancas, talvez ainda
intocada, atirou-lhe logo uns dois pares de coices na queixada, de
que ele se livrava com dignidade e firmeza. Insistiu em mordê-la no
pescoço. Novos coices, toda uma beleza de mocidade. Qualquer coisa,
pela própria violência e rápidas entregas e negaças, a lembrar a
festa necessária do sexo. A arma poderosa erguia-se lenta contra o
peito do próprio jumento, como que se acamando, em pancadas
repetidas, mola, alavanca para grandes pesos. Perseguia a fêmea,
tentou cavalgá-la, escorregou. D. Esmerina, da janela de casa, a
vista curta, apertava as pálpebras, num esforço de verificação.
Pressentiu coisas. Mandou que a neta entrasse, menina de doze anos.
Sinha Terta parou no meio da praça, equilibrando na cabeça a trouxa
de roupa, seduzida, esquecida de tudo. No bilhar de Duca, os homens
abandonaram o jogo e, do alto da calçada, bateram palmas:
– Eita, cabra macho!
Mais coices. A jumenta apressava o
passo em trote gracioso, e o fauno atrás. Ela entrou por uma das
portas laterais da igreja, e ele também, o beiço superior mais
dobrado que nunca. Quebraram bancos, o velho confessionário foi
deslocado. Alexandre Sacristão, que espanava o altar e os santos,
ficou com o espanador parado no ar. Padre Rolim tangia os brutos com
a batina (porque esta estória é antiga):
– Xô, demônios!
Tudo se consumou na sacristia, perto
da grande mesa coberta com a toalha de gorgorão, onde aos domingos
se realizavam as conferências da Sociedade São Vicente de Paulo e se
pagava o óbolo.
A beata Inacinha assistira à cena por
trás da cortina, perplexa e hipnotizada. Seguira detalhes: a
penetração profunda, que lhe dera estremecimentos, a contração da
fêmea, os movimentos rápidos. A própria Inacinha sentira um
dilaceramento íntimo, como se sangrasse, desejo também de entrega:
– Oh!
Todos siderados: Padre Rolim, Inacinha,
Alexandre Sacristão, as outras beatas que chegavam. Padre Rolim se
recompôs logo e, afinal, tangeu os dois. Já muitos curiosos no oitão
da igreja, um deles vindo do bilhar e ainda esfregando o giz na
ponteira do taco. Padre Rolim insistia:
– Absurdo!
Virou-se para Alexandre Sacristão.
– De quem é esse jumento?
Alexandre não sabia. A beata Inacinha
conhecia o dono da jumenta:
– É Seu Dedé. Lá da beira do rio.
Padre Rolim, desabotoado, abanava-se
com a gola da própria batina:
– O que está faltando é um homem na
Prefeitura. Irresponsáveis! Um bando de animais soltos!
Mais curiosos que chegavam. Por fim,
foram-se afastando. Alexandre Sacristão veio com o chumaço de estopa
e o balde de água para a limpeza do piso da sacristia, onde restava
a grande sobra de sêmen e de onde subia um cheiro de sexo, que
dilatava as narinas, as de Inacinha ainda mais inflamadas.
Padre Rolim decretou que era
profanação. Não que fosse preciso interditar a igreja, cerrar
portas. Mas pelo menos benzer a sacristia. Apanhou o hissope,
aspergiu água benta, disse orações, acompanhado pelas beatas e por
Alexandre Sacristão, que terminou por repor no local a grande mesa
com toalha de gorgorão, que também fora deslocada.
A notícia correu a cidade: Padre Rolim
dissera que tinha havido profanação. Benzera a sacristia. Na porta
de casa, Seu Apolinário, lido e surdo, levava a mão em concha à
orelha cabeluda, com certa ironia.
– Tinha havido o quê?
– Profanação.
– Ah, sim.
A beata Inacinha sentia agora
dificuldade de concentrar-se nas orações. A imagem em tanga de São
Sebastião no oratório de casa, as chagas, as setas profundas, o
sangue, tudo se confundia com a penetração enérgica, dilacerante,
quente, morna. Um verdadeiro demônio, como dissera Padre Rolim, até
pelo retesado das patas, quase em pé, os cascos, aquele espeto
enorme.
Inacinha voltava às contas do terço.
Na manhã do outro dia, os soldados e
os presos de confiança na calçada da cadeia, divertidos, tentavam
identificar o jumento, que pastava perto, junto à cerca de arame
farpado, de mistura com outros animais. Alguém o apontou. Lá estava
ele: moço, inteiro, forte no sopro das narinas. Tosava o mato e
erguia a cabeça, altivo, enquanto o rabo tangia varejeiras.
Seu Dedé, lá da beira do rio, já viera
recolher a jumenta.
A cidade voltou à tranqüilidade de
sempre: à tarde, os carneiros ruminavam à sombra da igreja.
(Do livro A Grande Mosca no
Copo de Leite (1985), reunido a outros em Obra Completa: Contos II,
São Paulo, Editora Maltese, 1996)
|