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Mário Chamie





Obra traz à tona conflitos de convicção


(O Estado de São Paulo, Domingo, 7 de maio de 2000)


 


Leda Tenório da Motta, em 'O Objeto em Jogo', enfrenta o desafio de entender o poeta

 

João Cabral de Melo Neto, com "bisturi reto", cortou e recortou o perfil adequado da poesia de Francis Ponge. O seu poema O Sim contra o Sim (do livro Serial) tem 16 versos sobre o poeta francês. Quatro desses 16 acertam o alvo, que os outros 12 procuram despistar. Cabral fala de como Ponge lida com as coisas, tentando preservar a objetividade delas, sob ameaça e assédio retóricos das expressões literárias. Escreve Cabral: "Com ele envolve tanto a coisa que quase a enovela e quase enovelando, se perde, enovelado nela."

Tamanha precisão para mostrar quanto Ponge é impreciso no seu método de "tomar o partido das coisas" é uma interessante demontração de que, em matéria de poesia, ou o objeto existe para o sujeito ou ele (objeto) se perde na sua impenetrabilidade alheia e neutra. E o sujeito-poeta (chame-se Francis Ponge ou João Cabral) o mais que pode fazer é "enovelar-se" mesmo nas coisas, conforme saiba usar, melhor ou pior, as palavras exatas que sua subjetividade pede e dita.

Francis Ponge ocupa lugar de relevo na poesia do século 20, na França. Surgiu repondo no centro da linguagem seres do mundo animal, do mundo vegetal e mineral. Nobilizou tematicamente cavalo, rã, camarão, etc. (reino animal), grama, plátano, árvore, etc. (reino vegetal) e cristal (reino mineral). Instalou, assim, um enclave entre a busca de absolutos, de linhagem mallarmeana, e o expressionismo anárquico de um Henri Michaux, com o surrealismo de permeio.
Desde os seus primeiros livros (Douze Petits Écrits - 1926, Le Parti Pris des Choses - 1942, La Rage de L'Expression - 1952), e mais tarde na consolidação de sua obra (Lyres, Méthodes, Pièces - 1961), Ponge se manteve na tentativa de reconsagrar a existência concreta daqueles seres, supostamente imunes ao discurso dos poetas que os tomam por referência, projetando sobre eles seus pensamentos, palavras e emoções.

Para tanto, Ponge não desdenhou de alinhavar princípios de apoio crítico, cujo teor de certeza sempre se fez acompanhar de vacilações de feitio não muito ortodoxo. Assim, se um de seus princípios lembra que "o poeta nunca deve propor um pensamento e sim um objeto, um outro contrabalança esse tom afirmativo, advertindo que "o partido das coisas" precisa, em complemento, "levar em conta as palavras" que a elas se referem.

Aqui, o bisturi de Cabral volta a funcionar. O autor de Serial põe em xeque "o partido das coisas" pongeano e insinua que Ponge não resolve o velho conflito de sentido entre sujeito e objeto. Toda a dificuldade está em que as coisas se materializam nas palavras, porque as palavras são coisas do espírito. Vale dizer: sem o "eu" do homem e suas palavras, tudo o que é sólido se desmancha no ar... Mais ainda: sem as palavras que o "eu" projeta sobre as coisas, o que restará ao poeta é ficar dividido entre o vazio (solipsismo) do texto e a aporia de seu pensamento.

Ora, o fascínio da experiência criativa de Ponge reside no risco desse jogo e na coragem de praticá-lo. Evitando mergulhar no vazio e contornando o nonsense da aporia, ele se enovela nas coisas e deixa transparecer, em seus poemas, que a objetividade delas depende das palavras com que suas possibilidades de sentido são exploradas.

Metáfora - A inevitabilidade disso permeia os seus textos com tal insistência que será pela metáfora (tão repudiada por Ponge) que os seus seres-objeto manifestarão os seus significados reais. Veja-se o poema emblemático Le Cheval (O cavalo). A coisa-cavalo ganha a sua concretude, à custa de imagens e comparações subjetivas, lançadas pelo poeta sobre o seu tema-objeto. O animal, no poema, vai adquirindo presença substantiva, à proporção que, subjetivamente, o poeta o compara a outras figuras e signos.

Numa leitura transversal do poema, apontam essas figuras: "trono", "hipersensível armário", "alta nave", "grande santo", "ave de ovos de ouro", "monge humilde" e até "papa". Essas imagens configuram poder, força, solenidade, altivez, etc., insígnias de uma nobre efígie eqüina.

Do mesmo modo, veja-se a perícia de Ponge em criar palavras-valises. Uma dessas palavras, "objeu", é célebre. Tomada como paradigma, Ponge cultiva o filão quase automático desse achado. Assim, se há um "eu" dentro das coisas que dispensam o "eu" de quem as observa, residem também nas coisas as categorias próprias de seu mundo finito e definido. O "objeu" (condensação de objeto, jogo e eu) se redimensiona em "objoie" (condensação de objeto, alegria e eu) como se poderia redimensionar em outros desdobramentos correlatos.

Tal tomada de partido, um pouco além da aporia, tende a se enrijecer numa contradição insolúvel em si mesma ou, pelo menos, num impasse caracterizado nessa evidência: as categorias de jogo ("objeu"), de alegria ("objoie") são propriedades e atributos da percepção que o sujeito (Ponge) transfere às coisas por ele observadas e contempladas.

Para "desenovelar" um pouco o desafio pongeano, apareceu o livro Francis Ponge - O Objeto em Jogo, de Leda Tenório da Motta (Fapesp/Iluminuras, l999, R$ 20; 112 págs.). A boa qualidade desse livro estaria em que a autora expõe, sem discordar, as tomadas de posição e as estratégias críticas às vezes diversionistas do poeta. A rigor, parece que a autora deixa por conta do competente andamento de sua exposição as sinalizações do debate latente que caracteriza toda a obra de Ponge.

Esse suposto e bem resolvido critério da autora se, de um lado, sugere certo tom de celebração e louvor a Francis Ponge, de outro, traz à tona os conflitos de convicção que marcam sua trajetória singular na modernidade poética deste século. A Apresentação mais os três capítulos do livro, complementados por referências biobibliográficas e uma breve e oportuna antologia de "peças" de Ponge, bem o atestam.

Com efeito, o título do primeiro capítulo, Objeto na Ponta da Língua, favorece o entendimento de que, quando os objetos estão em jogo, só a linguagem do sujeito pode conferir realidade a eles, ficando o resto na dependência de um "se" condicional improvável. Diz a autora: "Não fica difícil entender que o objeto não pode ser dito da maneira como o poeta o diria, mas da maneira como ele próprio se diria...se (o objeto) falasse" (pág. 29).

Ambigüidade - O segundo capítulo ostenta esse título de ambigüidade exposta e explícita: Sem Poesia não Há Realidade e Vice-Versa.

Esse título comenta o paradoxo, segundo o qual se deve tomar "o partido das coisas", desde que elas mereçam as palavras que o poeta-sujeito lhes aplique. Na linha da reticência condicional, Leda Tenório resume o paradoxo nesta frase: "Dizer o objeto é dizer aquilo que ele... não é" (pág. 58).

O terceiro capítulo reflui sobre os demais. Intitula-se Ponge e Borges.

Afinal, se Borges sobrepõe os labirintos da palavra e do livro à materialidade do mundo, visto como sonhada abstração, como não tomar a "objetividade" de Ponge por uma outra abstração em busca de coisas e seres que lhe dêem corpo e sentido? Essas questões controversas não seriam suficientes para ler ou reler Francis Ponge, à luz do bom estudo de Leda Tenório da Motta?

 



Leia a obra de Leda Tenório

 

 

 

14/10/2005