Marcelo Coelho
Para trás! Poeta se aproxima
Sabendo que bons leitores são raros de encontrar, muitos escritores
se postam como um anfitrião ansioso, à porta de seus livros, fazendo
mesuras e gestos de convite. "Aos leitores benevolentes", ou
"favoráveis", Goethe dedicava sua produção poética: "Os meus erros,
minha lida,/ minhas dores, minha vida,/num buquê aqui estão;/a
velhice e a juventude,/o deslize e a virtude,/ficam bem numa
canção". Mesmo Baudelaire, gênio altivo e de olhar fuzilante,
começava seu "Flores do Mal" com um famoso e desesperado aceno ao
"leitor hipócrita, meu semelhante, meu irmão!".
Às vezes, o tom desses poemas iniciais é mais seco. Robert Frost
(1874-1963), poeta da vida rural americana, anuncia em duas quadras
simples que está saindo para limpar um córrego no pasto e pegar um
bezerro: "Não vou ficar fora por muito tempo. Você vem junto".
Mais raro é o autor que, como Montaigne, desde a primeira página
finge dispensar quem o lê: "Sou eu mesmo a matéria do meu livro: não
há razão para que empregues teu tempo com assunto tão frívolo e vão.
Adeus, portanto. Montaigne, primeiro de março de 1580".
É com uma advertência bem mais ríspida que começa a antologia dos
poemas de Laura Riding (1901-1991), "Mindscapes", recém-publicada
pela editora Iluminuras. "Para trás!", diz ela, na tradução de
Rodrigo Garcia Lopes. "Sou pedra./ Você tem de rasgar sua carne para
escavar meu peito.//Sou tempestade./ Ninguém relaxa comigo.// Sou
montanha./ Moureje até o topo, e vire um solitário.// Sou gelo. Você
tem de congelar até que eu derreta.// Sou mar./Não vou devolver
você.//Se isto o assusta,/ Para trás! Para trás!" Mas o poema,
intitulado "To One about to Become My Friend" (Para Alguém que Está
a Ponto de Virar Meu Amigo), abranda um pouco o tom nos versos
finais: "... se você for meu amigo,/ não lhe serei nada disso".
Laura Riding se manteve como uma autora de "poucos amigos" na
literatura de língua inglesa do século 20. Elogiada por nomes
famosos como W.H. Auden, William Carlos Williams e mesmo Yeats,
retirou-se da vida literária em 1943, quando foi morar com o marido
numa fazenda na Flórida, dedicando-se ao cultivo de laranjas. O
reconhecimento vai chegando aos poucos, como mostra Rodrigo Garcia
Lopes na utilíssima introdução ao livro. Figuras como Paul Auster e
John Ashbery afirmaram sua admiração por Laura Riding. A antologia
da Iluminuras, leio na orelha, é o primeiro volume de poemas da
autora a ser publicado fora do circuito de língua inglesa.
São poemas difíceis, sem dúvida. Laura Riding não procura imagens,
metáforas, sonoridades cativantes; em vez de "paisagens" ("landscapes"),
seus versos traçam quadros mentais ("mindscapes", ou "pensagens",
como arrisca o tradutor). É como se Laura Riding desse as costas
para o leitor, à procura de um outro hemisfério, onde reside "a
metade quieta da linguagem". Ela diz: "Venham embora, palavras, para
onde/ O sentido não se engrosse/ Com a substância impaciente da
voz,/ Nem a aparência das palavras é curiosa,/Como letras nos livros
encarando/ Tudo o que o homem achava estranho/ E punha para dormir
no branco/ Como o arcaico manuscrito/ Dos sonhos da manhã, negritado
no espanto".
O mundo da fábula, do romance, dos sonhos que se narram, parece-lhe
falso: "A sucessão das coisas lindas/ deleita, não ilumina". Por
outro lado, a verdade não pode ser alcançada. Diz outro poema:
"Deixe a terra em paz. A verdade não deixa pegadas. (...) A verdade
não faz ruídos./ Não siga a luz/ Que segue o sol/ Que segue a
noite./ A verdade dança além da luz/ E do sol/ E da noite./ A
verdade não pode ser vista".
Ficamos restritos a um ambiente severo, metafísico, quase
irrespirável; uma das surpresas de "Mindscapes" é perceber que o
espaço dessa introspecção dificílima corresponde, de algum modo, à
situação da mulher na sociedade: "É missão dos homens espantar e
caçar/ essa sereia luminar, o dia./ Alguém tem de esperar, alguém
tem que guardar a noite".
É assim que muitos poemas de Laura Riding parecem tematizar a
impossibilidade de se alcançar o mundo exterior, o mundo das coisas
objetivas. Natural que a linguagem se torne estranhamente abrupta,
densa e incolor. Alguns poemas adquirem forma fragmentária: "Entre
verbo e mundo jazem/ Murchas eternidades de já". Ou então, como
"Elegia numa Teia de Aranha", seus textos se debatem em repetições e
desistências, no estilo de Gertrude Stein.
A idéia de um projeto, de uma continuidade no tempo, da construção
de alguma coisa para o futuro, se torna ilusória. "Ruína brota de
ruína", diz a autora; e "Um resto procria um universo de fragmento./
Horizontes dispersam a inteligibilidade/ E novamente é ontem".
Como se a própria atividade da vida, o ir adiante no tempo, tivesse
algo de autofágico, de negativo: "Quanto tempo dura o dia-a-dia?",
pergunta outro poema. "Uns dizem desde sempre./ Mas começando
quando?//No mesmo instante em que pela primeira vez/Os olhos se
arregalaram e não viram tudo/ Num não tão tarde quando, pela última
vez,/O tempo durou não mais que um dia,/Um dia de adivinhar:/Por
quanto tempo é permitido/ Chamar de tanto o que é tão pouco?".
Termino por aqui, num tom meio pessimista. Mas espero que, em 2005,
não tenhamos tão pouco assim, que não possamos chamar de muito.
Leia a obra de Rodrigo Garcia Lopes
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