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Maria da Conceição Paranhos




Affonso Manta, poeta do lúcido delírio



 

As luzes do amanhã
Para Maria da Conceição Paranhos, com amor.
 

Fazer da brisa um traje sem medida,
E do arco-íris fazer um tobogã.
Amar as mínimas coisas desta vida,
E ter no olhar as luzes do amanhã.


 
 

Acabamos de perder Affonso Manta. Tasso da Silveira, poeta do grupo "Festa" do Modernismo brasileiro (anos 30), dizia com a sabedoria que lhe era marca diferencial: "Quando um poeta morre é como se um baú de tesouros submergisse no mais alto mar", bela e verdadeira metáfora. Tal tesouro torna-se inacessível para quem não tem a perícia de descobri-lo e redescobri-lo incessantemente, mas não para aqueles que desfrutam do dom da visão clara - grandes poetas nos deixam um legado sem fim. E foi o que nos deixou Affonso, este peregrino de si mesmo e do cosmos. Porque é cósmica a sua dimensão, ainda mais ampliada por sua fé no "sacrossanto Empíreo", como se lê em seu poema "Anjo de Fogo", um dos mais belos da língua portuguesa. 

Visitei-o no Hospital de Clínicas da Universidade Federal da Bahia e encontrei-o num estado de purificação que me impressionou. A despeito de sua extrema magreza e desfiguração causada pela doença (e foi um homem muito belo, os grandes olhos claros e expressivos, o porte ereto, o sorriso tímido de um charme inigualável), ele brilhava intensamente, numa tarde ensolarada deste veranico bahiano. Conversamos sobre a alegria; sobre a sabedoria da criança; sobre a construção generosa daquele hospital - que testemunhava um modo de vida do século passado em seus meados-, a despeito do descuido do Governo Federal em preservá-lo e beneficiá-lo (fora hospital-modelo do País, à época); sobre Deus, principalmente sobre Deus.  

Enquanto conversávamos, ele comia um após outro, com deleite, biscoitos de chocolate recheados, "Bianco e Nero" - que eu lhe levara escondidos, e os escondíamos cada vez que passavam médicos ou enfermeiras - e pelos biscoitos brancos e negros com nome em italiano falamos de Dante e do "Paraíso". Affonso já sabia que estava perto de partir para lá, tive a certeza disto.  

Acabado o horário de visitas, fim de tarde, nos despedimos. Ele se curvou ao máximo e me beijou a mão com um cavalheirismo que não encontro mais - de modo geral - nos homens, aqueles que parecem ter medo de serem "politicamente incorretos" ou coisa pior. Foi um beijo respeitoso, cortês, digno, delicado e...longo - uma despedida. Sorri e lhe disse que ia me saindo, mas de costas para a porta, que não se dá costas para um rei. E assim era Affonso, um Rei. Nos gestos, na postura geral, na poesia. Na seleção que se segue, peço ao leitor para atentar para o poema "O Rei Affonso". Ele o sabia.  

Poucos dias antes, eu havia escrito o texto abaixo, sobre ele, para a antologia Sete Cantares de Amigos, a ser lançada no próximo dia 11 de dezembro na Sala de Conselhos da Reitoria da Universidade Federal da Bahia, organizada e produzida pelos poetas Miguel Carneiro e José Inácio Vieira de Melo, respectivamente, o primeiro, baiano; o segundo alagoanobaiano. 

"A poesia de Affonso Manta surge de uma intensa experiência lírica do mundo, conduzida por um olhar de extremada acuidade para as realidades soterradas, imperceptíveis à maioria das pessoas, mesmo aos poetas. Sua percepção emana de um eu dilatado, conduzido pelas ruas da cidade cotidiana e do mundo com um passo próprio aos reis com os quais se deleita a imaginação humana, particularmente a da criança, de onde irão provir imagens de uma beleza e de uma singularidade incomuns. Este rei não está nu e é generoso. Seu banquete - assim podemos denominar seu modo de apropriação da realidade - é servido por outros eus que dele desabrocham e vão guiando seu passo célere, a desvendar essências - apenas um eu não o poderia".  

Despreza o que os objetos simbolizam e propõe um 'método'alegórico para decifrar o seu verdadeiro sentido. A alegoria, para este poeta, traduz a realidade de modo mais concreto que sua versão instituída, pois consiste numa estratégia de expressão que permite flagrar o real em permanente transformação.  

Rastros, pistas e sinais deixados pelos ancestrais emergem dos poemas de Affonso Manta. Ele atualiza e transforma o mundo em comunidade afetiva, e o indivíduo anônimo e emblemático que o eu poético deixa falar vive um destino de herói. A despeito das alegorias de poder inseridas em seu léxico, este é um poeta de rara modéstia, no mundo das aparências, e do mais alto poder no domínio das essências, na construção de versos da mais intoxicante e deliciosa ironia Em sua poesia ele cria um dispositivo subversivo, metade vírus, metade bomba, que erode e desintegra a trivialidade.E quando pensamos que um demônio o possuiu, do eu poético brotam asas, anjos e girassóis (v., particularmente, "O Louco"), em justaposições de linguagem e de imagem personalíssimas, que não encontro em seus companheiros de geração nem em seus pósteros. Lembra Lautréammont: mudanças de tirar o fôlego, no tom e no estilo, versos que ondulam e volteiam e, mesmo, negam os motivos que ali se apresentam.Algumas vezes a face confidente e encantatória, outras a de umdelírio místico, ainda, a de um palestrante eloqüente, logo, a de um pecador penitente, a de um anjo, a de um poeta, Affonso Manta, autor de "Anjo de Fogo".  

Note-se o parentesco com o expressionismo doloroso de Cruz e Souza e com a unção mística de Alphonsus de Guimaraens neste poema, mas não apenas.Além dos traços de expressionismo em sua poesia, a vivência surreal alia-se a uma depuração de visão da exterioridade que estarrece pela ternura, pela bondade, e, acima de tudo, pelo retorno e pela recuperação da infância, de modo visceral, no ser que ali está ditando seu texto ora ao marechal, ora ao rei e assim sucessivamente, as multíplices personae compondo a ágape da qual, afinal, apenas os leitores irão desfrutar. Manta prepara a cena e dela se ausenta, e assim se observa sedento, peregrino, puro, campeão, hesitante, pendular - pastor de um rebanho que, sem ele, estaria ausente de qualquer pasto, o poeta como descobridor de um planeta paralelo a este pobre e aviltado planeta em que vivemos: o "[...] duro / E trágico planeta sublunar (" Opus no. 7 ").E tudo isto aliado a uma solenidade de ritual, muitas vezes rito sacrifical em que o próprio corpo do poeta é imolado. 

Os flagrantes de faces e momentos recuperados pela formação poética, seja como rei, marechal ("Lá vai Affonso Manta"), "Restaurador do Império Agonizante" ("O Rei Affonso"), pedestre ("De Cambulhada"), pastor ("Pêndulo"), o menino, o anjo e o santo (onipresentes em seus poemas) encarnam arquétipos que, contemporaneamente, reaparecem na crônica da cidade como o "zapista", o internauta ou o "ciberpunk" e assim sucessivamente - estes, desligados de seu cordão com o Absoluto, imergidos num mundo em que mesmo as relações humanas são virtuais. 

Se no primeiro poema da seleção Affonso Manta devolve a aura ao poeta, numa alegoria na qual usa, ironicamente, as técnicas da montagem, em outros momentos o poeta mostra sua chaga mortal, mas sem desistir daquela aura (v. "O Rei Affonso"); preserva ilesa, entretanto, a integridade do seu ser como referência para os que recusam a via de mão única, buscando outros caminhos, novas formas de alteridade e exercício da subjetividade.

Todavia, em nossa época, quando se fala em declínio da razão e retorno das formas místico-religiosas, são as figuras da sorte e figuras do azar que perseguem o imaginário coletivo. O poeta elege o "louco" como fusão de ambas as figuras, alegoria da experiência-limite da lucidez num mundo desnorteado - em que os indivíduos que não ingressam no ritmo mecanizado são olhados com estranheza -, mas este louco de Manta é "[...] o louco da imortal loucura, / O louco da Loucura mais suprema", de Cruz e Sousa. 

Em volta deste louco, anjos voam, seres inesperados desabrocham em espaços inusitados, regidos pela imaginação criadora em sua potência. Observe-se que não se trata de meras fantasias, não, tudo participa de uma realidade antes oculta e agora revelada como meio de conhecimento da vida divisada pela câmera de um poeta messiânico que, antes de verdade, quer beleza. E nela aporta.  

Esta mesma beleza torna-se um tipo de verdade imantada e perene, inaugurada por Affonso Manta, "num sítio de cristal e de poesia" ("Criação"), sob a regência do amor e da utopia social. Como poucos poetas, Manta chega ao que Cabral denominou "o núcleo do núcleo do seu núcleo" - embora a realização formal de Manta não se assemelhe à de Cabral, de modo geral, a não ser em poemas como "O Realejo do Vinho", no qual se detém nos objetos para enxergar a face humana que os habita na solidão - os desertos de Cabral, as ruas de Manta, poeta peregrino. E ao fissurar esse núcleo, descobre a clarividente candura que o caracteriza em tantos momentos: "A poesia tem os olhos inocentes, / Inocentes de saberem tudo".".
 



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12/07/2005