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Manuel da Costa Pinto




Paisagens interiores e geografias imaginárias




 

"Nômada", de Rodrigo Garcia Lopes, é um livro que procura a unidade através da heterogeneidade, um livro em que (como o título indica) os poemas devem ser visto como "mônadas", como células encerradas em si mesmas, mas que se comunicam entre si, provocando um nomadismo de formas e sentidos.

A diversidade de vozes é uma das características marcantes desse poeta que, não por acaso, havia lançado anteriormente dois trabalhos intitulados "Polivox" (um livro de poemas, publicado pela editora Azougue, e um CD em que Garcia Lopes mostra sua faceta de compositor e intérprete).

No caso de "Nômada", encontramos novamente essa pluralidade: poemas de um lirismo visionário, de inspiração ora surrealista, ora "beatnik"; poemas lineares em que as súbitas torções e as imagens urbanas lembram modulações jazzísticas; poemas em prosa de feição orientalista; palavras em suspensão, em montagens claramente influenciadas pela visualidade concretista.

Mas essas dicções diferentes obedecem a uma ordem, perceptível na estrutura do livro. Assim, a primeira parte ("Mônadas") reúne textos que desenham uma paisagem interior.
São poemas que buscam o "homem em transe" acuado sob a "fala-cadafalso", em que o sensacionismo e os estados de consciência desviantes (a vigília, os paraísos artificiais) têm como meta configurar "uma sutil reminiscência do que nunca existiu".

Essa evocação de uma esfera de realidade inalcançável, que viola as determinações objetivas do mundo empírico e que pode apenas ser entrevista pelas frestas da linguagem poética (que nos fala sempre de um mais-além), corresponde a uma concepção de literatura vista como uma espécie de xamanismo que cria novas percepções de tempo e espaço:

"O objetivo imediato é: fusão./ O eu não se apodera das coisas/ Deixa-as (suas almas ociosas)/ falar, farfalhar, até o fim, falhar.// A história simultânea das coisas/ Um dia irá contar sua fábula".
 

E se hoje essa confiança persistente no poder transformador da poesia soa um tanto ingênua, Garcia Lopes não deixa de lançar ironias contra quem não percebe suas ironias: "Há anos vende seu peixe/ podre/ seu suflê de vísceras/ para vegetarianos sem o menor senso de humor".

Na verdade, porém, o senso de humor não é uma marca da poética de Garcia Lopes, cuja poesia está muito mais voltada para o cultivo da sensibilidade como forma de resistência, conforme podemos ler em "Setembro Negro", cujos versos tristes remetem aos traumas recentes de Nova York (cidade que impregna as nostalgias desse tradutor e estudioso da literatura norte-americana):

"Do lado de fora estava a realidade/ Do lado de dentro uma cidade/ feita de gestos e movimentos/ penumbras, espantos, estranhos, pensamentos/ (...) Da queda o que ficou foram gritos & ruídos/ E densa nuvem de carne e poeira no céu da tela/ Não a ternura que habitava a sua voz/ (A sensação de que algo se rompeu)/ Solidão, recife, estrela".
 

Nas duas seções seguintes ("Fragmentos em Movimento" e "Viagens à Hiper-realidade"), Garcia Lopes faz uma mixagem de procedimentos que captam as perturbações perceptivas provocadas pela nossa "semiosfera" (segundo expressão de Lotman, hoje em dia empregada para descrever nosso ambiente saturado de signos).

E, após um "intermezzo" que retoma em chave fragmentária o tema dos atentados nova-iorquinos ("Liberdade de Pó: Um Diário"), chega-se à seção que dá título ao livro. Reunindo poemas em prosa ou "poemas em linha reta", os textos de "Nômada" compõem uma geografia exterior que contrasta com a paisagem interior e os estados de consciência das "Mônadas".

Não se trata, bem entendido, de uma geografia real (embora haja menção a países e cidades), mas de lugares imaginários em que ocorrem situações que o poeta testemunha como um "flâneur", como viandante que vai anotando as mitologias inscritas no cotidiano: "Carros avançam em nossa direção: eis o épico contemporâneo. Ítaca na esquina, Odisseu o mendigo lendo um anúncio travado no chão".
 




Leia a obra de Rodrigo Garcia Lopes

 

 

 

07/04/2005