Ruy Espinheira Filho
Marcos Demoro
entrevista
Ruy Espinheira Filho
MÁRIO DE ANDRADE - O sopro da criação
in A Tarde Cultural - Literatura
13.10.2001
Baiano de Salvador, jornalista, mestre em Ciências Sociais,
doutor em Letras e professor de Literatura Brasileira do Instituto
de Letras da Ufba, autor de romances, ensaios, novelas, contos e
volumes de poesias, a exemplo de Julgado ao Vento (1979), A Canção
de Beatriz e Outros Poemas (1990), Memória da Chuva (1996), O Vento
no Tamarindeiro (1981) e O Nordeste e o Negro na Poesia de Jorge de
Lima (1990), Ruy Espinheira Filho lança no próximo dia 18, a partir
das 18h30, na Livraria Grandes Autores (Ondina), Tumultos de amor e
outros tumultos (Editora Record). A seguir, numa entrevista
concedida ao jornalista Marcos Demoro, ele comenta alguns dos
aspectos mais relevantes do trabalho, que lança luz sobre o
pensamento de um dos mais importantes e provocadores intelectuais
brasileiros, Mário de Andrade. A permanente atualidade de um dos
mentores do Modernismo brasileiro é destacada por Ruy Espinheira
Filho na obra que vem a público (ATC-Redação).
Marcos Demoro
- O Sr. afirma em Tumultos de Amor e outros Tumultos que Mário de
Andrade é o escritor brasileiro mais estudado e, ao mesmo tempo, o
mais esquecido. Por que ocorre este fenômeno?
Ruy Espinheira Filho
- Creio que a resposta já é dada na introdução do livro: se, por um
lado, ele é estudado, por outro é esquecido em muito do que diz e
que desagrada aos formalistas. Quer dizer: estuda-se o Mário de
forma interessada, ou seja: naquilo que não incomoda. Porque um
estudo amplo do Mário desvela impiedosamente a pobreza do formalismo
que vem assolando o Brasil desde 1945: Geração de 45, concretismo,
poesia praxis, poema-processo e que tais. Inclusive as novas ondas
de bobagens que estão vindo com a tal pós-modernidade.
MD - Qual a
atualidade das idéias de Mário de Andrade sobre a arte e a
literatura ?
REF -
Atualidade absoluta. Há muito candidato a escritor perdido na vida
por um único motivo: não leu Mário de Andrade.
MD - No
capítulo “O noturno e o diurno” o Sr. examina as reflexões de Mário
sobre os desafios impostos pela técnica no processo de elaboração
artística traçando um paralelo com João Cabral de Melo Neto e a
geração de 45. Como Mário posicionava-se diante desta questão? Qual
era o papel da inspiração na criação poética, para ele?
REF - Mário
falava claramente: arte é aquilo que não pode ser ensinado. Quer
dizer: você pode ensinar artesanato, não arte. Por quê? Porque arte
é bem mais do que simples conhecimento ou aplicação de técnicas. A
criação é um processo - que vem do impulso lírico e se faz objeto de
arte sob a ação da crítica, ou seja, da aplicação da técnica
dominada pela inteligência. Esse impulso - esse sopro - é que se
costuma chamar vulgarmente de inspiração. Sem ele - a voz de Anima -
não há excelência técnica que possa fabricar uma obra de arte.
MD - Em que
medida as idéias discutidas em “A Escrava que não era Isaura” e em
“O Banquete” ainda permanecem atuais ?
REF - Há quem
queira pôr as idéias do Mário “no passado”, mas me parece que isto é
só falta de sensibilidade - ou então “estratégia” para esconder a
própria mediocridade, como fazem certos nomes do academicismo e das
“vanguardas” indigentes e anacrônicas. Em essência, as discussões
constantes de “A Escrava”, de “O Banquete” (que é um texto muito
mais novo, o último do Mário) e do “Prefácio Interessantíssimo” são
atuais. Mudam-se certas preocupações (como saber, por exemplo, o que
seria o verso-livre, que ninguém - a não ser Manuel Bandeira - sabia
fazer nos tempos heróicos do Modernismo), mas os conceitos de
criação, arte, dignidade do ofício de artista, modernidade,
originalidade, influências, estudo, pesquisa, tradição, talento,
formalismo etc. são de agora e de todos os tempos.
MD - Para Mário de Andrade, qual é o
papel do conhecimento técnico para o ato de compreensão da obra de
arte ?
REF - Mário falou muito do
conhecimento técnico. Uma das coisas que disse - e sobre a qual
temos que meditar a sério - é que o conhecimento técnico pode nos
levar ao conservadorismo. Ou seja: vivemos tanto dentro de um
conhecimento técnico, habituados a ele, respirando-o sempre, que
acabamos reagindo contra qualquer coisa que nele não se enquadre.
Quer dizer: podemos nos tornar conservadores, reacionários. O
conhecimento técnico é obviamente necessário ao artista, porém
devemos ser abertos a outras manifestações. Quanto à compreensão da
obra de arte, à sua mais profunda e livre fruição, talvez seja
melhor que não nos atrapalhe nenhum preexistente conhecimento
técnico, o qual pode gerar aquilo que o Harold Bloom chama de
“presunção universitária”.
MD - Quais as principais conclusões
que podem ser tiradas da leitura estética de Mário de Andrade ?
REF - Penso em algumas: o processo
de criação é complexo; a arte não pode ser ensinada (só se pode
ensinar técnicas); não há “verdades” estéticas; é indispensável
muito estudo, e pesquisa constante; o moderno é o que é atual, o que
é vivo (ele dizia: Homero é moderno, Dante é moderno, etc.). E
aprendemos, com essa leitura, inúmeras lições fundamentais do que é
necessário ao artista: estudo, investigação, persistência, coragem
de perguntar e de afirmar, destemor quanto ao risco de cometer
erros, humildade, generosidade, consciência profissional, atitude
crítica responsável (o “senso ético da crítica”, como disse Alfredo
Bosi, e o ajustamento à perspectiva da leitura exigida pela natureza
da obra, sem uma expectativa apriorística que possa deturpar o que
ela realmente diz); busca sem descanso e recusa, sempre, de uma
satisfação que possa significar a terrível chegada, o auge (que já
seria decadência). Estas e outras conclusões podem ser facilmente
tiradas - assim como muitas mais, a depender da sensibilidade do
leitor.
MD - O Sr. afirma haver um vigoroso
renascimento do lirismo no Brasil. Quais são suas principais
manifestações e qual a sua importância ?
REF - Observo que a tendência ao
formalismo (experimentos à base de logogrifos e logomaquias,
demências verbovocovisuais e quejandos) está dando lugar à criação
propriamente dita. Ou seja: o poeta está reocupando seu lugar, que
fora grilado pelos formalistas, os neoparnasianos sem sopro lírico.
Quem se der ao trabalho de freqüentar livrarias e ler o que se tem
publicado ultimamente, sobretudo a partir dos anos 80, constatará
esse renascimento. E o que é mais importante: são manifestações sem
escolinhas, naturais, autênticas, espontâneas. Não estou dizendo que
estão surgindo gênios, mas que se está tentando fazer poesia. Aliás,
já que falamos em escolas, Mário as detestava: dizia que era coisa
da burrice de muitos para a vaidade de um só. Quanto à importância
dessas manifestações, é o que se sabe: uma civilização sem poesia,
sem lirismo, só encontra o caminho do declínio e da morte.
MD - Como o Sr. observa, à luz do
pensamento crítico de Mário de Andrade, as auto-intituladas
vanguardas tais como os movimentos concretista e neoconcretista ?
REF - Creio que o Mário escreveria
sobre eles um contundente estudo intitulado “Os Novos Mestres do
Passado”... Porque eles apresentam as mesmas características dos
antigos: técnica-pela-técnica, pobreza de idéias, frieza, distância
da vida, ausência absoluta de lirismo. Os parnasianos ao menos
tinham ritmo e som, enquanto os de agora não produzem mais (para
usarmos a expressão de um importante lírico brasileiro da nova
geração, Alexei Bueno) do que, com perdão da palavra, coprólitos.
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