Maria Helena Nery Garcez
Há mais mistérios...
Súbito, a indicação Saint-Sulpice.
Um alvoroço adolescente tomou conta de mim. Vira-a só uma vez.
Brevíssima passada de olhos, bastantes anos atrás. Ficara a
recordação vibrante e imprecisa. Lembrava-a menor, menos imponente,
menos antiga. Aquelas torres cilíndricas, inconclusas, mancas,
surpreendentes... Revisitadas agora – e, isto sim c´est grave - nem
sei mesmo ao certo se mancas são. Agradara-me aquele círculo oco –
oculus ? - que, mais para perto do cimo, cada torre ostentava. Com
presteza, fui seguindo.
Algo, contudo, interceptou meu caminho: Rue Madame ... e um grande
mar de emoção ouviu-se dentro de mim...
Quem mais poderia ser Madame senão Madame? Seria possível que,
séculos depois, o espanto daquela noite - o horror! - ainda
estivesse ecoando:
Madame se meurt! Madame est morte!
Madame se meurt! Madame est morte!
Madame
se meurt! Madame est morte!
Madame se meurt! Madame est morte!
Madame se meurt! Madame est morte!
Madame se meurt!...
Madame est morte!
Madame...
Mas, afinal, por que tanto mar de emoção se Madame nem minha era?
nem parte da minha história, pessoal ou nacional? Bem... da minha,
pessoal, a rigor, talvez fosse, mas tão minimamente... Não, não era
o caso do homo sum: humani nihil a me alienum puto... Nem mesmo o
lugar comum de a França ser a pátria de tout esprit bien né. Nem sou
bien née nem pertenço aos enfants de la patrie, embora ame a França.
Também não tinha - não tenho - particular interesse por esse século
XVII, corte e rei, aquele rei que, ao telescópio, descobriu ser o
centro do nosso sistema ... Sol que fosse não pôde, contudo, reter
Madame...: en vain le roi même tenait Madame serrée par de si
étroits embrassements...
O que sabia eu, no final das contas, de Madame, por fora e por
dentro, além do pouco que na escola, um dia, tinha ouvido? Vira eu
algum seu retrato? Outra vez Álvaro de Campos veio à tona, nalguma
coisa como: e se a tivesse visto e ouvido, o que eu saberia ?
Rue Madame.
Madame, - quem diria! - acabou nome de rua! E andando eu por Paris,
querendo ir a Saint-Sulpice, atalhou-se- me Madame, em rua tornada.
Mas... por que me doer a mim a lembrança de Madame?
Ô nuit désastreuse! Ô nuit effroyable!
Por que uma fibra a vibrar, passados 333 anos??? O que me teria
tocado ? Gritos daquela noite de Saint-Cloud? Se eu não estava lá!
... A voz de Bossuet, do púlpito de S. Denis, cortando os séculos? A
nostalgia de um texto lido em sala de aula – nem sei mais por qual
mestre - tantos anos atrás? Ah! o balanço perfeito da assombrosa
frase:
Madame se meurt! Madame est morte!
Estética, sem dúvida, a emoção, mas não só.
Suspeita-se - dizia o livro - que Madame tinha sido envenenada.
Vinte e seis anos. Não mais. Dizia ainda que eras coquette, Madame,
bela, negociadora hábil. Que voltavas de conseguir uma aliança entre
teu irmão e aquele rei que se deixava chamar sol. Bien née, eras tu,
Madame: Henriette d´Angleterre, filha d´Henriette de France, irmã de
Charles, o segundo de seu nome na ilha que se pretende leão.
Fizeras, Henriette, uma perigosa proeza. Aliaras o sol e o leão.
Hábil, de fato, eras... demais!
Foi então que se perguntaram alguns se convinha deixar-te seguir
carreira. Aos 26, e já o sol ao leão aliado! O que viria ainda?
Passaras a incomodar, Henriette! Passaras a preocupar... Passaras a
não convir, nesse teu século cioso de regras e conveniências...
Ah! Madame! que sabias muitas coisas mas havia uma que ainda não
sabias ...
Então, nunca ninguém te havia dito que só os talentos médios - e
eles apenas - é que vivem seguros? Por tua própria conta, tu, esprit
de finesse, não tinhas observado ainda que só o ni fu ni fa é que
não incomoda pela vida afora? Não recomendavam os antigos a aurea
mediocritas?...
Ou estavas tão segura de ti que te julgavas omniamada, que tua
finesse era tanta de modo a perceber a mais leve viração da brisa, o
turvo da maldade no fundo do olhar cristalino que dizia seres tu
magnífica? Embriagaras-te com teu sucesso a ponto de te esqueceres
do esprit de géométrie? e daquele outro, seu primo irmão, que agora
batizo d’esprit de calcul? Julgavas não precisares mais de te
preocupar muito com saber quem era quem à tua volta? tão segura de
ti que esqueceras os esprits faux? que os esprits faux ne sont
jamais ni fins ni géomètres? que eles cirandavam à tua volta nos
seus mais belos sorrisos? Hélas! que acabaras acreditando tanto em
ti e nos belos sorrisos, que foste esquecendo daquele espírito
divino de discernimento, que os místicos tanto suplicam por saberem
que só minimamente eles o podem desenvolver em si e por si
discernimento dos espíritos..., não é assim que se diz?
Duros foram teus mestres, Madame, dura a lição que te ensinaram –
ministrada e aprendida de uma vez para sempre num aprendizado
inútil... Pela raiz te arrancaram como às ervas daninhas – se é que
o eras - aqueles que daninhos certamente foram ...
Sem que tua carruagem sequer tivesse rolado por rua de Paris,
Madame, tu foste eliminada.
Vingança? tão fulminante assim? veloz feito a luz?
Inveja ?
Precaução? era que não convinha chegasses a casa? qual embaixada
trazias que, tão depressa, necessário se tornou apagar a tua luz ?
Plano ou segredo ou estratégia, baixou tudo contigo à cripta de
Saint-Denis...
Só sei que, naquela noite de 1670, em Saint-Cloud, Madame, pelo
menos um ou uma havia que não chorava, ou só por fora chorava... Por
certo que, entre os que piedosamente te enterravam, pelo menos um ou
uma havia, intimamente impio ou impia... E, em Saint-Denis, entre os
que Bossuet ouviam, pelo menos um ou uma, por dentro, gozava! Um?
muitos?...
Afinal, Madame, eras jovem e bela, arguta, rica e poderosa...
Afinal, também eras sol e fazias o teu dia... Era agosto, Madame, e
agosto não era grande coisa naquela tua França de então. No 21, o
sermão pela tua morte; no 24, os ecos da voz que se ouviu em Ramá;
choros e grandes lamentações. Era Raquel a chorar seus filhos, a não
querer consolação porque já não existiam! A Saint-Barthélemy, nos
seus 102 anos de idade... Algo a ver com tua morte, Madame?
Mas por quê - indago-me eu - tudo isso me veio assim ao espírito?
...seria que Madame quis que eu pensasse nela? Teria eu te captado,
ao andar à toa naquele dia de Paris? sintonizado o mundo dos
espíritos, eu que não os invocara ?
Se ao Arcanjo pedimos nos guarde dos espíritos malignos que andam
pelo mundo para perderem as almas – pedido secular que até mesmo tu,
Madame, pode ser que muitas vezes o tenhas feito - por que cargas
d´água não há de haver também espíritos não-malignos que andam pelo
mundo para serem lembrados... para, de algum modo, lhes fazermos
justiça... para os ajudarmos... para nos ajudarem também, ou coisa
que o valha... Não estarão eles por aqui, nos rodeando? Misterioso
intercâmbio, esse. Fascinante também. Não dizias tu, Raul Brandão,
haver apenas um fino tabique entre eles e nós? Sabias que
antigamente, no Brasil, se cantava uma cantiga de roda - dos idos da
colonização - em que uma Senhora Dona Sancha (com esse nome, poderia
ser nossa?) se perguntava:... mas que anjos são esses que andam me
rodeando, de noite e de dia Padrenosso, Avemaria...?
Eles nos rodeiam, os espíritos, benignos e malignos, em São Paulo,
em Paris, na Barra do Sapateiro, na Noruega distante, na Capela do
Rosário, na Tasca da Lea ou em Saint-Cloud... Mas em Saint-Cloud,
naquela noite, os malignos marcaram o gol ...
Estética, esta emoção, apenas? Estética sim, mas não apenas.
Por certo que eram inesquecíveis aquelas frases! Por certo que eram
inesquecíveis seu ritmo e balanço! Aqueles versos de um orador
poeta, que, por finesse e géométrie tomado, em seu púlpito/palco
praticava... Como nos canteiros – de obras e de verdes - o praticam
todos os jardineiros e arquitetos dessa França nem sempre douce,
ébrios que são desse paradoxal espírito gaulês, tão compósito e, não
obstante, tão harmonioso...
Geometria, simetria e finesse no esforço de exorcizar a morte. (Le
petit dauphin est malade. Le petit dauphin va mourir. Recordam?)
Geometria, simetria e finesse embriagando os ouvintes, em
performance arrebatadora, elevando-os à esfera concertada da divina
harmonia... Geometria e finesse opondo-se ao desconcerto, resgatando
Madame da Coisa Descabelada ...
Jardineiro de palavras - em geométrie e finesse – tão bem esculpiras
o trespasse de Madame, Bossuet, naquela oração fúnebre em
Saint-Denis que, três séculos depois, ma fizeste reencontrar, num
grande mar de pathos e emoção, naquela cálida tarde de uma rua
parisiense, onde, na ciranda de tantos espíritos que me andavam
rodeando, o fascinante intercâmbio se operou: Madame veio fazer-me
companhia e juntas revisitamos Saint-Sulpice, entre Padrenossos e
Avemarias...
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