Micheliny Verunschk
Do encantamento de Dora
Para Anna Ehrens
Ontem, domingo de sol e chuva em São
Paulo.
Rolando no chão com minha filha bati o
olho na tv e vi Dora dizendo um de seus poemas, escutei Dora
cantando um de seus poemas, senti Dora por meio dos milhares de
pontinhos coloridos e ondas eletromagnéticas que fazem essa caixa
mágica que é um aparelho de televisão.
Nem sabia de nada.
Pensei e falei: será que vou ser uma
poeta como ela? Será que vou ser poeta grande, com velha idade e o
sabor sempre menino da poesia? Eu quero.
O sorriso de minha filha, ou o
cotidiano, nem lembro o quê, na verdade, me puxou e me retirou da
companhia dela e eu continuava sem saber de nada.
Só mais tarde, por meio de uma poeta
amiga é que soube que Dora se fora.
Para onde?
Num país de decantada curta memória,
falar do esquecimento como morte quase não causa comoção, ainda mais
quando se trata de poetas, esses seres malditos, danados, consumidos
pelo fogo das palavras ou pelas palavras em fogo. Por isso não é nem
de esquecimento e nem de morte que quero falar.
Quero falar de Dora.
De sua palavra:
Tua voz tem asas de falcão e pousa
Nas torres mais altas do meu ser.
Em busca de um tempo que é mítico,
sagrado e pleno de revelações a poesia de Dora Ferreira da Silva tem
a beleza das coisas claras, a plenitude de um tempo que não se
esvai, que permanece. Um tempo que embora se inscreva na duração,
espia com seus olhos de retrós a contemporaneidade.
Dora tange as tripas de sua lira e a
música que nos envolve nos convida à transcendência, ao vôo
espiritual. E nos devolve ao chão, num pouso suave.
Poeta, tradutora, criadora das
revistas Diálogo e Cavalo Azul, Dora nasceu em 1918 e se encantou
aos 88 anos, num dia de abril de 2006, em São Paulo.
Quem me prende
mais do que a terra?
Confira alguns poemas de Dora:
NASCIMENTO DO POEMA
É preciso que venha de longe
do vento mais antigo
ou da morte
é preciso que venha impreciso
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.
É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.
E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranqüila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.
De Andanças (1948-1970)
O VENTO
Na palma do vento
pouso a fronte. Nele confio.
A quem confiaria senão a ele
este rude labor?
Abandono-me à tormenta
(lumes mastros
gaivotas do mar próximo).
Enreda-me a noite.
Mas dele são os dedos leves
que me fecham os olhos. E é manhã.
De Jardins (Esconderijos) (1979)
MULHER E PÁSSARO
Voltamos ao jardim
ao banco lavado pela chuva.
Pedimos o verde ao verde
a flor à flor
sem quebrar-lhe a haste. Bastaria a manhã.
(Nossa presença
desalinha ar e folhas
num frêmito.)
Mas se nada pedimos
como quem dorme seguindo a linha natural
do corpo
respiramos o puro abandono:
um pássaro alveja o azul (sem par)
ultrapassa o muro do possível
e assim damos um ao outro
a súbita presença
do Céu.
De Talhamar (1982)
PARTITURA COM LUA
Notação de pássaros
no fio da rua:
mínimas semínimas pausas.
Sobre o piano rosas estremecem.
Cadências de alma sobressaltam um público
desalento e ao relento ressoam
algumas dissonâncias (tropel de potros
presos numa sala). Mas por acaso em pura sinfonia
pássaros refazem a partitura
no heptacorde dos fios da rua.
Ei-la tão plena do dia findo azulado —
a lua soberana e alta
do sono deste outono.
De Poemas em Fuga (1997)
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