Silvério Duque
Breves
considerações sobre
CORISCO VERMELHO
EM CASA CAIADA,
de Miguel
Carneiro
Meu Deus! Já deixamos
a praia tão longe...
no entanto, avistamos
bem perto, outro mar...
ASCENSO FERREIRA
Alguns elementos estilísticos e
estruturais, presentes no mais novo livro de Miguel Carneiro,
Corisco Vermelho em Casa Caiada, revelam um talento nato e
inquestionável, aliando-se a uma vigorosa consciência artística,
pouco afeita a certos romantismos de onde sua prosa parece ter
beber, extremamente identificada com a com a natureza, com a
realidade, bem como ligada demasiadamente a uma prodigiosa e
inventiva memória, desenhando ora auto-retratos, ora confissões...
ora a mais profunda reconstrução de si mesmo.
Não tenho nenhuma dúvida de que a obra de
Miguel Carneiro é muito maior e mais importante do que imagina a
grande maioria de nossos leitores, críticos e ditos estudiosos de
nossa literatura, desacostumados a uma produção prosaica e poética
capaz de captar, como nenhuma de sua geração, bem como aos de seu
métier, a essência da vida espiritual do povo simples de sua região
de origem com inegável engenho artístico e técnica lingüística, além
de uma grande sinceridade em tudo o que escreve e como escreve;
embora, para muitos, a obra de Miguel Carneiro pareça o resultado
imediato de uma “sabedoria tosca”, basta uma leitura cuidadosa e
verdadeira em suas intenções para descobrir de que se trata da
produção de um autor que conhece muito de nossas tradições e
heranças da literatura medieval européia, ainda tão abundante em
nossos sertões. Como se já não fosse o suficiente, o talento natural
na construção de suas formas expressivas, fazem de Miguel Carneiro
um autor intrigante, de onde uma descoberta pode sempre surgir da
esquina de um parágrafo ou no âmago de um termo ou expressão
sertaneja, por exemplo, que lhe surge tão natural e inventiva, não
se apresentando, por sua vez, como produto
reciclado
dos artificialismos lingüísticos que parecem moldar autores em toda
parte... e para todos os gostos.
Entre os escritores baianos em plena
atividade, nestes últimos trinta anos, que se dedicam à prosa,
Miguel Carneiro é o que melhor demonstra habilidade e franqueza de
criação, cujo funcionamento não depende totalmente de mecanismos
estilísticos facilmente apreendidos por viés dos moldes acadêmicos,
mas de elementos extremamente significativos e engenhosamente
dispostos de modo a passar despercebidos de nossos leitores e
críticos descuidados... e, muitas vezes, despeitados.
Em sua prosa, a construção de imagens, que
constituem a própria imagem de seu pensamento de escritor, cede
lugar ao peculiarismo da língua e a emoção como princípio
determinante para as mais diversas situações encontradas em suas
estórias; tudo para alcançar a máxima plenitude de significado e
beleza, pois Miguel sabe planejar – como poucos – os instrumentos
mais característicos da poesia e da prosa de raízes populares, não
sofrendo, como muitos, o dilema de construir uma literatura
elaborada com a melhor técnica artística, mas completamente
desprovida da mais simples beleza, graça e sinceridade. Além do
mais, o que chama muito a minha atenção para a prosa de Miguel
Carneiro é a sua fácil distinção entre o regionalismo maduro,
sobrepondo-se ao sertanismo ingênuo, tão difundido e confundido
entre os nossos consumidores de literatura – quando não por nossos
escritores sem noção de um quanto do outro... isso quando não têm
noção de nada. Nesta diferença, o servilismo diante da paisagem
geográfica desaparece e a natureza não se apresenta como
determinante ao espírito ao à natureza humana. Com Miguel Carneiro,
o erro mui comum de moldar o homem à semelhança do espaço geográfico
– como o fez até mesmo Graciliano Ramos – não existe como
necessidade. O meio geográfico apresentar-se-á apenas como mero
condicionador às condições e às relações humanas e não como um
determinador. Se a literatura de Miguel Carneiro tem erros – e é
lógico que tem – não é este o maior, nem o mais constante, muito
menos o mais difundido... mas, ao contrário da grande maioria de
nossos críticos, são as virtudes dos autores que me interessam, não
seus pecados; sejam eles naturais ou forjados.
Miguel também não distingue seus
personagens, pelo seu “modo” de falar, não amesquinha seus tipos por
mera convenções de linguagem. Tal apresentação tem sua hora certa de
aparecer e de sumir, evitando a artificialidade e a imitação barata
de certos diálogos toscos e exteriorizados, como os tenho visto em
muitos de nossos contemporâneos – mesmos os mais afamados e, já há
um tempo, “academizados”. Ao invés disso, Miguel Carneiro aprofunda
mais ainda seus aspectos regionais, apropriando-se de uma
verossimilhança muito intensa e muito típica aos grandes escritores
deste estilo, principalmente por sua convivência pessoal entre esses
muitos sertões e sertanejos, permitindo que a fala da vida se
acomode à fala ficcional, mas sem se perder no tipicismo puro, no
pitoresco simplório, na cor-local burra, no sertanismo idealizado ou
mesmo na cópia barata dos neologismos e caboclismos de Guimarães
Rosa. Para sustentar o que afirmo, a respeito da sinceridade deste
aedo de Riachão do Jacuípe, é que sua obra não cai no jogo perigoso
do tratamento postiço da linguagem, nem da falsidade estilística...
e o leitor, ganhando com isso, agradece. Mas, faz-se necessário
reconhecer as limitações comuns a todas as formas de métodos – e
esta crítica diz respeito, principalmente, a mim mesmo – quanto
maiores e mais amplos no que se refere às variações estéticas e não
colocar Miguel Carneiro como escritor regionalista (simplesmente);
rótulo que, como todos os estereótipos, seria injusto, limitado e de
fácil reconhecimento da preguiça intelectual de seu crítico – Vixe!
–, pois Miguel tanto transita pelos aspectos trágicos e épicos do
regionalismo pós 1930, como por uma peculiar maneira de reinventar o
realismo-fantástico, bem como o conto policial e a crônica política
e cotidiana, muito embora sejam os dois primeiros aspectos os mais
presentes, os melhor elaborados, bem como os mais predominantes, sem
seu instigante Corisco Vermelho em Casa Caiada, como podemos ver
tanto na abertura do conto que intitula o livro, ou no sensual e
fantasmagórico Breviário da Danação... que encerra a coletânea.
Miguel Carneiro maneja, como habitual
destreza, as formas mais características das prosas de origem
popular ao tempo que se mostra habilmente capaz de sustentar uma
narrativa fantástica sem mascará nenhuma nem outra com o uso de
cacoetes lingüísticos ou de estilo. É literatura simples e pura,
buscando-se sempre assim, optando por uma clareza e uma objetividade
marcantes, mas sem deixar de fazer literatura por conta disso.
Miguel, como todo bom autor, é livre para tratar e escolher seus
temas, através de uma linguagem que se faz por formas e conteúdos
tanto realísticos quanto tanto realísticos quanto imagéticos,
dissonando-os numa atmosfera demasiadamente onírica, muitas vezes,
embora com objetivos muito verossímeis, quão singulares. Sob esses
aspectos, a literatura de Miguel Carneiro não rompe com os modelos
mais tradicionais de nossa literatura e é, talvez, nesta fidelidade
às tradições que se encontre a fácil absorção de um conteúdo tão
vasto em sua prosa e isso é muito bom, porque esta essência
tradicional e profundamente emotiva faz com que muito não se perceba
de sua elaboração e engenhosidade literárias, o que, para mim
constitui uma grande virtude ao trovador Miguel Carneiro.
Por fim, considero Miguel Carneiro um
grande autor que se fixa muito bem ao corpus Universal do fazer
literário, diferentemente aos seus contemporâneos – e aos meus
também –, cuja grande maioria sustenta-se apenas pelas estufas do
cooperativismo porco e da “propaganda jornalística”, mas que
facilmente morreriam se cultivadas pelas mãos exigentes dos leitores
mais ávidos e hábeis, porque que sabe fazer literatura por ser
talentoso e por saber reconhecer o real valor daquilo que faz;
coisas que a história leva bastante em conta na hora de eternizar
aqueles que são realmente grandes. E Miguel Carneiro é realmente
grande em sua força literária e domínio estilístico, mesmo que à sua
maneira, por assim dizer. Todavia, se alguém duvidar... que pague
pra ver. (Candeias, 18.7.2011)
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