Silvério Duque
responde três perguntas a
Gustavo Felicíssimo
Gustavo Felicíssimo – É um
estranho poder, o da poesia, capaz de opor-se à
miséria humana, aos ditadores, e ao mesmo tempo tão
impotente atualmente frente aos olhos da humanidade.
Por que você acha que isso ocorre?
Silvério
Duque – Meu caro Gustavo,
a Poesia, como quaisquer formas de arte, é, sem sombra de dúvidas, a
primeira maneira, e, até hoje, a melhor, que o homem encontrou para
se conhecer, expressar suas emoções e perpetuar seus princípios,
seus valores, suas leis e sua cultura.
A arte é tão
velha quanto o homem e sua civilização e durante muito tempo o homem
não teve a pretensão de se ver distinto da natureza e buscava,
sobretudo, uma integração com todo o universo. O homem sempre teve a
necessidade de transcendência, e de buscar um elo entre a aparente
efemeridade da vida, das coisas e a Eternidade, e, nisso,
sofisticou, ao longo das eras, as suas mais diversas formas de
expressão, procurando representar sua percepção cada vez mais
acurada do meio em que vivia. Em resumo, não há síntese mais
perfeita entre a razão, a emoção, a vida prática e, acrescente-se a
isso (doa em quem doer), a Presença Divina.
E ela se faz
perfeita por acabar-se em si mesma, porque, nela, se encerra todo um
universo, uma maneira de compreender quando aceitamos que todas as
coisas nos são possíveis, não podemos mudar ou acrescentar nada a um
poema ou a uma obra de arte, apenas, a partir deles, deliberar; a
Poesia é, em seu discurso, a probabilidade; ela capta tanto o real
como imaginário àquilo que ela tem como presumível; o que não
acontece com a filosofia, por exemplo: filosofar é um eterno
reiterar-se (embora, os marxistas, em sua prática, discordem); é
estar sempre aberto a uma nova frase, ou conceito,... ou coisa do
tipo, que pode fazer com que aquele pensamento, antes direcionado
para um lado, tome rumos completamente diferentes; a Filosofia, como
a Ciência, de maneira geral, é um eterno acrescentar-se... e queira
Deus que seja sempre assim.
Já um poema,
pode, sim, ser modificado ou acrescentado de muitos outros elementos
por seu autor, mas, logo que publicado, tudo o que podemos fazer,
sendo o poema, também, um assunto científico, é tirar dele o que ele
nos tem a oferecer – sendo um bom poema, serão muitas e muitas
coisas – porém, não podemos acrescentar-lhe um verso ou um
pensamento sem destruí-lo ou transformá-lo em outra coisa, pois ele
não é um sistema de pensamento, é a apreensão imediata
e peculiar que seu autor fez de um momento de sua vida
transmitindo-a a nós numa forma também própria de linguagem, no
caso, artística; o que não quer dizer que o poeta não possa, mais
tarde, deliberar sobre o que fez, mas não é a sua função primaz.
Segundo o filósofo Olavo de Carvalho, em seu Aristóteles em nova
perspectiva: introdução à teoria dos quatro discursos, este
papel cabe, por exemplo, ao filósofo, que construirá, a partir do
discurso poético, um pensamento filtrado naquilo que fora apreendido
pelo poeta e, segundo o professor Olavo, “é sobre estas imagens
retidas e organizadas na fantasia, e não diretamente sobre os
dados dos sentidos, que a inteligência exerce a triagem e
reorganização com base nas quais criará os esquemas eidéticos,
ou conceitos abstratos das espécies, com os quais poderá, enfim,
construir juízos e raciocínios”. Não podemos (não deveríamos) dizer:
este verso ficaria melhor aqui, ou, o poema deveria ser menor, mais
enxuto, menos prolixo... Podemos retirar do poema quantos conceitos
queiramos arrancar, quantas análises acharmos por bem tirar-lhe,
mas, no fim, ele será sempre o mesmo poema e não será nem mais nem
menos por isso, porque ele é, acima de tudo, a síntese e o
registro de uma época, de um modo de vida, de um momento no
tempo, de uma maneira única e particular de ver as coisas, de uma
maneira peculiar de expressar o que se pensava e o que se sentia
naqueles exatos instantes onde cada palavra ganhava um sentido, uma
função e um dever; dever que, muitas vezes, é, puro e simplesmente,
o nosso sentir-se bem; é ter algo de onde arrancar ou
compartilhar as nossas mais simples ou as nossas mais profundas
emoções.
Nas pinturas
rupestres de
Chauvet-Pont-d'Arc, e seus tão realísticos “cavalos”, ou
na vestuária “teimosa” de Bentinho, em Dom Casmurro, de nosso
inigualável Machado de Assis, a Arte, bem diferente da História, é
um rigistro vivo daquelas coisas que citei há pouco: as
épocas, os modos de vida, os momentos no tempo, aquela maneira única
e particular de ver as coisas, a forma peculiar de expressar o que
se pensava e o que se sentia naqueles exatos instantes onde cada
palavra ganhava um sentido, uma função e um dever; tudo está em
movimento, porque a Arte não é um produto da escavação ou da
especulação do historiador, e as coisas nela contidas estão vivas
porque são partes da vida de seu autor, elas são seu legado eterno;
e as épocas, os modos de vida, os momentos no tempo, aquela maneira
única e particular de ver as coisas... eternizar-se-ão com ele
através de seu trabalho e nada de mais importante podemos tirar
disso tudo que não seja nos admirar, nos alegrar e louvarmos a Deus
com estes milagres pelo homem produzidos.
A Poesia, em
meu ver, como quaisquer formas de arte, é tão integrada à humanidade
que chega a ser uma necessidade fisiológica como comer, dormir ou
sentir dor quando algo nos fere; seja criando-a ou consumindo-a. Em
cavernas ou em grandes templos egípcios, como os de Abu Simbel, nos
cabarés da Belle Époque ou nas salas de cinema, nas camisetas
que usamos ou naquela deselegante caneca de chopp na estante
da casa de algum beberrão, há pouco ou muitíssimo da presença da
Arte em nossas vidas; o que muda, evidentemente, é a hierarquia
lingüística, os diferentes níveis de se apresentar, de se dizer, de
apreender o mundo, os modos usados...
E, por tudo
isso e mais um pouco, a Arte se sobrepõe às épocas, às misérias, aos
governos e a tudo isso que citaste, meu caro Gustavo, por não ser
ela mesma um fato isolado da mente ou da história humana, mas porque
ela integra a própria raça humana, preservando-a naquilo que ela tem
de mais importante, como, por exemplo, seu Mito Fundador – um
conceito de Schelling. Fazendo minhas, novamente, as palavras do
filósofo Olavo de Carvalho (as quais podem ser conferidas no artigo:
Do mito à ideologia, no Jornal da manhã do dia 21 de
março de 2001, ou em seu site), um autêntico Mito Fundador “é uma
verdade inicial compactada que, no decorrer da História, vai
desdobrando o seu sentido e florescendo sob a forma de ciência, de
leis, de valores, de civilização, não sendo ele mesmo um produto da
cultura por ser ele mesmo a semente de uma cultura possível”.
Basicamente, prossegue o filósofo, “um Mito fundador constitui-se,
em geral, de uma narrativa simbólica de fatos que efetivamente os
sucederam que de tão essenciais e significativos que acabam por
transferir parte de seu padrão de significado para tudo o que venha
a acontecer em seguida numa determinada área civilizacional”. A
Bíblia é o Mito Fundador da civilização ocidental. E de que maneira
este Mito Fundador se nos apresenta, e nos é repassado ao longo da
História? Através da Literatura, primordialmente... Oral, depois
escrita, xilogravada, depois pintada, melodiada por Bach etc. e
tal... A arte é uma das muitas punções de um Mito Fundador.
Quando Northrop Frye afirma ser, a Literatura Ocidental, uma
variação dos enredos bíblicos, coisa que eu não tenho porque não
acreditar, pelo contrário, reitero aqui tal afirmação, ele não só
demonstra a existência e a importância do Mito Fundador como nos dá
um belo exemplo do poder que a Poesia e a Arte exercem sobre nós ao
longo de milênios.
Assim sendo,
não é a Poesia, ou a Arte, que está impotente diante da
humanidade... é a humanidade que teima trocar seus mitos fundadores
por ideologias fúteis, que em nada acrescentam e em tudo destroem.
No entanto, a tendência de tudo é o melhoramento; tudo passa
sobre a terra; viver, mudar, morrer é o nosso destino e a nossa
dádiva. A Poesia sempre existirá como sempre existiu, com pouco ou
muitos adeptos, com seus gênios ou poetas menores, e, como sempre,
sairá vencedora com o passar dos anos, porque se não tivermos
conceitos como bem e mal, bom ou ruim,
se não tivermos uma idéia de sociedade e leis que façam prevalecer
esta mesma sociedade, e formas de exprimir todas estas coisa – como
só a Poesia exprime – nada mais nos restará ao não ser disputarmos,
aos macacos, a floresta... ou coisa parecida. A Poesia, meu
caríssimo, como a Arte, de uma maneira geral, está no centro mesmo
destas coisas, como aquilo que nos une e nos conduz ao Divino, ao
racional, ao emotivo, ao prático; e eu quero – e preciso – acreditar
em tudo isso para que tudo que conheço não perca seu sentido e eu
mesmo não me perca com todas essas coisas.
GF – Que
você acha da afirmativa do poeta Alberto da Cunha Melo quando diz
que "o mau uso do verso livre terminou por colocar em risco a
própria identidade social da poesia."?
SD
– Para mim, meu caro amigo, ele está correto. Analisemos, contudo,
esta consideração, do tão saudoso bardo pernambucano, por um viés
filosófico...
Quando, Alberto
da Cunha Melo, afirma ser o mau uso do verso livre uma ameaça à
identidade social da Poesia, penso que, necessariamente, ele não se
refere a uma questão puramente formal, ou seja, não é o fato de o
verso ser livre, no sentido de não estabelecer-se dentro de uma
métrica rigorosa, mas, no quanto que este verso está, erroneamente,
“livre” (desvinculado) de uma série de elementos, alguns dos quais,
devo ter citado anteriormente, que constituem a sua legitimidade
enquanto texto poético; principalmente, trazer em si o Mito
Fundador, e, conseqüentemente – (já estou com saudades do trema)
– de sua importância às gerações que se valerão dele.
Neste sentido,
caímos numa velha discussão com relação ao Modernismo de 22. O
grande mal do Modernismo paulista, e, até hoje, uma grande desgraça
para quem se alimentou dele, foi o fato de os paulistanos se
afastarem completamente de um passado que só lhes podia fazer bem.
Se olharmos, só por motivo de exemplo, para os primeiros modernistas
de Portugal, veremos que eles não aboliram, de todo, as formas
fixas, mesmo o soneto – e nem poderiam, pois, de tão enraizados
estavam as língua e as tradições portuguesas nos decassílabos
camonianos que eu posso afirmar, sem medo de cometer um despautério,
que é o decassílabo a própria expressão do pensamento e da
língua; nem, muito menos, aboliriam os grandes temas que percorrem a
mentalidade humana há séculos e séculos; é por isso, e que nos sirva
de exemplo, que as Odes de Álvaro de Campos são tão repletas
de fábricas, engrenagens e automóveis velozes, quanto de uma
retórica ou de um ritmo poético tradicionalíssimos, que estes mesmos
elementos “modernos” tão contemporâneos não se fazem livres de um
Virgílio ou de um Platão, tanto que estes chegam até a dividir os
versos com aqueles; o próprio Fernando Pessoa era tão embriagado de
Aristóteles quanto de Walt Whitman... Modernos sim, idiotas nunca;
os portugueses sabiam que negar estas coisas é negar-se a si e a
tudo que se podia definir como cultura; o menos que isso é caos
puro e simples; assim, em Fernando Pessoa (Álvaro de Campos),
encontramos:
...em febre e olhando os motores
como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
porque o presente é todo o passado e todo o futuro
e há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
e pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinqüenta,
átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo
do século cem,
andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por
estes
volantes,
rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só
carícia à alma...
Agora, se
olharmos para o exemplo do Brasil, ou pelo menos o exemplo paulista
que, infelizmente, impera sobre os demais, a coisa é contrária:
despreza-se o passado, a tradição, a forma e mesmo a linguagem
apurada, que não tinha nada de preciosismo, em troca de quê?
Em troca de algo que não se sustenta por si mesmo por não ter onde
agarrar-se. A velha tentativa de buscar uma identidade nacional
desprezando mais da metade dos elementos que constituem esta
identidade só poderia dar em nada, ou pior, numa anomalia.
Tudo isso, no
entanto, se se considerarmos os paulista de 1922, como precursores
de nosso movimento modernista, o que eu não consideraria nem sobre
tortura. E por quê? Porque há uma geração moderna bem antes deles
que, por preguiça, incompetência de nossos críticos, ou espírito de
cooperativismo porco, ou (o mais certo) os três juntos, não se
enquadra como modernista, apenas como Pré-alguma-coisa...
Agora, caro Gustavo, aponte-me uma característica dita como moderna
ou como oriunda dos modernistas de São Paulo, que não tenha sido
usada por um Augusto dos Anjos, ou um Lima Barreto ou um Euclides da
Cunha? Diga-me, onde um Mário de Andrade foi melhor em retratar a
urbis caótica que um Lima Barreto, ou se, por acaso, um Oswald
de Andrade seria capaz de trazer tanta valorização ao passado, e às
tradições culturais do Brasil, mais do que foram trazidas à luz no
antológico Triste fim de Policarpo Quaresma? O que é o
manifesto Antropofágico frente àquele horror que nos traga, nos
devora e, ao mesmo tempo, nos apaixona e nos faz admirados nos
sonetos de Augusto dos Anjos – poemas como Os doentes e As
cismas do destino, presentes em Eu, são mais repletos de
urbanismo e de uma linguagem inovadora do que quaisquer textos de
Mário de Andrade... Sobre Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar, entre
muitos, aponta-nos o caráter inovador – modernista – da poesia do
bardo paraibano: é quando ela rompe com as muitas conveniências
verbais e sociais da época, levando, o Augusto dos Anjos, a uma
mescla perfeita entre a beleza e o asco, entre os
momentos sublimes e toda a sujeira da vida, sem contar
certo prosaísmo, que triunfa sobre a rígida linguagem de seus
sonetos. Diga-me, meu caro Felicíssimo, isto é ser ou não ser
modernista? O que é o Manifesto Antropofágico diante de um
Eu? Antropófagos que eu saiba foram o Raul Bopp, a Tarsila e os
índios que devoraram o Frei Sardinha. Certo foi o Manuel Bandeira,
que não entrou de todo nessa história...
Isso sem falar
nos marginalizados como Graça Aranha e Monteiro Lobato; o primeiro
soube enxergar, antes de muitos, os enganos e os horrores do
Fascismo e do Comunismo bem antes de suas ascensões, é só ler o
Canaã; o segundo caiu no ostracismo, vitimado pelo
“cooperativismo de suínos”, algo que os paulistas de 22 aventaram
como ninguém, por falar a verdade mais óbvia: que aqueles trabalhos
de Anita Malfatti, tão aclamados pelos seus patéticos
colegas, eram, e são até hoje, uma coisa ordinária. Não obstante,
Monteiro nunca disse que ela era má pintora ou que, pelo menos, não
era talentosa. Seríamos capazes de enumerar, caro Gustavo, as
contribuições que os Contos gauchescos de Simão Lopes Neto
deram a Guimarães Rosa e ao seu Grande sertão: Veredas? Para
quem buscava a liberdade e o fim das segregações, ninguém mais
negou-nos a primeira, nem nos pregou mais a segunda, meu amigo, do
que os Modernistas paulistanos; não é à toa que, referindo-se ao
Modernismo de 22, Luís Augusto Ficher não se acanha em dizer que “o
Modernismo brasileiro, quer dizer, paulista, aquele que a gente
aprendeu no colégio e hoje virou cânone obrigatório, inescapável, a
ponto de excluir (da escola, dos manuais de história da literatura,
portanto do horizonte prático da vida cultural) autores que não
rezem por aquele catecismo – para os gaúchos é fácil ver isso, por
exemplo, com o desprezo por Simões Lopes Neto, reduzido a
‘regionalista’ e, pior ainda, ‘pré-modernista’. Sem valor,
portanto”.
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Em outros
termos, mas reforçando tudo que disse e deliberei acima, eu penso
que não existem versos livres; todo verso que se quer e se faz bom é
um verso formal; toda poesia que se cobre de uma linguagem, de um
ritmo e de temas que lhe são próprios, e que estão em comum acordo
com a tradição, a cultura e, claro, com o gosto, a razão, a emoção
de seu autor, é formal.
Se pegarmos um
verso antológico de nossa Literatura como:
Assim calmo,
assim triste, assim magro...
Muitos poderiam
dizer, o verso da Cecília Meirelles não é um verso de dez sílabas
poéticas perfeito, ou abre-se o verso em ...calmo assim...
para se obrigar ao decassílabo. Porém o que se verá e se sentirá, ao
ler este verso, mesmo fora de seu contexto, onde ele reina absoluto,
como reinará qualquer outro verso do poema, é um verso extremamente
musical e que se abrirá a uma infinidade de análises ou a outra
infinidade de sensações.
A formalidade
de um verso reside muito menos nas sílabas que se contam do que nos
significados que carrega. Com o próprio Alberto da Cunha Melo não é
diferente; sua contribuição à poesia brasileira é bem maior pela
tradição que florescem em seus versos do que na forma que criou: a
retranca. Isso, claro, sem tirar-lhe o mérito de uma, nem
diminuí-lo pela outra. Alberto da Cunha Melo sabia que, se tirarmos
os valores metafísicos da poesia, para nada servirá um verso senão
para o seu próprio enterro, “uma linguagem de catacumbas”, como ele
próprio dissera. Há uma grande diferença entre um soneto, por
exemplo, e um poema que se arruma em 14 versos. No primeiro, séculos
de tradição oral e lingüística, aliados a um formalismo elegante,
fundem-se à emoção genuína, à linguagem própria e ao talento de seu
autor; no segundo, apenas aglomeram-se versos que flutuam à deriva
procurando algo que lhes dê significado; por isso, se abusarmos
desta falsa liberdade do verso não comprometeremos não só a
identidade social da poesia como seu próprio valor
metafísico. O Exórdio de Yakala fala-nos bem mais
e melhor disso do que eu:
Levamos
fogo, não esponjas
ao trono sujo do excremento,
disputando o mesmo vazio
de uma estrela no firmamento;
jarros negros e estrelas, tudo
é uma busca de conteúdo;
ou somos renúncia ou cobiça,
atravessando esses planaltos
feitos de cinza movediça;
mas todos estamos em casa,
como os vôos dentro das asas.
GF – Aos seus olhos, que é professor, qual a
importância se levar a poesia para os jovens na sala de aula?
SD – Antes de qualquer coisa é
importante estender esta meta não só com relação à poesia, mas
quaisquer tipos de arte, contanto que, primeiramente, se observe o
caráter e a qualidade do que se está transmitindo os nossos alunos
como sendo arte.
Um dos grandes problemas de nossa atual
sociedade é que ela desaprendeu o sentido tanto teórico quanto
prático da palavra “critério”, ou mesmo “juízo” e “discernimento”.
Não quero, nem me cabe (aqui) levar esta questão a outras áreas, no
entanto, em termos de arte, o que vemos é um público incapaz de
diferenciar bossa nova de um pagode de mesa, ou que vai a um show de
arrocha como vai a um show do João Bosco sem se quer saber ao certo
o que ouviu e, mesmo assim, arisca-se a arrotar intelectualidade ao
sair de qualquer um dos dois sem o menor recato ou razão, a começar
por nossa classe média “letrada”. Por vários motivos, que seria
impossível enumerá-los em tão pouco espaço, termos como “bom gosto”,
“intelectual”, ou “mesmo erudito”, têm sofrido uma inversão enorme
ou um total descrédito, principalmente por parte de quem deveria
prezar por eles.
Por isso, quando tu me perguntas se seria
importante levar a poesia às escolas, a resposta imediata é sim e
por quê? Porque poesia é arte e por isso mesmo é uma manifestação da
raça humana plena de transcendência; porque é a mais completa
manifestação do espírito e da inteligência humanos recortados pela
racionalidade dos códigos possíveis: a música, a pintura, a
escultura, o teatro, a dança e, claro, a poesia... E em todos
reconhecemos o potencial, inato ao homem, de expressar emoção,
beleza e razão. Algumas pessoas dominam ativamente
estes códigos e conseguem conceber, criar a obra de arte; são os
artistas: poetas, músicos, pintores, teatrólogos... Não é levando
arte às escolas que, necessariamente, criaremos tais pessoas, mas
não deixa de ser um incentivo e tanto; contudo, existem outras
pessoas que, apesar de não serem criadoras, integram-se com a arte
por meio de sua apreciação, descobrindo novas formas e sentidos; são
os estudantes, os críticos e, sobretudo, os admiradores da arte.
Formar estas pessoas é uma obrigação para nós que educamos... Daí,
porém, mais imediatamente ainda, vem-me uma angústia: mas que
poesia, ou arte, seria levada? Com que tipo de literatura os milhões
de alunos deste país teriam contacto? Será que, ao saírem da escola,
mesmo não se tornando escritores – ou, se quer, grandes intelectuais
– estes alunos seriam capazes, como cidadãos dotados do mínimo
possível de educação, de distinguir um texto de Pe. Antônio Vieira
de uma das piadas bem arrumadinhas do Luis Fernando Veríssimo e,
melhor ainda, dar a eles o devido valor que cada um têm em suas
estruturas e contextos? Teoricamente, qualquer escola de zona rural
estaria apta a dar a seus alunos algo aparentemente tão simples e
lógico, todavia, o que temos em nossa realidade...?
Quando, por exemplo, um aluno tem acesso a uma
educação musical esmerada, mesmo que ele não se torne um Stravinsky
ele não aceitará um tipo de música que não esteja em um nível
equivalente àquele ao qual está acostumado, pois, como conhecedor
das estruturas musicais e, tendo em si, um gosto desenvolvido em
cima de composições sofisticadas, a sua tendência é rejeitar o
frívolo, o simplista e o de “mau gosto”; assim, quando não formamos
grandes músicos, que é algo que depende, como na poesia, na pintura,
etc., muito mais do toque da Musa, certamente, formaremos grandes
ouvintes cada vez mais cuidadosos e exigentes com aquilo que lhes é
passado como musica. Com a poesia não seria diferente. Eu mesmo,
ainda no primário, tive professores “à moda antiga” que me
“forçavam” – e também aos meus colegas – a ler em pé, e em voz alta,
poemas e contos de vários escritores brasileiros e portugueses; qual
foi o resultado de tudo isso...? Para mim, conheci o Camões aos 10
anos e tenho poemas de Manuel Bandeira decorados desde o primário;
em relação aos meus colegas, mesmo os que não seguiram uma carreira
universitária, nunca ouvi deles expressões do tipo: “para mim
comprar” ou “para mim ver”, nem dificuldades em
interpretações básicas de textos ou reportagens, como se é possível
ver nos alunos de hoje, educados no melhor programa de recrutamento
à Paulo Freire. Eu tento aplicar métodos semelhantes e, “de vez em
quando”, alguns “Guardiões” da pedagogia, imediatamente, me acusam
de antiquado, agressivo e aplicador de métodos de adestramento.
Muitos, após lerem o que digo nesta entrevista,
chamar-me-ão “fascista” – xingamento muito em moda nas rodas dos
ideológicos de esquerda e coisa parecida –, e dirão até que eu
desprezo a cultura popular e outras bobagens do tipo – porque não há
nada pior no mundo que dá razão a idiotas e sínicos –; mas não é o
caso aqui; o que eu quero é por as coisas em lugar preciso e lhes
dar os devidos valores. Eu penso que, se passarmos aos nossos alunos
os mais novos hits do Funk, ao invés do melhor que nos pode
oferecer a Música Erudita, ou mesmo o Jazz, a Bossa Nova e o
Chorinho; Haroldo de Campos, ao invés de Camões, ou João Cabral de
Melo Neto e Patrice de Moraes; se levarmos os nossos alunos para ver
e apreciar grafiteiros ao invés de Da Vinci, Caravaggio ou mesmo Di
Cavalcante, Carybé e Gabriel Ferreira; se, principalmente, os
ensinarmos que não há diferenças, nem hierarquias, entre estas
coisas e as outras, como querem e praticam muitos, com auxílio tanto
dos cofres públicos como de uma intelectualidade tão bem
intencionada quanto pode haver no Inferno, destruiríamos, como já
estão a destruir, todos os grandes valores que vêem formando a
sociedade humana há milênios; perderíamos a própria noção de
contraste que é a forma mesma pela qual o nosso pensamento e o
nosso raciocínio trabalham ou a nossa perplexidade que é a
forma mesma pela qual o nosso pensamento e o nosso raciocínio se
formam e pararíamos estuporados diante de um mundo onde a menor e
mais insignificante expressão possível andaria de mãos dadas com a
mais genuína e grandíloqua linguagem. Este mundo nefasto é mais real
do que imaginamos e está se formando e se expandindo tanto nas
escolas, quanto nas ruas e até mesmo em nossas casas... Tudo porque
alguém começou a acreditar em algum idiota que disse que noções de
bom e mal são noções criadas para a segregação de
classes, ou coisa do tipo...
Levemos poesia sim, mas boa poesia acima
de tudo; e boa poesia só pode nos ser dada por aqueles que têm um
compromisso com os grandes temas da humanidade, que expressam estes
temas com a mais sofisticada linguagem possível e não abrem mão das
influências daqueles que, como eles, se apegaram aos grandes valores
construtores deste nosso mundo há séculos para não sermos vítimas
daquilo que Bruno Tolentino, em sua última aula (conferir: Dicta
& Contardicta, nº 1, IFE, junho de 2008), referindo-se a um
livro de Roland Barthes, chamou de Le degré zéro de l’imposture
e depois, levando em conta a proximidade sonora, de Le degré
zéro de épluchure:
...como se o macaco pegasse a banana e jogasse
a fruta fora porque acabou de descobrir a casca. Um país inteiro que
já deu Baudelaire, Racine, Villon e até Voltaire com aquele
beicinho, uma das grandes culturas do mundo, de repente descobre a
casca de banana e lança-se inteiro naquele estado de adoração do
nada.
Desta maneira, para que não nos aconteça
mesmíssima coisa, até porque, yes! We have bananas... é
preciso prezar o quanto antes pela boa qualidade de tudo que é
ensinado aos nossos alunos, principalmente, acredito eu, no que
concerne à poesia, por todas as razões por mim apontadas ao longo
desta entrevista – principalmente a de que, pela poesia, a
inteligência exerce a triagem e reorganização do que foi apreendido
criando os esquemas eidéticos, ou conceitos abstratos das
espécies, com os quais poderá enfim construir os juízos e
raciocínios e coisa e tal... Mas tudo passa sobre a terra...
Feira de Santana, 17 e 18 de novembro de 2008
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