Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Miguel Carneiro


 

A poesia telegráfica de Zeca de Magalhães

 

“O belo é um perpétuo equívoco entre os homens”
Graça Aranha


 

No pomar intrínseco e seco da literatura baiana, floresce a “mauvaise herbe”, responsável por uma poesia descompromissada, sem grandes vôos, crescendo assustadoramente entre a cultura oficial das elites, enchendo de laudas descartáveis o espaço precioso da mídia soteropolitana. Maus poetas, senhores de si, forasteiros, de peito empinado feito pombo, pelos coquetéis da província, a se acharem a cocada preta da poesia baiana, única de vanguarda e renovação, na terra onde o Boca do Inferno, cantou um dia: “A Bahia se escreve com dois ff: um furtar, outro foder”.

Ao contrário dessa seara, floresce a poesia de José Narciso de Magalhães Carvalho Moraes Filho (1959), Zeca de Magalhães, Kzé, sobrinho-bisneto de Graça Aranha, o mesmo autor do clássico Canaã, carioca da gema, torcedor fanático, como o dramaturgo Nelson Rodrigues, do Fluminense Futebol Clube, das Laranjeiras.

Aportou nessa terra de malas e filhos, na longínqua década de 70, participando ativamente do Movimento Poetas da Praça; foi um dos seus fundadores. Após ter publicado uma centena de opúsculos mimeografados, na esteira de Chacal, Pedro Bial, Carlito Azevedo, Eduardo Teles, Maninho, Ricardo Emanuel, Raimundo Brandão, Mário Garrido, Semirames Sé, Ametista Nunes, Damário da Cruz, Márcio Catunda, eis que lança, em 98, O Nome do Vento, Selo Letras da Bahia, colocando a sua poesia nos trilhos da legalidade oficial.

Quem troca o Rio de Janeiro pela Bahia vê a mesma identidade. Em vez do Corcovado, a Colina Sagrada do Bonfim; em vez do Morro da Mangueira, Alagados; Pela Porco, Avenida Peixe, o mesmo suingue que une as duas paisagens. Há entre o Rio de Janeiro e a Bahia uma espécie de fluxo, de rios correndo; Tia Ciata, Assis Valente, Olney São Paulo, Dadá Salgado, Márcio Salgado, Ely Britto seguiram para a “Cidade Marvilhosa”, e lá na Guanabara de São Sebastião teceram a sua história.

O poeta Zeca de Magalhães, com seu livro A Oeste de Meu Coração, (Selo Letras da Bahia), vem preencher uma lacuna, na mesmice que rola na poesia baiana. Sacudir de vez o marasmo, e o protecionismo, da terra do Major Cosme de Farias: “o baiano paga duzentos para o sujeito não ganhar cem”.

Mas o poeta brada: “Virgílio em êxtase / perguntava pelos campos / afogados nas delícias / meus pensamentos / percorriam ruas / a memória perdida / no poema do século / enfrentar calúnias / no latim dos desgraçados ...”.

Há tantos poetas baianos que caberia uma lista daqueles que não se privilegiam, que não participam de escusas igrejas, de grupinhos fechados de “geração”, dessa imbecilidade acadêmica de agrupar poetas por décadas. Como se a poesia estivesse atrelada a um determinado tempo na história e os seus bardos e vates não transcendessem com a sua obra os séculos no advir. Fosse assim, Camões, Gregório de Mattos, Castro Alves... estariam datados a determinada época, e a sua poesia não avançaria o norte dos milênios. Perguntar não ofende: a poesia que se fabrica na Bahia pertence a uma elite de bolso puro?

Em minha terra natal, Riachão do Jacuípe, no interior baiano, um descampado de caatingas, onde vicejam jurema, unha-de-gato e gravatás com cascavéis na moita e que crescem indiferentes aos homens, tinha um poeta popular, Zuzu Botina Cortada, que do alto de sua paralisia cerebral e peditório, cambaleando, bradava: “Ô terra que tem mardade, ô terra de mardição, rodei a Bahia toda atrás de um apilide de esculhambação, só encontrei Salvador que está de orêia cabana se arrastando pelo chão”.

Na velha província do Salvador, a poesia campeia num jogo sujo de laureados, poetas medíocres, sem compromisso com o povo; “o fumo de todas as vaidades / insiste em ser literatura”. A função de um poeta é dar voz a seu povo, ser antena da nação, colocar nos trilhos do idioma pátrio uma poesia que clareie faróis, abra nortes, e se insira no meio de seus cidadãos.

A Oeste de Meu Coração reúne quarenta e oito poemas, com sonoridade própria e com ritmo de suave galope. O poeta tricoteia sintagmas, brinca com metáforas e passeia, com “5 Idéias e um Poema Japonês”, pelos haicais, num balanço de bossa, deixando o leitor preso a sua arte poética: “Omascatemascamosca”.
 

“Martelar palavras / com pregos nos sonhos / toda cor é plural / singular o destino / a poesia escorrendo / pelos poros feito soro”.
 

A infância, os recônditos perdidos da memória vêm à tona na poesia de Magalhães: “No castelo alta madrugada / nuvens negras pairam / sobre as torres incomunicáveis / a minha infância / deixada no horror dos sonhos / é plenilúnio no vento / esfumaçada origem / minha avó anunciava tragédias / nas canções dos nibelungos...”

O poeta evoca em canções paisagens distantes e inatingíveis: “Em cada serra / encerra o vale / seus homens, suas águas / entre árvores / crescem, correm, somem / vem e vão/ como o vento / sol e chuva / é sempre o mesmo tempo / em tantos diferentes lugares...”

Novamente o poeta “engagé” dá o seu testemunho despojado e sincero, destila seus venenos: “... Onde lavar as mãos?/ não posso deixar de fazê-lo / é absolutamente necessário / ter as mãos limpas / a cada crime cometido / / mesmo em pleno deserto / na mais profunda noite / só com as mãos limpas / se está pronto, / para o próximo crime”.

Resgatando nossos heróis nacionais com seu ideário libertário, Narciso traz à tona o desejo eterno e sagrado de todo poeta: “la liberté”, cantada pelo poeta Paul Eluard, que sem amarras e sem peias povoa o nosso imaginário: “São claras as reticências do desespero / nas vírgulas escondidas em metáforas / a tua falta é incrível métrica // ... a língua livre / violentando o vácuo vesgo / LIBERTAS QUAE SERÁ TAMEN / Gerais Minas de delírios...”

Na reinvenção das horas, em silêncio, no fabrico do verso, Zeca acolhe os fantasmas do porão de sua alma: “Balbucio letras / setas burilando / palavras... // bolinando vírgulas / engulo sombras / sobras... / sobram palavras / em minha boca / os dentes caem / um a um / mordendo a lua / que não vejo”.

A “Rainha”, que é a morte, toma assento também na poesia de Magalhães: “os despojos da morte / alimentam eternos urubus / o sono no murmúrio da dor / a alma humana / rindo à eternidade / a falácia das ilusões / um burburinho melancólico / desfia os dedos no ar / uma sombra veste a noite”.

Embarcamos na lucidez da viagem poética do bardo carioca: “os barcos da janela / navegam para o mundo / ao infinito impossível / da janela navegam / os olhos alcançam / viagem que faço, eterna”:


Nenhum espaço em branco
é impune
nenhum espaço negro
é impune
nenhum espaço
em negro e branco
satisfaz o tom
cinzento dos ratos
que roem a nossa raiz.


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Brancas
pérolas negras
balançam
ao vento brando


a oeste de meu coração
a cordilheira contempla
tais sais, outros oceanos


balança
o canto banto
que negras memórias
almejam


alvas alucinações


desencontrados silêncios
mergulhos
marulhos
de outrora


flores de pétalas
transparentes



1


No castelo alta madrugada
Nuvens negras pairam
Sobre as torres incomunicáveis
A minha infância
Deixada no horror dos sonhos
É plenilúnio no vento
Esfumaçada origem
Minha avó anunciava tragédias
Nas canções dos nibelungos
Siegfried e os vampiros
Barbarizando reinos
E os dias diferentemente iguais



2


nas manhãs do princípio
que para mim iniciam-se
princesas histéricas
rasgavam livros antigos
toda loucura é ficção
e o príncipe sempre belo
o rei tirano
estórias e delírios
rainhas amorfas
o alarido de meus irmãos
futebol e jogo de botão
qual uma quizília
em lágrima serena


Nós fomos jovens
e fizemos juras de amor
permanecemos jovens
nem tanto até
que a morte nos separe


mesmo que imaculado
o caderno desenhe
uma mancha de fígado


até que
a morte nos venha


mesmo que nada traga
valeu o tempo
a chuva levando rotas


até
que a morte morra


em nós
          em todo sangue
                                em qualquer flor...

 

 

Leia Zeca de Magalhães

 

 

 

 

 

08.09.2005