Miguel Carneiro
Na poeira do tropel: poesia e
verdade em
Gustavo Felicíssimo
Poesia é a memória dos deuses em cujo
diapasão ressoa o som de trombetas, sopradas por anjos, numa melodia
divina para acordar os homens da letargia do inominável. Poesia é
sopro, voz do mistério que eclode no deserto das horas. Poetas são
coxos de lembranças nomeando mundos imaginários, adormecidos no
limbo do “eu” coletivo. Ninguém escolhe a poesia, é a poesia que
escolhe o poeta. Zanzador de mundos, trilhas gastas na miragem do
olhar, o poeta Gustavo Felicíssimo (Marília, SP, 1971), vem fazer da
“art poétique” não a megera, a madrasta, mas a própria irmã de
pelejas e recitais.
Tom de voz sempre alto, como se
estivesse o tempo todo a declamar, Felicíssimo surgiu no cenário
literário da província de São Salvador da Bahia de Todos os Santos e
inevitáveis demônios há cerca de três anos, com identidade própria
no labor do ofício poético. “Batalhão de Estranhos”, esse seu
primeiro livro ainda no prelo, emerge como um canto de adjutório de
homens, num mutirão de voz ibérica, clamando afinado numa pauta de
claves toantes, transpassada num uníssono de universalidade e com
toda a singeleza do versejar nordestino, praticado por gente como
Minelvino, Jotacê Freitas, Machado Nordestino, Ascenso Ferreira,
Maria da Conceição Paranhos, Damário da Cruz, Henrique Wagner,
Geraldo Maia e tantos outros.
Vem de fundo, povoando o imaginário
desse bardo tupiniquim, tangedor de alegorias. Para começo de
conversa, Felicíssimo, chicoteia de peia de caruá, sem pedir arrego
aos cânones: “Poetas não seguem manuais”. Breve aviso ao leitor
incauto, acostumado a fórmulas e tratados aristotélicos e
academicistas. O poeta desvela-se num testemunho: “Sou parte da
humanidade que se perdeu / Carne carcomida que não se reconhece /
Por isso tantas cruzes em meu caçuá” (“Auto-Retrato”, pág. 7). Vem,
esse moço, andarilho de trecho, enunciando verdades numa época em
que há rebanhos de poetas de pêlo pesteado. De mão na bunda, da
mídia descartável que garante apenas cinco minutos de fama e poder.
O poeta paulista José Paulo Paes, conterrâneo de Felicíssimo, disse
certa feita, em entrevista a Carlos Felipe Moisés:“ através da
literatura aprendi a ser humilde, não no sentido de me rebaixar mas
de não me sobrevalorizar. Isso me levou a ter uma grande aversão
àquilo que se pode chamar de soberba intelectual, a mais danosa e a
menos justificada das soberbas. O pecado capital da vida intelectual
é a soberba. O vedetismo, a autopromoção, essa ânsia, essa avidez de
fazer carreira está ligada à soberba intelectual. A pessoa se julga
tão importante que quer, por todos os meios, ver-se reconhecida urbi
et orbi”.
Gustavo Felicíssimo passa como uma
chuva na terra de Jorge de Souza Araújo, Gasparetto e do saudoso
epigramista Alberto Hoisel. Na rédea do tropel, numa montaria de
ciganos, pisando em chãos brasileiros, cuja geografia se amalgama no
território do matulão. Passeia, viajante, revendo sem véu, no
confessionário da memória, a alma de nossa gente. Só acredito na
poesia que revela mundos, fotografando em grandes zooms a realidade
do tempo em que se vive. Toda poesia hermética, eivada de signos
impenetráveis, a mim não interessa. Mas a poesia de Gustavo passa ao
largo dessa demanda e tem a marca, mesmo inconsciente, de Dom Pedro
Casaldáliga, Adelmo Oliveira e do esquecido Geir Campos, nos quais
as questões sociais afloram como denúncia e testemunho. Nestes
tempos de saraivadas burlescas, perpetradas por uma mídia
tendenciosa, que a todo custo quer usurpar e tirar o mandato de um
homem do povo, nordestino, por essa mesma gente coronelesca de
currais estourados, os poetas não devem se calar diante dessa
ameaça. Poesia é luta e compromisso, jamais omissão e recolhimento
em seu próprio mundinho.
Desbravador de paisagens que se gravam
na retina, sem pouso, alpercartas de rabicho, sola de couro de boi,
curtumes de almas, delação infame no Cerco de Angico, madrugada da
desgraça, 28 de abril de 1938. Em “Fugacidade Contemporânea”,
observa-se Damarinho da Cruz, na cola, sem nenhum desmerecimento.
“Todo Risco” é antológico, fica perene na memória de qualquer poeta
baiano. Faz parte, se beija a fronte de Da Cruz, bardo cachoeirano,
dando linha, empinando arraias, botando a poesia baiana na América
Latina. Damário, também, corre trecho, visita países, irmana irmãos.
“Velas içadas / Meu barco pode
partir!” Felicíssimo nos envolve numa poética de náufragos: “Ás
vezes a viagem é longa; / ele se demora. / Namora o tempo e o mar,
...” Já, se disse que, na caatinga, quem marca a viagem é o boi, o
gado, nunca o homem. Não há pressa. E Gustavo, sem alarde, para se
aparecer, vem construindo, aos poucos, na mamparração dos dias, uma
poesia vigorosa, onde “livre da hipocrisia dos canalhas / Não te
arrancas de dentro de ti / Instinto que sobrevive ao instinto”.
Breve, breve como a chuva que bate no Sertão, “Batalhão de
Estranhos” será publicado, se inscreverá na poesia verdadeira que se
produz na Bahia, terra de tantos poetas como Wladimir Saldanha e
Mauro Mendes. Que seja, então, logo a edição desse livro de poesia
de Gustavo Felicíssimo, meu amigo, editado, para compor num concerto
não de quinze vozes, mas de duas mil. Gustavo faz poesia,
indiferente a essa gente canalha, de versos torpes e secundários, um
se escorando no outro – versos que não ficarão na história da poesia
baiana.
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