Gustavo Felicíssimo
MIGUEL CARNEIRO ACENANDO PARA O MUNDO
O ideal de uma crítica
literária é que o seu autor tenha a devida isenção e
o distanciamento emocional necessários para imprimir
um texto sem adjetivações supérfluas, como quase
todos são. Entretanto, no caso presente, em que pese
nossos esforços, essa é uma tarefa árdua, pois a
obra sobre a qual nos debruçamos é a de um grande
amigo, um homem bom, dono de um coração sem tamanho,
mas, sobretudo, um escritor que goza da nossa
admiração, seja como poeta ou contista.
Algum tempo corre ao
vento, à brisa dos dias, ao avançar das horas, desde
aquele dia em que o saudoso amigo Zeca de Magalhães,
dono de um discernimento crítico respeitável,
apresentou-me um conto de Miguel Carneiro, dizendo
que aquele seria um dos melhores contos feitos por
um autor baiano durante o último quartel do Século
XX. Tratava-se de “No viés do Franzido”, que
publicamos na derradeira edição do tablóide
literário SOPA, em junho de 2006. Fora uma grande
descoberta para mim, pois até então apenas conhecia
a obra poética de Miguel Carneiro, da qual sempre
fui admirador e divulgador de um poema em
especial, “Declaração de Princípios”, cujo ápice
está contido neste refrão: eu sou madeira de dar em
doido/ sou barro bom de alvenaria/ martelo prumo e
serrote/ sou poeta da Bahia. Tal poema faz parte de
um livro, exclusivíssimo, feito de maneira
artesanal, como alguns de João Cabral de Melo Neto,
com tiragem de apenas dez exemplares, distribuídos
para alguns familiares e amigos do autor. Após,
dediquei-me a conhecer melhor a sua contística e me
deparei com uma obra grandiosa, não pela quantidade
de livros publicados, mas pela qualidade do seu
texto que vem carregado de um grande sentimento de
mundo, enfeixado de humanismo, em linguagem concisa
e cortante.
Lembro-me de ter lido
“O diabo em desordem”, um livro de quase duzentas
páginas, em apenas uma sentada, depois seguiram-se
“Esconso e outras histórias” e “O coronel já não
manda mais no trecho”. Em todos esses livros, o que
percebemos claramente, é que o poeta, em momento
algum, está dissociado do contista. Pelo contrário,
um está amalgamado ao outro, complementando-se,
indissociáveis. Outra característica das obras
citadas é o fato de suas histórias estarem, na
maioria das vezes, situadas dentro do universo
sertanejo, que Miguelito traz no sangue.
De Riachão do Jacuípe
para o mundo, cantando sua aldeia, Miguel Carneiro
vai escrevendo sua obra, resumindo um cabedal
imaginário que emerge de suas lembranças e convivas
do autor, transformadas em personagens. Desse modo,
andando pelas ruas de Riachão, imaginamos ser
possível, a qualquer momento, topar com Gumercindo
Lélis, filho deserdado de Antônio Conselheiro, ou
com a menina de Duestano, transformada em esposa do
Coronel Trazíbulo Fernandes da Cunha, personagens de
Miguel Carneiro. Personagens e histórias que nos
parecem pertencer ao imaginário popular do lugar,
como se passadas oralmente, de geração a geração,
até encontrarem em Miguel Carneiro o interlocutor
ideal, da mesma forma que o folclore alemão
encontrou a excelência do texto dos irmãos Grimm.
“Trancelim dos
incrédulos” segue o mesmo itinerário das obras
citadas até aqui, apresentando-nos personagens tão
vivos e cheios de alma, como no conto que dá título
ao livro, cuja personagem, um vaqueiro corajoso,
doca de um olho, sendo que o outro apenas serve para
enxergar o que já está anuviado, mas que, no
entanto, havia corrido mundo atrás de samba para
vadiar. O conto corre em tom poético, com o
narrador, oculto, contando suas proezas na região da
Serra das Picas, suas leituras para o doutor que
viera de longe buscar um palavrório. Temente a Deus,
homem honrado, leva nos peitos esta vida vã...
O segundo conto deste livro é “O galo de ouro”, traz
como epígrafe o poema “Pedra Retorcida”, de João de
Morais Filho, cujo excerto que escolhemos corre
desta forma: Aquela porta que hesitei abrir/ largou
mão de sua fronteira/ e deu lugar a janelas/ que me
assombram pacientes,/ até que o frio as feche
novamente, ofertando ao leitor uma espécie de
preâmbulo ao mistério em que está envolto este
conto, repleto de enigmas, segredos e mortes de
aventureiros que descambam no mundo em busca de uma
jóia rara da ouriversaria que teria sido trazida de
Lisboa na nau do fidalgo e capitão-mor Pedro Álvares
Cabral. Mais, não nos cabe dizer.
O derradeiro conto do
livro é “Naquele dia eu vi o diabo de perto”, onde
Miguel Carneiro nos oferece uma narrativa urbana,
ambientada na invasão das tropas de Hitler à França,
mesclando realidade e ficção, prosa e poesia, marca
indelével do autor. Na voz de um poeta brasileiro,
comunista, o conto vai retratando o caos que vivia
Paris (onde Miguel viveu algum tempo) naqueles dias,
o drama dos judeus e também a difícil missão do
poeta: proteger um menino de sete anos, perdido em
meio ao caos.
De certo, fica-nos a
confiança de que, ao considerar a tradição oral do
seu povo, a contística de Miguel Carneiro
fundamenta-se na identidade cultural e social de sua
gente, registrando a história e suas personagens,
merecendo da gente do seu chão, autoridades e da
crítica, não apenas reconhecimento, mas também um
justo e demorado aplauso. Ao mesmo tempo, estamos
certos de que a reunião dos melhores contos de
Miguel Carneiro em um único livro seria capaz de
alçar seu nome ao mesmo patamar dos melhores
contistas do nosso tempo.
|