Jornal de Poesia

 Gerardo Mello Mourão
 
Pavana das Putanas de Copacabana 
 
 
 
 

De uma esquina, de outra esquina,  
do mar da noite, de uma noite e de outra noite,  
do mar da noite desmergulham tantos, a blusa  
subitamente roxa e a saia  
subitamente azul:  
nem chegadas nem partidas  
no aparição das pávidas esquinas  
aparecidas, desaparecidas  
entre emboscada e dança  
inefáveis infantas  
se maceram  
na pavana das putanas de Copacabana.  

  

Esta de branco, esta de verde, esta de roxo, esta de azul,  
esta de calças amarelas, esta de mãos negras, esta  
de nuca loura, esta  
de primavera no garganta o cigarro na boca e aquela  
de tornozelo triste  
e todas  
na pavana das putanas de Copacabana.  

  

Se conheço!  Vinhas  
pela beira do Alster, marinheira e hanseática:  
"Wovon kommen Sie?  Calcutta?" E descias o Rheno  
entre o trigal e as águas e  
de água e trigo  
douravam-se e aromavam-se os cabelos;  
lembras? a gôndola em frente à casa de Marco Polo,  
e quem silenciara e quem evanescera a redondez  
das ancas a ondular e sumir-se nessa esquina  
de Düsseldorf?  
 
 

De Koenigsallee a Koenigswinter tu,  
outono da alcova e noite — de onde? —  
musa do quarteirão — "je vous emmène?" — quem  
de nós te levaria  
em salva de mãos de prata dessa  
pavana das putanas de Copacabana?  

 
Enumerasse as cidades e as ruas  
e ao nome delas  
teu rosto respondera:  
foi assim em Florença aquela noite quando  
o lírio floresceu na pedra  
quando  
o lírio boiou nas águas do Arno e as Sabinas  
de onda e lírio  
raptavam os soldados e os turistas:  

Elvira Lopes abrira  
da feira de Crateús ao patamar da Igreja dos Teatinos  
de Munich a dança  
da pavana das putanas de Copacabana.  

  
Bem que amais enumerar o inumerável:  
como rompeis o sono dos catálogos  
à veia das cidades:  
"Frauen, mein Herr, Kaerntnerstrasse, die Graben, Viena";  
Por que não sai o Rei Baudouin à Porta de Namur e o Rei dos  

Céus à Porta Saint Denys,  
quando a rosa dos ventos desabrocha nos olhos  
e as que foram perdidas são achadas  
e nos Champs Élysées, no Boulevard des Italiens e na Chaussée d'Ántins surgem do mapa, surgem  
das partituras madrilenhas da Gran Via  
ao ensaio  
da pavana das putanas de Copacabana.  

  

                        Por quatrocentas pesetas  
                        a madrugada estremece  
                        e na fontana romana  
                        são atiradas de costas  
                        as liras de seus poetas  
                        e os corações das infantes:  
                        já sem cor, apenas úmidos  
                        do sangue e da aurora delas,  
                        os lixeiros levam baldes  
                        de corações sobejados;  
                        e onde eles foram no peito  
                        pregado um sete de copas  
                        lembra as sete punhaladas  
                        que uma vez assassinaram  
                        na esquina de Belfort Roxo  
                        a dançarina de rosa  
                        da pavana das putanas de Copacabana.  

  

                        Maria Clarice Lima  
                        quis falar, não pôde mais:  
                        numa golfada de sangue  
                        caiu morta na calçada:  
                        ("a flor do cáctus desabrocha a medo  
                        da noite tropical na mansa calma"):  
                        sobre sandálias de ouro  
                        a relva ondeia e cresce;  
                        os automóveis, os bondes e as bundas enfunadas  
                        das ondas da rua à tona  
                        se entregam e se furtam nas esquinas:  
                        sua ausência apalpada  
                        aos moldes de sombra e luz  
                        prometera repetir-se:  
                        ó presença irreparável,  
                        pantomima de gnomos na calçada  
                        que empalidece e treme  
                        à pavana das putanas de Copacabana.  
  
  

Às vezes, de repente, não são mais;  
seriam?  E esse aroma no ar, fleur de rocaille  
de onde vão se erguendo no elevador vazio do Hotel de Frankfurt  
as mãos, os olhos, a sobrancelha fuliginosa  
de Lore Lautz, de Maria Helena;  
  
e do convés do Provence ao cais de Anvers e aos aires  
de Buenos Aires  
e em tanta madrugada,  
e o céu de Deus e Aracaju e o silêncio  
no arrabalde da lua de Heidelberg e de Ipueiras,  
luaceiro de um pátio da Bahia,  
enlanguesçam nas pedras do Recife,  
surjam no Lido, surjam ou desapareçam,  
em todas as esquinas  
as esperadas inesperados dançam  
a pavana das putanas de Copacabana.  
  
  

                        Hoje, não estou a fim de homem:  
                        a fim de uma pavana mariposa, a fim  
                        de ao jogo de luz da lua  
                        não negar no chão da noite  
                        o jogo da sombra em dança:  

Vamos fazer amor?  Vamos fazer a rosa e a madrugada,  
vamos fazer a lágrima e o soneto, vamos  
fazer amor e morte?  

Um pas-de-deux e uma "partouse" de anjos  
na pavana das putanas de Copacabana?  
  

                        E norte e sul e leste e oeste  
                        ao sabor da rosa  
                        sobre as rosas-dos-ventos da calçada  
                        florescidos o bairro, a noite, a rua, florescido  
                        o quinto andar daquele apartamento,  
  

                        que ritos meneais agora em torno a um féretro,  
                        a um tempo carpideiras e defuntas;  
                        tantas vezes, quem sabe, taumaturgas,  
                        desceríeis talvez ao cemitério ou dele  
                        incorporadas e bruxoleantes  
                        ireis chegando ao rosto verde dos vitrais,  
  
  

                        bruxas de Orfeu,  
                        enfeitiçadas feiticeiras, ninfas  
                        e virgens e viúvas e mártires e noivas,  
                        tu — fêmea do príncipe apunhalado, tu,  
                        entre os postes da rua, entre os ciprestes,  
                        quem sois vós que chamais  
                        com flautas murmurantes  
                        entre umbigo e musgo,  
                        de onde sois, de onde não, pelas esquinas  
                        na pavana das putanas de Copacabana.  
  

"Je suis martiniquaise, mon chéri,  
tu n’aimes pas les martiniquaises?  
E às vezes chove tanto e de estrelas apenas  
restaria a dos olhos: fora uma delas  
dos céus da Martinica,  
iríamos os três — Lafcádio Hearn, Lafcádio de Baraglioul e este  
vosso cantor  
à roda de egipans, pelo bosque das dríades,  
iríamos os três pela calçada, bêbados,  
cantando a letra antiga: esta foi açafata, esta foi baronesa;  
o grande Pá não morre, morto é Tamos no Egeu, esta foi açafata,  
esta foi minha prima, esta foi minha noiva, esta foi abadessa  
quando os sonhos eram, quando  
não descobrira a noite  
da pavana das putanas de Copacabana.  
  

Na matriz da praça a voz do monsenhor:  
"dies irae, dies illa, solvet saeclum in favilla, teste David  
cum Sibilla";  
que levareis então? Este  
uma torre de petróleo, este uma torre  
de catedral:  
e se eu chegasse desse olhar, uma noite em São Paulo,  
embarcado dessa esquina, a bordo da madrugada,  
passageiro dessa  
pavana das putanas de Copacabana?  
  
  
Para que me chamais?  Por vós, por mim?  Por quatrocentos pesetas?  
Pelo metro do tempo que se parte e se perde o se ganha;  
de uma de vós, de qual, de quantas,  
eu soube um dia  
virilha e seio  
e bem que lembro ao sopro das narinas  
a relva tremer no púbise o coração no peito:  
e quem soubera se sou eu que vos busco  
ou vós que me buscais:  
quem outrora sabia das estrelas  
se buscavam no mar os marinheiros ou eles  
as buscavam no céu:  
por isto a noite dói,  
como doeu a noite, como doía o mar na noite aquela  
do encontro de Odisseu: quem clamara mais alto — o vosso  
apelo, ou  
a saudade de vós em que o guerreiro  
fugia à sua guerra e à sua paz?  
Pois não doía em vós a voz dos marinheiros?  
Quem convida, quem dança?  Danço eu ou dança Elvira nessa  
pavana das putanas de Copacabana?  

  

  

                        Testemunhas da noite e das estrelas  
                        testemunhas de mim  
                        talvez de um gesto desabroche um nome  
                        e no paralelogramo  
                        das sombras na calçada se repita a letra  
                        hebraica que traçaram uns dedos sobre a areia:  
                        que de areia e de pedra ao vento e à lua  
                        possam e duram  
                        as pavanas dessas  
                        putanas de Copacabana.  

  
  
 

(Castelo de Petersberg — Alemanha — 1958)
Veja a pavana do Antiquário de Veneza
Veja a Pavana dos Infantes
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