Pavana dos Infantes
Para Bárbara, Gonçalo e Antônio José
Subiam aos meus joelhos e diziam:
— "Pai, naquele dia, entre bandeiras e clarins, tu entravas
na Plaza de Toros. E depois de trinta verônicas, os
olhos
fulgurando mais do que os bordados de teu traje de toureiro,
com a mesma espada e o mesmo punho com que teu avô
atravessava a ilharga dos infiéis, atravessaste o coração
de um
touro".
E como eu lhes dissesse, espantado, que nada disso
acontecera e tudo não passava de um poema de Olivério Girondo,
— "claro — contestaram. De há muito te plagiam os poetas e
as lendas. Desde o tempo em que as ninfas se entregavam a
Orfeu e nos bosques da Grécia tua lira chorava entre flautas
partidas, entre avenas, o pranto da lamentação por Linos.
Não te lembras, então, dos sombreros na arena, das mantilhas,
das rosas e da orelha do touro te sangrando entre
os dedos? E te esqueceste do cravo e da mão que o lançou?
Pois
foi a mesma que te enlaçou a cintura e te levou à alcova
e
em troca de seu cravo
lhe plantaste no ventre a rosa de teus filhos.
Olha para nós!"
E como eu lhes dissesse que era fantasia aquilo,
— "claro —,volveram. Tudo é fantasia em teus olhos de fei-
ticeiro, em tuas
mãos de taumaturgo.
Pois não te lembras que um dia eras tu mesmo
um touro
e carregaste no lombo
uma rapariga
e de sua graça e de tua
fúria
nos fizeste?
Por isso ainda às vezes
quando escarvas o chão enfurecido,
ela
desmaia de novo sobre ti."
Como eu tentasse contar-lhes a história da cegonha
e um tom de lendo me tremesse a voz,
— "claro — tornaram. Tudo é lendo em tua vida e tu mesmo és
a maior dos lendas. Pois nem sempre te ocupaste de touros.
Não
te lembras, então, quando desabrochaste em cisne
e boiando no lago o corpo liso,
o colo arredondou-se e mergulhou
e boiavam também entre as águas as algas
e o pêssego de Leda à flor da espuma
e ali surgimos,
sobre os ombros o mesmo
orvalho que escorreu
dos cabelos de Vênus Calipígia."
E como eu lhes dissesse que era apenas uma história improvável
e antiga da mitologia,
— "claro — exclamaram. És
improvável o antigo como os deuses,
imemorial; e
tudo é mitologia:
teus dias, tuas noites e um dia
os outros deuses
invejosos de ti te amarraram a um monte e
as águias vinham almoçar teu fígado:
mas és mágico e forte e rompeste os grilhões e
disfarçado em criança
tuas irmãs te enviaram à ternura
da filha do Faraó,
a bordo de uma cesta sobre as ondas
de uma valsa ou de um Nilo. E
cresceste e conduziste
um Povo
e atravessaste
um mar
e tiraste
água da rocha.
O teu cajado elementar fendeu os elementos
e um Deus te pediu audiência na montanha."
Como eu lhes dissesse que não ficava bem inserir-me
na Bíblia,
— "claro — tornaram. Se
teu primeiro embarque foi no Gênesis
e em todas as esquinas te apontam
e apenas se confundem sem saber se
chefiaste o prodigioso motim dos anjos rebeldes
ou se
és o próprio Miguel
ou se
ao sopro do Senhor floresceste do barro
como de
tua costela e teu sono o enxerto da beleza
a que
enxertaste depois com nosso riso."
Como eu lhes dissesse que
nas esquinas apenas me davam boa noite e
não me envolvessem com anjos nem Adão,
— "claro — insistiram.
Nem teu rosto disfarça o Querubim
nem
o enigma de teus olhos a saudade do Paraíso de onde
foste expulso,
para onde
queres sempre conosco retornar
no carro de Eliseu."
Como eu lhes dissesse que sou apenas passageiro de um
automóvel alemão e não espero pelos carros de fogo,
— "claro — explicaram.
São eles que te esperam como outrora, quando vinhas da caça,
o palafrém, ou quando,
coberto de sangue e de poeira,
voltavas da batalha entre os barões feridos
ou dos muros de Tróia onde rugia
o ciúme de Helena que roubaras
para termos
um ventre de princesa onde medrar."
Como eu lhes dissesse que sua mãe era uma honrada
burguesa recolhida à mansidão do lar,
— claro — tornaram. Não te lembras
do dia em que a raptaste de tudo e de si mesma
e ainda agora a conservas
butim do coração
na pilhagem de todos os desejos.
E é por ela que colhes
da parede a bandurra pendurada
e danças no pátio e contos
tua cantiga andaluza com as mãos nos quadris."
Como eu lhes dissesse que não sei cantor e que jamais
dancei, nem mesmo a valsa humilde dos domingos,
— "claro — explicaram. Pois
a tua é a dança patética e
pregado na cruz tu a dançaste
quando
salvaste o mundo."
Como eu lhes dissesse que bastava desse jogo e não
ousassem blasfêmia e sacrilégio,
"— claro — exclamaram.
Tudo é blasfêmia
e tudo é sacrilégio e somos nós mesmos
em teus joelhos
testemunho sacrílego e prematuro
de tua ressurreição."
E numa risada gaia me saltavam dos joelhos e eram, na algazarra
matinal
meus filhos
e tuteando o rosto me encontravam
as feições do pai. |