Pavana do Antiquário
de Veneza na Piazza San Marco
Ao Conde Guido Corti
SIM, senhora, não é uma caneta-tinteiro é
uma lira
Mont Blanc,
talvez um decacordo hebraico uma relíquia, em todo caso.
Pendurada a uma coluna da Piazza San Marco, um músico
ambulante a deixou numa noite.
Depois dele, apenas os brisas de setembro lhe tangeram as cordas
Não! é uma peça rara, vale um milhão
de dólares,
é uma lira Mont Blanc, ou, como disse, um decacordo hebraico.
Judeu? Não. Veio de um país de ananazes
e lua cheia
e pereceu na primavera.
O "Corriere della Sera" falou não sei
de uns olhos verdes,
de uma piscina.
Mas a senhora sabe, ninguém se afoga numa piscina.
Contam nos bares esta é a versão dos bêbados
que
desapareceu na montanha:
talvez a cratera do Etna ou do Vesúvio.
Talvez os precipícios de Mont Blanc, ou Monte Branco, como
ele
o chamava.
Há uma bailarina romana que sustenta que foi
em abismos do Monte de Vênus.
É uma lira Mont Blanc, senhora, vale 1 milhão.
Em Veneza, senhora,
em Veneza e nas noites de julho, costumam acontecer coisas.
Naquela noite aconteceu chegar a Condessa do Rheno com seu
cão marron e seus tornozelos azuis, sobre calcanhares
cor de rosa.
Pois quero agora a Condessa do Rhenó com seu cão dourado
e seus cabelos e seu marido enganado em lua-de-mel
e o mel de seus cabelos à doçura da lua gondoleira.
Demitir-me de Laura e de Marina, pois quero agora a Condessa
do Rheno, sua voz e seu gato
e demitir-me de mim e assumir
as patas de seu gato entre queixo e ombros
e as narinas de seu gato entre orelha e nuca.
Demitir-me dos vivos e dos mortos e
ao vinho de seus cabelos
brindar a morte e o mar e
ao vinho agora de sua boca
embriagar-me e saltar nas piscinas em flor
e afogar-me em Veneza e flutuar depois
sobre seus olhos e,
príncipe,
boiar nos águas verdes em que Ofélia boiara.
Era uma vez um jovem envolto num lençol: e o linho branco
perdeu-se às mãos das raparigas e um adolescente nu
te veio ver
entre o mármore e o mar, tu,
Condessa do Rheno,
rosa de vinho o mar,
meu coração despetalado role sobre as pedras bêbadas
e ao mel de teus cabelos
adoce a brisa a juba do leão de bronze
e os sinos de San Marco e os clarins da orquestra e o báculo
do bispo
batam para anunciar
e os turistas atônitos indaguem
de onde chegarias:
do céu,
do mar,
dos tangerinas de ouro,
dos limões maduros,
do caule verde dos lírios.
Venho dos rudes países,
venho do sol do Equador
e nele lavei meus olhos
para inventar este rosto.
Venho de imensas lonjuras,
dia e noite ao remo atlântico,
ao remo e ao bote aprendendo
redondez de vela panda
e lance de duas pernas,
ao remo e ao bote aprendendo
esquipar de anca e popa,
donaire de proa e seio.
Nas cores de tantos águas,
tornei-me sábio em pupilas,
com tanto vento na espuma
aprendi cabelos soltos.
Venho da selva selvagem
e fui do aroma das flores
aprendiz hoje sou mestre.
Venho de bravos países,
onde em clara serenata
bandurras no mesmo tom
ao luar e à noite tanto
cantam o amor como a morte.
Quem me ensinou tua música?
Pois quero agora a Condessa do Rheno e depois nunca mais
Entre os mil e oitocentos turistas da praça, havia um macho
e tu.
No Harrys Bar as inglesas acenavam esterlinos aos gigolôs
e os
gentleman caçavam gondoleiros à beira das calles.
Cheguei de noventa alcovas,
cheguei dos "parties" do mundo,
cheguei ao fim da viagem
e a terra inteira é o contorno
do golfo de uns olhos verdes.
Ensaiada por flores e meninas,
ensaiada por gata, égua e cadela,
desabrochas no praça de São Marcos,
ensaiada por canto e geometria.
Um dia, uma noite, era uma vez a festa no castelo
e, súbito,
entre baile e música,
entre máscara e seda e serpentina e tanta gente,
do feérico salão, como de um jarro
a corola de teu rosto amanheceu
e o adolescente francês nunca mais te perdeu,
nunca mais te encontrou
nos caminhos da casa de Frantz de Galais.
Quero agora a Condessa do Rheno e quero
demitir-me de Joana de Aragão e de seu cânon
e minha noiva rumena, a mais bela de Bucarest,
naufrague em lágrimas e em lágrimas, amigo,
tu esposa birmana, la más bella de Mandalay,
con su peinado cilíndrico y ei pie dulce e pequeño.
Quero agora a Condessa que aprendi.
E se agora saltasses entre o mármore e o mar,
loura e magnífica,
desde o franco de Adão o logaritmo
se incorporara no ar,
te marulhara o nome formosa.
Não, senhora, dizem que nunca mais a viu. Mas,
uma vez traspassado o coração,
que importa à flecha ali voltar?
sim, a lira Mont Blanc,
quem não a ouvira nesta praça?
Se ela sabia?
E sabe ou não o fruto da flor de onde chegou
e a flor acaso do fruto para onde?
Não, senhora, dizem que nunca mais a deixou de ver:
nem a morte alcançara apagar em seus olhos
o testemunho da alegria:
tanto dura a visão de uma noite em Veneza
no fundo do coracão
"a thing of beauty a joy for ever.
Contou-a em todas as línguas e ela,
incomunicável e inescrutável,
à sílaba tosca recusava
número e nome.
E como agora, ao som desta lira,
era apenas sua própria metáfora
a Condessa do Rheno.
Não. Não chegou de súbito à Praça
de São Marcos
florescia nos sítios e no tempo e as auroras
lhe vinham ensinando
maneiras de amanhecer.
Teve dez anos no país do sol
e ao íris da madrugada o nome cambiante:
Carmen, Jacqueline, Nenen.
Talvez tivesse recortado os hinos de Araci,
talvez pintasse a boca de Sinhá;
tivera um dia o gesto de ajeitar os cabelos numa casa noturna
e a aparência de um instante
no retábulo gótico de um palácio alemão
de Santa Maria de Ouro.
Florescia no tempo e nos lugares e ele
longamente a esperava com seu cão na praça de São
Marcos.
Se ele morreu de fato?
Nesta lira Mont Blanc, senhora, ele cantava
que a morte é o vinho das vinhas do amor.
Fatos? Desencadeou-se sobre o abismo.
Morrer? Morre, acaso, o valete de espadas na vasa perdida
ou funciona a morte entre os que trocam com o Anjo
o olhar da eternidade?
Não senhora, o amor não morre e os possessos dele
como o violão prenhe de música
já não são mais que instrumento do amor.
Pois quero agora a Condessa do Rheno,
que a beleza é a profissão do homem:
macho e sábio, da beleza me ocupo.
Leve, senhora: talvez tocando esta lira nos noites de Oaklahoma,
um pássaro, uma estrela, um pêssego lhe digo
a história dele, diga
os olhos da Condessa.
Se se trata de amor?
E que é o amor senão a possessão da beleza?
Outro dia, senhora,
um mouro matou sua mulher em Veneza.
A bela degolada não morreu e às vezes
passa enluarada, ao longo do canal,
na gôndola fantástica.
Mas o mouro, senhora matou-se para sempre.
Leve este alfange da época, esta bainha de cristal de Murano.
O mouro? É uma lendo, senhora, como o dilúvio:
quando o deus iracundo se deu conta de
já não possuir o mundo,
não mais podia amá-lo.
E acabou-se a história, acabando-se o amor.
Leve, senhora, é uma lira Mont Blanc, comprada em Bonn, ao
pé
da casa de Beethoven, fabricada talvez pelo mesmo
artezão que lhe afinou o cravo e lhe fez a viola,
Vincenzo Ruggero. Em suas cordas, Teresio de Brunswick,
apaixonada, acompanhava o trauteio do Mestre
nessa Klavier Sonate, opus 27 ... tra-la-ra-la-ra...
ou no Ária des Florestan... ton-ton-ton-tin-ton...
É uma lira, senhoras vale um milhão,
e se as liras morressem, esta estaria embalsamada
Como? pelo aroma de seus cabelos.
Brincara diante de mim desde o começo dos dias
e a ordenação dos coisas.
E dizia: "j'étais chaque jour dans les délices, me jouant
sons
cesse devant lui, me jouant sur le globe de la terre".
Eu quero agora a Condessa do Rheno,
a aparecida da Piazza San Marco,
proprietária da noite aquela noite.
Seu rosto aguardo entre as cortinas da alcova
e seu pé oblongo e devasso, reinando sobre o travesseiro.
E adormeça na alcova castelã, que dela partiremos
em féretro de prata:
sobre a tampa o escudo agora de meu condado,
sobre o mar de Veneza para sempre e para sempre
sob a luz das estrelas adriáticas,
meu escudo teu triângulo de ouro, isóscele e arquejante,
a Condessa do Rheno! |