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Marco Polo


 

Fortuna crítica: Flávio Chaves

Polo e marco da poesia


in Jornal do Commercio, Textu@lidade
Quinta, 04.07.2002
 

 

De que é o silêncio construído, que sulcos o comemoram e lenços sinuosos o habitam? Tem hélices o silêncio, sigilo de pêssego, hábito de espera, vestimenta muda, fluxo angelical? Ou hálito? zodiacal?

O silêncio é um pólo, um marco, uma missa? Tem a espessura de um pássaro? É um silêncio um rio monacal, uma gazela de barro?

Um ancestral canoro é esse silêncio sinuoso, que atravessa o dorso das tardes de Domingo e dobra as vísceras das avenidas atormentadas?

O silêncio que neste livro grita, A Superfície do Silêncio, de Marco Polo, é limpo, metálico, lúcido e lúdico; tem pele e febre, é macio como maçã, estilhaços de seda o invocam. É de seiva e chuva tamborilando no lentíssimo ungüento da manhã, o silêncio que se ergue deste livro alado.

O silêncio, neste livro, é de mármore e de canção e prece. É silêncio que dança no ventre do abismo, debruçando sobre vórtices que se estilhaçam. É um silêncio circular, arquitetado como marco de um pólo de verbo e grito, da devassa do orvalho e da densa aurora escorrida no olhar, pele lavada na cachoeira, ternura deslizando no sumo do pôr-do-sol. É o poeta completo da nave, olhando a concha da lua no compasso aberto do firmamento silencioso.

Segundo o poeta do Vôo Subterrâneo, a palavra é clara, o silêncio é pássaro que passa sobre a praça, cai como o prato, despe a vidraça e despedaça sombras. Assim, pode-se dizer que é também um navegante no rastro de Apolo, buscando o cais do porto para atracar na palavra compartilhada.

Mas, pergunta-se, o silêncio tem forma e cor, compasso, esquadro, música, água? Que rumor o corrompe, que épura o corteja na superfície abrupta? Que aparência de esfera o onera? Que cálculo ou cone o magnífica?

Isso porque Marco Polo eleva o silêncio e suas profundas superfícies às alturas, onde gravita o lugar geométrico da Poesia.

O silêncio deste livro não é supérfluo, mas fluente e profundo; é finito, mas agudo como um tiro; tenso, como corvos num campo de lírios, íntimo e vivo como uma semeadura de puro trigo, a vertigem e o lirismo amarelo de Van Gogh.

As saliências do silêncio anunciam as agonias das manhãs e o róseo rumor maduro que ecoa da poesia de Polo, am embalo de bigornas e martelos que seu instinto musical denuncia.

As cintilações do silêncio, os espondeus primais, os silenciosos estilhaços, as metáforas supremas, tudo quanto comova a imóvel palavra e liberte a poesia, Polo arquiteta e constrói, com atenta paixão.Finda a paráfrase, pelo prisma da palavra, fala, e subjuga o silêncio ígneo e úmido que habita neste livro ávido de paisagens de vidro e de água larga, em infinitos alguidares derramada.

Aprendi com Marco Polo, lendo A Superfície do Silêncio, que a música não tem pressa e o tempo é algo a ser tecido.

Com Paisagem, divide Marco Polo a superfície do seu silêncio e desse sáfaro chão de páginas brotam poemas admiráveis, como Crucifixão ou Litania - o sangue da promissão fluindo pelo mangue, pela praça, pela vida, em líquida e sagrada procissão.
Em O Narrador, Marco Polo, apolíneo, e, também, báquico, porém contido, como um sermão de Vieira, mostra Deus, arquiteta-O e faz com que se O conceba, em ato e plenitude, como se a criatura desvendasse o criador, elaborando seu posto paralelo criado por palavras.

Entre o lazer do faxineiro da Torre de Babel, o porteiro da biblioteca de Borges e o fio metálico do conviva de Richelieu; entre a emoção ingênua da Santa Mãe e o desejo de Lázaro; brilha o poema Toledo, feito do aço da linguagem, cortado com a toledana espada, em fatias de metáforas raras.

Após A Anunciação, de Botticelli e a Toalete de Vênus, de Velásquez (onde a sombra do nômade e infinito rosto de Deus é captado em fugaz reflexo de um espelho), vêm em seguida - máquinas a triturarem o mosaico e o indefinido, as coisas sem harmonia, as cúmplices constelações do silêncio, as feéricas fulgurações das estrelas e as incertezas da página em branco.

São esplêndidos os dois poemas finais. Um, em imagens e visões exatas, apresenta os edifícios, esses frutos nefandos, monstros de vidro e aço, soberba e artifício (os Arranha-céus de Vidro, de Cassiano Ricardo). O outro, descreve o verso e o reverso de uma cidade (universo) no caso, o Recife - palco de edifícios, abrigo de excluídos, éden de magnatas; o Recife, cidade dúbia, bela, terna, áspera, cruel e amada.

Esse olhar sobre a nova safra poética de Marco Polo Guimarães traz à colação o grande Octávio Paz ,para quem poesia é conhecimento, salvação, poder e abandono, a que acrescentaríamos, descobrimento e epifania.

Outro poeta, Bráulio Tavares, aproxima Polo, ao dizer que a poesia é algo como um solo de saxofone durante uma noite de jazz.

O poema “Silêncio eleito, vem para mim cantar / No caracol da orelha percutir / Entoa salmos de pastorear / E sê canto que careço ouvir’, de Gerald Manley Hopkins, prefigura o polo deste livro marco, e Solos do Silêncio, do poeta e jornalista paraibano José Nêumanne, e demonstra igual talento em extrair do silêncio levas de palavras e em arte transfigurá-las, salvando-se de prosaicos destinos

Marco Polo demonstra, mais uma vez e cabalmente, que poesia não é pão e circo, ou arena de raras rimas, mas fé na palavra e no poder das imagens e da metáfora em comunicar, além dos sentidos e dos sentimentos, além das aparências e do ordinário entendimento.

Paulo de Tarso já dizia: “Se eu não tenho amor, nada sou”. Polo diz: “Tenho a poesia, sou; cartesiano e empiricamente, existo”.

Ante “A crise do Prosaico Pecado”, ergo a fé na palavra poética, no verbo fundador, na visão beatífica de Hoderlin.

Enfim, sob A Superfície do Silêncio, ergue-se a voz, brota a imagem, cintila o rumor da palavra, medram ávidas metáforas, proliferam brados e o verbo cintila entre as cinzas das estrelas e os sumos do orvalho.

A tal profundidade chega A Superfície do Silêncio que radares, trenas, coivaras, raízes, pássaros e leitores se transmudam para medir, sentir, saber, ver, tocar, provar, perceber e respirar as palavras, “em imagens e sons”, o verbo in concert, do maestro Marco Polo.


Flávio Chaves
É escritor, poeta e presidente da União Brasileira de Escritores (seção Pernambuco)