Manoel Ricardo de
Lima
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Jornal O Povo, Caderno
Vida & Arte
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60065.402 - Fortaleza,
CE
Ana, Paulo e Francisco
Para Paulo e Ana, no céu
Da geração
de poesia que se dizia ‘marginal’, durante a década de 70, sobrou
pouquíssima coisa. Havia uma precariedade de materiais, da linguagem
até o espaço editorial. E ainda, fresta que se abre para
uma justificativa: havia um momento político muito difícil
para qualquer empreitada em verso. Ficou nada daquela falácia poética,
daquela poesia de “manga de camisa”, sem força e sem preocupação
formal.
Como afirmou Cacaso sobre
tal poesia: “o valor do poema passa a depender menos de realização
literária do que da sinceridade - valor moral - que manifesta.”
O fato é que esta história de valor moral não atribui
ao poema nenhuma valoração de arte. E foram exatamente os
que criaram realizações pessoais, mais definitivas - contemporâneos
desse período, mas não coetâneos dele -, que escaparam
incólumes desse derrame esquisito: recuperar uma espécie
de afetividade nacionalista que o Modernismo não deu conta.
Falo de Ana Cristina César,
Paulo Leminski e Francisco Alvim. Este último, o único dos
três ainda vivo, em Barcelona, aperfeiçoou sua linguagem para
brincar de reconstituir as cenas mais banais do cotidiano. Ao mesmo tempo
que tragava a beleza dos senhores Drummond e Bandeira para seu verso mais
puro. E mais ainda, buscar distância da periférica e disforme
poesia marginal com o requinte de uma beleza particular. Em Luz, primeiro
poema de Passatempo (1974), Francisco é notoriamente a confirmação
do que afirmei; descreve secamente um abandono, a solidão, e registra-se
como poeta (no que esta palavra tem de mais sincero): “Em cima da cômoda
/ uma lata, dois jarros, alguns objetos / entre eles três antigas
estampas / Na mesa duas toalhas dobradas / uma verde, outra azul / um lençol
também dobrado livros chaveiro / Sob o braço esquerdo / um
caderno de capa preta / Em frente uma cama / cuja cabeceira abriu-se numa
grande fenda / Na parede alguns quadros // Um relógio, um copo”.
Paulo Leminski foi uma contradição,
um requinte de linguagem erudita misturada com a mitificação
do mais popular possível. Quis a vanguarda. Quis poesia em tempo
integral. Fez do pressuposto que a poesia precisa do poeta o tempo inteiro
- que poesia é língua, pesquisa, diálogo, busca da
própria pessoa - sua mais elaborada dicotomia: poesia é vida,
e vice-versa. Coisas como “um bom poema pode esperar uma década”
e “poesia não vende e é bom que não venda” são
exemplos do rasgo certeiro que é o verso de Leminski. A lógica
da língua quebrando e laborando o ritmo da tradição
e do novo: aniquilar e manter. A poesia de Paulo Leminski é desavergonhada
e toma por afundar o que não tem suor: “nada que o sol / não
explique // tudo que a lua / mais chique // não tem chuva / que
desbote essa flor”.
De Francisco, o diplomata,
o esgotamento definitivo do veio modernista; de Paulo, o orador beneditino,
a precisão da língua. O charme ficou mesmo para a beleza
e para a poesia de Ana Cristina César. A rigorosa, quase inglesa,
que terminou mito vítima do próprio suicídio. O distúrbio
gratuito é ver Ana, a poeta apenas, escondida atrás da banalização
mítica que lhe impuseram: a poeta suicida.
Ana escreveu uma poesia que
dialoga intensivamente com a página em que ela está sendo
escrita, uma espécie de andamento musical, quase síncope.
Particularizou tanto - os pezinhos, o jazz que ouvia, a Sylvia, o Eliot
e o Drummond que lia, o epistolário - que ergueu um monumento poético
de ritmo e forma exageradamente seus.
Ficou difícil ler
Ana sem prestar atenção ao tanto que ela preservou sua poesia.
Manteve uma distância sadia daquela gordura salobra que os marginais
praticavam e foi buscar diálogo nas quase conversas, diletantes
e confessionais, de Sylvia Plath. Sua poesia é a pretensa e difícil
tarefa da escolha de objetos humanos: “Quando entre nós só
havia / uma carta certa / a correspondência / completa / o trem os
trilhos / a janela aberta / uma certa paisagem / sem pedras ou / sobressaltos
/ meu salto alto / em equilíbrio / o copo d’água / a espera
do café”, e de confissões à queima roupa: “beijo político
lábios de cada amor que tenho”.
Francisco manteve-se mais
quieto, fazendo o que precisava. Paulo e Ana, vozes menos conformadas,
ergueram seus barulhos em silêncio e são, sem dúvida
alguma, as goelas que melhor pensaram poesia durante os anos 70 e 80. Pena,
não estão mais entre nós. Como escreveu Francisco:
“a vida é um adeusinho”; sempre.
Manoel Ricardo de Lima –
21. 07. 1998
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