Miguel Sanches Neto
Cidade Memorável
Nova coletânea poética de Ruy Espinheira Filho
recria sua cidade
íntima.
Valendo-se de
uma cartografia imaginária, Marco Polo descreve lugares fictícios a
Kublai Khan, em As cidades invisíveis, de Italo Calvino (Cia das
Letras, 1990). As urbes aparecem classificadas por blocos temáticos.
São cinco as que mantêm relação explícita com a recordação, sob o
rótulo de “As cidades e a memória”. A primeira, Diomira, repete
belezas existentes em outras cidades, o que dá ao viajante a
felicidade de se reconciliar com reminiscências que lhe são caras. A
segunda é Isidora, onde o estrangeiro encontra as imagens ideais de
uma cidade permissiva, própria para os prazeres da juventude. Mas
ele só alcança este reino na velhice: “Isidora, portanto, é a cidade
de seus sonhos: com uma diferença. A cidade sonhada o possuía jovem;
em Isidora chega em idade avançada. Na praça, há murmurinhos de
velhos que vêem a juventude passar; ele está sentado ao lado deles.
Os desejos agora são recordações”(p.12). Este descompasso de tempo
determina a impossibilidade de conjugar tempo e corpo. O terceiro
lugar inventado, Zaíra, caracteriza-se por uma percepção espacial da
temporalidade. A cidade é feita “das relações entre as medidas de
seu espaço e os acontecimentos do passado” (p.14). Ela é a soma de
todos os detalhes físicos em várias camadas de tempo: “A cidade se
embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se
dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo
o passado de Zaíra”. Todos os espaços anteriormente existentes.
Seria a cidade plena, de territórios e tempos justapostos. Funciona
como metáfora da totalidade. A outra cidade é Zara, que era
memoriazada em seus mínimos detalhes por sábios e por seus
moradores. Paralisada na recordação dos que a habitavam, ela
desapareceu: “obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar
a memorização, Zora definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo
mundo” (p.20). A sua incapacidade de mudança levou-a à inexistência.
Em Maurília, a última cidade ligada ao tema, há duas urbes, a dos
cartões postais e a de agora, uma não se reconhecendo na outra.
Embora sejam a mesma cidade, seus habitantes insistem que tomá-las
como distintas.
Estas fábulas
apontam para um desejo de habitar o espaço como experiência de
plenitude. Revela-se, assim, nossa necessidade de conter, negar ou
reverter o tempo. A cidade ideal teria as medidas de nossa
imaginação e, por isso, deixaria de estar sujeita às leis físicas.
Tal projeto só
é possível quando fundado na palavra com função memorialista, tal
como acontece na obra de Ruy Espinheira Filho: A cidade e os sonhos.
Salvador: Edições Cidade da Bahia, 2003. A cidade que se inscreve no
poeta, por sua natureza dilatada, é irmã da fictícia Zaíra. O poeta
escreve com o intuito de criar um espaço lingüístico luminoso, que
recorde o que se passou e faça com que continue ainda existindo:
depois ainda escreve
mais; escreve (e até
escreve que escreve)
para que a vida
seja um pouco menos
obscura e breve.
O verbo
escrever, repetido de forma exaustiva neste poema de abertura
(“Epígrafe”), mostra que a cidade levantada no espaço da poesia é um
discurso recorrente, é uma linguagem que retoma permanentemente suas
referências balizadoras.
Mas que cidade
é esta que o poeta freqüenta em sonhos?
Não são as
cidades reais onde viveu e sim um não-lugar sem latitude definida,
demarcada pela divisa móvel da recordação. “É, cada vez mais, / a
cidade dos mortos” (p.19), ou seja, o território dos seres ausentes,
por entre os quais o poeta se perde nas horas de solidão. O eu é,
assim, a memória viva de alguns entes e eventos. No “Epílogo”, ao se
sentir perto dos 60 anos, conclui: “Nunca me senti tão vasto / na
história contada em mim”. Não se trata, portanto, só da cidade dos
mortos, mas da cidade dos mortos que sobrevivem ao esquecimento.
Assim, o eu é tomado por um sentimento de “Permanência”, pois a sua
cidade íntima continuará existindo em outras pessoas:
À beira de partir, compreende
que não partirá.
Embora a viagem se cumpra,
esta e outras se cumpram,
não partirá.
Sua poesia é
movida por este desejo restaurador, funcionando como uma cidade
afetiva que se movimenta num mecanismo onírico. Os habitantes deste
território podem ser os familiares, os amigos, as amadas, certas
músicas, paisagens e até mesmo um rosto anônimo (“Névoa”). Tudo isso
compõe o espaço que se pregou ao eu, às suas retinas, que lhe deu
existência ao formá-lo e que continuará existindo após o seu fim.
Com o passar dos anos, estas recordações vão ganhando mais espessura
do que a cidade real em que o poeta vive, virando uma dimensão
visitada a todo momento em sonho:
Esta é a cidade dos sonhos.
A que me sonhou outrora,
a mesma que agora sonho. (p.93)
A cidade
inventa o eu e é inventada por ele, num processo de reciprocidade, e
se distingue por um ritmo calmo. A urbe de Ruy Espinheira nada tem a
ver com as imagens das metrópoles, em compassos acelerados,
construindo sobre a destruição, sempre projetada para a frente. O
progresso está condicionado a uma idéia de superação, de anulação e
de obsolescência permanente. Ruy vai contra esta onda progressista e
impiedosa, fixando-se em um movimento circular, de retorno aos
temas, de revisitação ao passado, de reencontro com a essência
temporal do interior. Sentimos a presença da província, com seu
ritmo lento, nos versos escritos com um visível desejo de nos
embalar, de nos transportar a uma experiência de tempo mais densa,
mas espessa, meio mágica. A sua não é uma poesia de ruídos, gritada
ou fragmentada. É uma poesia que tem a sutileza do sussurro, da
conversa tranqüila, num tom próprio de quem conta e encanta.
As rimas não
ecoam e nem os versos são forçados. Ruy Espinheira, não raro, os
prefere brancos, numa espontaneidade conseguida graças a um profundo
senso de ritmo, que nunca é o de tambores e atabaques imponentes e
exibicionistas, mas o das vozes relembradas. Há uma música suave que
faz deste conjunto de poemas uma peça única, com coerência temática
e rítmica.
A percepção
heraclitiana do tempo o toma como um rio em corrida permanente. Ruy
Espinheira nega este conceito, vendo o tempo como algo mais
estanque, desprovido de uma corrente que simboliza a passagem de
tudo. A água, nestes poemas, aparece represada. Estão lá a cacimba,
o açude e a moringa.
A cacimba é
definida como espaço da memória, da lama ancestral e do
não-movimento: “No sujo céu da cacimba / mergulham, ágeis, esguios.
[...] Estranhos heróis da lama, / água morta, calafrio. / Vos admiro
do fundo / do meu temor deste frio / do meu terror dessa água / com
seu obscuro vazio, / sua morte calada, calma, / sem alma de mar ou
rio” (p. 56). A cacimba de água parada e escura é uma espécie de
buraco de tempo, no qual o poeta reencontra-se com sua meninice e
seus pavores. Ele também se identifica com o açude, visto como um
tempo estático, que o aguarda para o encontro final:
E assim rolamos nas águas
desse sonho nevoento,
nos afogando, recíprocos:
eu em ti por muitas vezes,
de tanto em tuas águas
me assombrar. E tu em mim
(águas à espera no Tempo)
quando eu em mim me afogar.
Espaços de
encontro com a morte, fundados num pavor infantil, a cacimba e o
açude são as visões mais sombrias do Tempo – parado, profundo e
obscuro. A moringa traz a mesma idéia de água represada, mas dentro
de uma paisagem mais solar. “Moringas” é um poema antológico.
Perdeu-se o movimento no líquido guardado em recipientes de barro,
mas não a essência do rio, agora matéria anímica. Nas três metáforas
relacionadas à água, aparece sempre o barro, símbolo do homem.
Na calma das moringas
não se perde o rio.
Na água em repouso
ainda sonha o frio
da alma que flui,
espuma, ou voa (quando
se lança no vazio).
[...]
Na alma das moringas
O que sonha é o rio.
Apesar do fim,
do desfazer-se próprio de tudo que existe, o poeta encontra neste
objeto interiorano a chave para simbolizar a permanência depois de
mudado o estado, que de rio passa a água doméstica e íntima.
Água em
repouso, quietude em que se revive o passado, o tempo aqui é uma
promessa de união e de reencontro. A cidade do poeta não está na
superfície, é região submersa, recuperada no mergulho em águas
escuras ou no gole alegre de água fresca da moringa, em tranqüilo
estado de sonho.
Se o tempo é
água, o poeta é esponja que se encharca para retêlo.
Leia a obra de Ruy Espinheira Filho
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