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Miguel Sanches Neto


Crítica e estupro


Gazeta do Povo
08.09.97


Sérgio Sant'Anna, com Um crime delicado,
escreve uma alegoria sobre a arte da crítica.


 

Em uma de suas entrevistas, Manoel de Barros deixa impressa a sua idéia sobre a crítica: "A grande poesia há de passar virgem por todos os seus estupradores. Pode ser amada, nunca analisada" (Gramática Expositiva do Chão, p. 318). O que não sabe o poeta é que os críticos podem estuprar por amor - o que invalida a dicotomia por ele criada entre amar e analisar.

Manoel de Barros pertence ao grupo de poetas que vê a crítica como uma barreira entre o leitor e a obra. Esta também é a opinião de Millôr Fernandes, para quem o "crítico é a solteirona da arte". Já um Oscar Wilde (Aforismos) defende a crítica enquanto elo de ligação entre todas as formas de arte: a literatura, as artes plásticas, a música e (poderíamos acrescentar) o cinema. É através do cimento do verbo crítico que nasce o grande bloco da cultura artística. É evidente que a crítica que Wilde tinha em mente não se parece nem de longe com as ortodoxias teóricas que marcaram a nossa época. Para ele, a crítica tinha um estatuto literário, confundindo-se com o próprio ato criativo.

É como uma alegoria da atuação crítica que deve ser entendido o mais recente romance de Sérgio Sant'Anna, Um crime delicado (Cia das Letras, 1997). O narrador, um crítico de teatro que acaba funcionando também como crítico de arte, relata seu crime, transformando-se assim em escritor: poderíamos dizer que é o crime passional que o torna criador. Acompanhar esta trajetória é de suma importância para compreender a alegoria que condensa os conceitos e os preconceitos sobre a atividade do crítico no meio artístico.

O narrador, Antônio Martins, tem uma idéia, que se aparenta com a de Wilde, sobre a função da crítica como elemento articulador da produção de uma época: "o crítico é um tipo muito especial de artista, que não produz obras mas vai apertando o cerco em torno daqueles que o fazem, espremendo-os, para que eles exijam de si sempre mais e mais, na perseguição daquela obra imaginária, impossível, da qual o crítico seria co-autor"(p.28).

É tal concepção que caracteriza Antônio Martins em suas avaliações extremamente rigorosas dos espetáculos teatrais exibidos no Rio. Ser solitário e arredio, como todo crítico autêntico, ele sabe que ocupa o pólo da racionalidade numa esfera declaradamente passional: "Ora, ser crítico é um exercício da razão diante de uma emotividade aliciadora, ou de uma tentativa de envolvimento estético que devemos decompor, para não dizer denunciar, na medida do possível com elegância" (p.18). A consciência desta tarefa desmitificadora é que consolidou a sua carreira, intensificando assim a sua condição de franco-atirador. Sozinho não apenas no mundo artístico, o narrador também vive uma saudável solidão amorosa, permeada por aventuras sexuais sem maiores vínculos. Assim como não se deixa envolver pelas peças que critica, também não se entrega às mulheres com quem sai.

A mudança desestabilizadora acontece quando, por acaso, uma moça (que ele conhecia de vista) cai, literalmente, em seus braços, depois de um pequeno acidente em uma escada rolante. Para seu definitivo aprisionamento, descobre, somente após um equívoco grosseiro, que a belíssima moça apresenta uma insuficiência física: uma de suas pernas é atrofiada. Nasce-lhe então um amor marcado por um sentimento de proteção, intensificado pelo fato de a moça ter idade para ser sua filha. Marcam um encontro depois que Inês (esse é o nome dela) fica sabendo que Antônio é crítico. À noite, ele vai assistir a uma peça que, em outra circunstância, poderia lhe parecer piegas, mas faz uma crítica extremamente emotiva, envolvido que está pela aura do encontro com Inês. Na peça ele vê encenada a sua própria paixão. A emotividade aliciadora ganha vários pontos sobre o crítico.

Depois de um outro encontro com Inês, durante o qual ele bebe até perder o sentido, passa a ser atormentado pela lembrança vaga de tê-la visto nua. A imagem esquiva vem com uma recordação olfativa de tintas, o que lhe dá a sensação de ter estado num apartamento transformado em atelier. A dúvida que o corrói principalmente depois que recebe um convite dela para participar de uma exposição de pintores recusados, "Os Divergentes", é: seria Inês uma pintora? Se fosse uma pintora medíocre, ele se deixaria levar pelos seus sentimentos e aprovaria a sua obra?

Na exposição, descobre que a amada não é pintora e sim uma modelo. A imagem dela nua, que ele guardou no inconsciente, são as lembranças de um quadro em que a moça posa para Brancatti. É justamente este quadro que está sendo exposto. A mulher do pintor o procura, para saber sua opinião sobre a obra, mas ele se recusa a emitir qualquer juízo.

As tormentas de Antônio Martins vão aumentando. Está apaixonado por uma mulher que se expõe nua, numa tela em que a crueza de detalhes (como a muleta colocada ao lado de um biombo em torno do qual aparecem as peças íntimas da modelo) o machuca. Para exorcizar a presença de Inês, ele acaba inconscientemente procurando Maria Luísa, uma medíocre e deslumbrante atriz global. Assiste a uma peça dela em cartaz e depois a acompanha durante o jantar. Esta atriz já havia sido criticada por Antônio, mas agora, sob o impacto da nudez de Inês, ele vê a sua peça e se entusiasma com a atriz cujo corpo aparece envolto em véus. A comunhão sexual entre os dois acaba sendo frustrada pela nudez agressiva de Maria Luísa. O crítico se vê abrigado a escrever uma crítica favorável à peça e a enaltecer o seu erotismo velado: "Em suma, eu defendia o argumento - teatralmente irretocável mas bem mais discutível na vida real - de que a nudez escancarada, por mais deslumbrante que fosse, era também, senão casta e proibitiva, muito menos sedutora que um corpo revestido de adereços mais íntimos, que, antes de serem desvelados, cobrem de mistério, fetichismo, e, por que não dizer?, de misticismo a mulher" (p.76). A mistificação da mulher só acontece porque o narrador se sentiu ferido pela nudez da modelo por quem está apaixonado.

A verdade é que o crítico, que sempre se manteve distante do palco, começa a se deixar penetrar nele. Esta penetração vai se efetivar num encontro sexual com Inês. Quanto mais ele se deixa levar por sua latente emotividade, mas concessões faz. No terceiro encontro com Inês, ele desmascara o pintor que encarcerou Inês, transformando-a em prisioneira de sua arte. Antônio descobre que o apartamento em que ela vive é um cenário milimetricamente planejado por Brancatti e que ela não passa de um títere em suas mãos. Chorando, Inês admite a escravidão. Eles vão para cama e fazem amor com alguma violência.

Estava consumada a penetração do crítico no teatro armado pelo pintor. Como ser racional, forte e experiente, ele é incriminado por violentar uma frágil moça, com deficiência física e disritmia cerebral. Acusado de estupro, sofre um processo escandaloso, complicado por uma carta sua à amada, escrita no idioma da paixão, que vai acabar nas páginas dos jornais. O escândalo serve para promover o pintor, fazendo com que o crítico passe por uma situação ridícula.

Ele admite que o estupro só se deu se visto por um outro prisma, o que revela o caráter alegórico da história: "se estupro houve, rigorosamente falando, ele teria acontecido dentro de um quadro, cenário, instalação - ou seja lá como for que se queira classificar aquela obra - fazendo parte da mesma" (p.127). Sentindo-se parte deste cenário criado por Brancatti, Antônio Martins vislumbra-se parte constitutiva de uma obra.

O importante nisso é a polarização das posturas: o crítico é visto como um ser racional que se aproveita de uma moça desprotegida ao extremo (símbolo da obra de arte, que súbito é violentada pelo olhar masculino, violento e instrumentalizado do crítico). A obra, no entanto, só ganha sentido depois de passar por esta violência. A crítica aqui se assemelha ao crime, a um crime delicado que doa sentido à obra. Antônio Martins acaba sendo co-autor do quadro que, nesta passagem do racional para o emotivo, acaba sofrendo uma positivação: "passei a fazer parte, em definitivo, da obra de Vitório Brancatti. Os que pensarem que isso me causa desgosto, enganam-se, pois estar exposto num ambiente onde se inscrevem o espírito e o corpo de Inês, significa, para mim, ver fixados ali, como o fiz aqui, momentos que foram os mais caros e exponenciais para mim"(p.131).

No crime ele encontra o pólo que lhe dá o equilíbrio para a sua personalidade extremamente racionalista. A superação da racionalidade pura através do contato sexual com o objeto artístico leva Antônio Martins a compor a sua própria obra, narrativa em que ele fixa, valendo-se dos seus recursos profissionais, a passagem pelo território aliciante do amor e da arte. Ele deixa de se contentar em ser apenas o estimulador da criação literária para assumir a sua função de criador. Este crime passional dá ao crítico o estatuto artístico.
 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

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Alberto da Costa e Silva