Miguel Sanches Neto
Primeiro caderno do aluno de
poesia José Paulo Paes
28.07.97
Quando, em
1947, o jovem poeta José Paulo Paes entrava em cena com a coletânea
O Aluno (a 2a edição está sendo lançada agora, pela Editora UEPG,
para marcar os 50 anos de vida literária do autor), a literatura
modernista já assumira uma perspectiva histórica. Os jovens, no
entanto, tinham atrás de si não apenas escritores epigonais, embora
fosse manifesta a rotinização de alguns expedientes desta corrente,
e sim um conjunto significativo de grandes escritores que, superado
o estágio inicial de ruptura, tinha levado a produção literária a um
nível de qualidade ainda não atingido coletivamente em nossa
história.
Na produção dos
jovens, em fins dos anos 40, pode ser detectada a sombra dos
escritores que dominavam o campo literário. Isso, quer me parecer,
não se configura uma fraqueza de caráter ou de personalidade por
parte dos moços. É fruto da consolidação de um moderno cânone
poético nacional. Num certo sentido, os neófitos
em letras sofreram o peso desta ascendência. Ou seja, o dilema do
iniciante não era mais o dos primeiros modernistas, que precisaram
liquidar em bloco uma tradição rotinizada. Deles era exigido, além
da superação de alguns cacoetes modernistas, o aproveitamento das
experiências de uma tradição imediata altamente positiva, sem deixar
de privilegiar os elementos característicos de um novo estágio das
letras.
Tendo em vista
tal especificidade do contexto em que surgiu O Aluno, podemos
entendê-lo melhor. Diga-se ainda que Paes o publicou em Curitiba,
cidade para onde veio na condição de estudante secundarista. Ele
estava, portanto, num exercício duplo desta condição de aluno que,
em relação aos grandes vultos de nossa poesia, conotava um
sentimento de humildade. O poeta, em sua autobiografia (Quem, eu?
Atual, 1996), revela o sentido que a escolha deste título teve para
ele: "Ao escolher o título de O Aluno, eu queria deixar claro o meu
débito de iniciante para com alguns mestres" (p.38). O título,
portanto, era uma maneira de assumir as influências e de
neutralizá-las através da aceitação declarada. Isso que aparece no
título é confirmado por dois poemas que remetem à fonte: "Drummoniana"
e "Muriliana".
O Aluno é,
portanto, um livro que define a inserção de Paes no discurso poético
nacional, constituindo-se não apenas em uma fase de aprendizado, mas
em uma postura moderna de relacionamento com a tradição, embora o
autor vá declarar, em entrevista a José Geraldo Couto (Folha de S.
Paulo, 12/11/95), que tenha buscado
calar estas ascendências: "No segundo livro, Cúmplices (1951), eu já
tinha mais consciência de que tinha que lutar contra essas
influências para conquistar uma voz própria, o que acredito ter
alcançado a partir de Novas Cartas Chilenas (1954)". O seu livro
matinal, em função de uma carta de Drummond, teve o papel de levá-lo
a uma abertura para os grandes poetas universais, definindo a sua
futura carreira de tradutor.
Na carta,
Drummond recomenda-lhe a leitura de poetas de outras línguas: "Para
fugir aos modelos nacionais, leia os estrangeiros; é contrapeso
excelente, e imitação por imitação, a dos últimos nos faz ir mais
longe e nos universaliza mais, isto é, traz consigo mesma a
possibilidade de libertação". O Aluno, no entanto, não pode ser
visto como um momento de fechamento que será
superado por outros livros e por influências externas. É, isso sim,
o primeiro estádio deste caminho para a universalidade. Não podemos
esquecer que, vivendo no interior de São Paulo (Taquaritinga) e
depois em Curitiba, num período em que esta cidade se
distinguia por uma produção passadista, a descoberta dos nossos
grandes poetas modernos funcionou como uma abertura.
Não quero ver
neste livro uma subserviência cega à tradição, nos moldes em que se
pensa a Geração de 45. Daí a relação com o Primeiro Caderno do Aluno
de Poesia Oswald de Andrade, publicado em 1927, no auge da atuação
modernista. Oswald subverte a poesia através de um conceito outro de
livro, não mais visto como uma
coisa séria, mas como algo lúdico, provisório e irônico. O caderno
está ligado a um universo pré-adulto, que dá a chave de uma poética
em que o autor busca, mediante a infantilização do discurso, uma
postura primitivista. No prefácio da edição da Globo (1991), Raúl
Antelo afirma que "Oswald de Andrade não sonha com um Livro mas
rabisca num primeiro caderno que o confirma como aluno"(p.9). O
caderno é, para ele, o território mítico da experimentação, e o
autor que rabisca (ato subversivo por natureza) ao invés de escrever
a poesia está fazendo um uso não-normativo de suas páginas. Os seus
próprios desenhos, que ilustram a coletânea, chamam a atenção para
o traço infantil que corrobora a perspectiva de uma poética
sintonizada com a criança.
Assim, Oswald
escreve a sua poesia como a criança que faz do caderno um reduto do
sentimental e do subjetivo, tirando-lhe o peso de território da
transmissão do saber. É, portanto, um aluno que não cumpre as suas
tarefas escolares, rompendo com os conteúdos educativos. Esta
ruptura semantiza uma poética que não se quer normativa. Para José
Paulo Paes, localizado em um período em que a tradição conta com um
sentido positivo, por ter um perfil moderno, a figura do aluno ganha
uma outra significação: ele é aplicado, leva a lição poética com
mais seriedade e faz as suas tarefas, incorporando as influências de
forma comportada. Não existe, fique isso claro,
qualquer demérito nesta constatação, definida pela natureza do campo
literário naquele momento. Se nos anos 20 havia a valorização
estratégica da infância, no período em que Paes escreveu o seu livro
estava em voga a imagem do engenheiro, do ser que trabalha com
precisão e clareza:
No papel intacto há linhas
fundamentos de aurora, estrutura
de um mundo pressentido, linhas.
("O Engenheiro")
Isso faz a
diferença entre as duas posturas escolares: a que subverte e a que
incorpora. Mas, a despeito da intenção, o simples fato de Paes se
assumir como aprendiz, declarando paródico (de caráter admirativo) o
seu discurso, já dota o livro de uma
semente de ironia, elemento que vai ser valorizado em obras
posteriores. Ele estava atingindo a sua voz própria sem uma intenção
deliberada de fazê-lo. O Aluno pode ser lido como um momento em que
a poesia mais formalizante daquilo que ficou conhecido
como Geração de 45 se manifesta de forma um tanto irônica, porque a
condição de aprendiz tem algo de questionador. É, portanto, um livro
fronteiriço, que vai ganhar uma outra significação em decorrência
dos rumos tomados pelo poeta. Numa entrevista com Paes (O Caráter
Diferencial, Gazeta do Povo, 03/06/96), coloquei-lhe
justamente esta questão. É oportuna a resposta do poeta: "A idéia do
título não veio do Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de
Andrade, e sim de um poema de Jules Supervielle em torno do
aprendizado poético que li em tradução de Casais Monteiro.
Aproveitei a
dica para inculcar-me aluno de poetas meus antecessores. Há no meu
livrinho de estréia inclusive dois pastiches, uma 'Drummoniana' e
uma 'Muriliana'. Mas na própria imitação já havia um elemento
paródico e crítico. No pastiche há sempre uma certa exageração
cômica de cacoetes estilísticos. Relendo hoje esses poeminhas, sinto
a ponta de crítica bem humorada que neles havia". Ou seja, O Aluno é
oswaldiano antes de o poeta ter recebido a influência de Oswald, com
quem conviverá depois em São Paulo. Este parentesco é fruto de sua
atuação junto à revista Joaquim, que fez ressurgir, um quarto de
século mais tarde, o espírito iconoclasta da Semana de 22. Wilson
Martins percebeu no poeta este desvio do ideário da geração
condoreira de 45, desvio produzido pela luta travada contra os
abencerragens provincianos: "Tendo estreado em 1947 com O Aluno,
José Paulo Paes também se inscreve, mas apenas cronologicamente, na
Geração de 45, dela se separando e distinguindo, entretanto, pela
natureza de inspiração e pela conformação intelectual. Ele
pertenceu, por afinidade, ao grupo de Joaquim, que, como pseudópode
do Modernismo de 1922, ignorou, no sentido forte da palavra, a nova
estética surgida em São Paulo precisamente para constestá-lo.
Joaquim opunha implicitamente o ácido dissolvente e desmistificador
da ironia à solenidade hierática e erudita do Clube de Poesia, e,
criada em 1946, foi uma revista modernista porque só então as
correntes renovadoras de 1922 começaram a penetrar no Paraná em
termos coletivos ou geracionais; basta comparar-lhe o conteúdo e as
idéias com os da Revista Brasileira de Poesia, que surgiu em 1947
como órgão oficial dos poetas que então reconheciam, mais do que
decretavam, o fim do Modernismo andradino (quero dizer, dos dois
Andrades)" (Pontos de Vista, v. 12, T. A. Queiroz: p. 378).
De uma certa
forma, é esta dupla orientação, o tributo à Geração de 45 e o
espírito questionador do grupo da Joaquim, que vai distinguir este
livro fronteiriço com o qual o poeta deu início a uma obra que, sem
deixar de seguir os rumos da produção nacional, nunca caiu em
extremismos estéticos.
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