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Miguel Sanches Neto


Escritor de mãos ásperas


Gazeta do Povo
14.07.97

 

Imaginem um séquito de discípulos entrevistando um ateu irredutível, na tentativa de convencê-lo de sua santidade. Ou ainda, um agrônomo tentando provar para uma pitangueira que a fruta que ela produz não é pitanga, mas jaca. É isso que se passa na entrevista coletiva (de que fizeram parte alguns formalistas e teóricos de São Paulo) com Raduan Nassar, entrevista que consta do volume a ele dedicado dos Cadernos de Literatura Brasileira (Instituto Moreira Salles, setembro de 1996). O diálogo acaba sendo risível por explicitar uma leitura equivocada da obra do ficcionista.

Os entrevistadores insistem em convencer Raduan Nassar de que ele é um continuador das experimentações formais de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, na linha direita de Joyce e Pound. Apesar de todo o esforço de seus amigáveis inquisidores, o ficcionista não perde o bom-senso e deixa claro que sua obra não passa de respostas
diretas aos seus fantasmas interiores. Destacando o aspecto biográfico de sua literatura e recusando o parentesco formalista, Raduan tenta desfazer as distorções que se agregaram ao seu texto, questionando seu lugar no cânone das vanguardas nacionais.

Ele coloca em imagens domésticas as particularidades de sua obra. Assim, considera a linguagem como um ovo, que não prescinde de casca mas cujo valor está na gema. Nesta metáfora, há uma negação da supervalorização dos significantes em uma literatura que, segundo o seu próprio autor, deve ser lida pelo que há nela de genuíno. A gema, lembre-se, é a parte vital do ovo.

As vanguardas, que empreenderam uma cruzada antidiscursiva, são definidas pelo autor como uma estética do bagaço na medida em que,nelas, a palavra é apenas um invólucro: "Fosse então o caso de forjar uma escora, quando muito se poderia falar na estética do bagaço. Não vai aí qualquer conotação pejorativa, é só uma tentativa de adequação vocabular. Entre usar bagaço ou palavras em toda a sua acepção possível, cada escritor que [faça] a sua escolha"(p.24).

Raduan escolhe a escrita autêntica, que está próxima do sujeito que a produz e não dos modismos. Ele reconhece que os escritores memoráveis são aqueles cuja obra se distingue pelo investimento nos significados: Parte da crítica talvez tenha diminuído o conceito de estilo na literatura ao identificá-lo só no nível da casca. Kafka, que se valeu de um registro realista de linguagem, tem um estilo forte. Dürrenmatt, a mesma coisa. Alguns dos seus textos nos jogam para o espaço. De Dostoiévski, dizem até que ele escrevia mal em russo. As leituras que nos acompanham a vida toda foram as dos artistas de significados. Poucas vezes eles trabalharam a frase com artifícios visíveis demais, mas são deles as nossas leituras inesquecíveis (p.25).

Não é, no entanto, apenas contra as velhas vanguardas que se insurge o grande escritor. Ele é contra toda forma exacerbada de racionalismo, contra as posturas livrescas e a diplomacia interesseira. Raduan tem o cada vez mais raro dom de falar o que pensa, embora, em um ou em outro momento da entrevista, para não ferir amigos,
evite descarregar a sua fúria. Vendo-se como um autor que declina as posturas eruditas, ele luta (até biograficamente) para ser visto como um caipira, a quem pouco importam os valores artísticos aristocráticos. Apesar da clareza das colocações do autor de Lavoura Arcaica, os seus entrevistadores não deixam de defender o contrário. Por esta razão, a entrevista acaba sendo uma conversa de surdos, ou a justaposição de dois monólogos. No final, um dos inquisidores fica assustado com afirmações que, para os pingentes da vanguarda, soam
como heresia: É difícil acreditar que você tenha passado ao largo da teorização estética daqueles movimentos todos[...]. Por que esta atitude de recusa radical em relação às teorias literárias? [...]. Você parece não alimentar simpatia pelas vanguardas.

Uma postura de tal natureza mostra como a literatura brasileira tornou-se um equívoco. Mostrando-se como alguém que não vê possibilidade de literatura no caminho em que nossa cultura se perdeu, era natural que Raduan Nassar, sendo como ele é, marcado
por uma apaixonada intemperança, abandonasse a produção literária. Foi o mesmo motivo que retirou de campo por vinte anos um escritor como Carlos Heitor Cony. O retorno de Cony, felizmente, é definitivo e o do paulista parece estar cada vez mais próximo - embora seu mais recente livro, Menina a caminho (Cia das Letras, 1997),
seja apenas um pequeno sinal. Quatro dos contos reunidos neste volume são dos anos 60 e comecinho de 70, ou seja, são anteriores à publicação de Lavoura arcaica (1975) e de Um copo de cólera (1978). O único totalmente inédito foi escrito em 1996.

Trata-se, portanto, de um livro em que encontraremos um Raduan antes e depois de Raduan Nassar. O mais bem acabado texto do volume, "Menina a caminho" traz um recorte realista da linguagem, estando longe, estilisticamente falando, do trabalho mais elaborado com a palavra que culminará em Lavoura Arcaica. Trata-se de um rito de passagem prematuro que coloca uma menina em contato com o mundo impiedoso de um meio interiorano. A menina sai de casa e percorre as ruas lentamente, acompanhando a vida
lerda dos habitantes, o que transforma a narrativa num retrato de pequenas cidades.

Em cada parada, ele encontra os preconceitos e os indícios de um escândalo que a atingirá. Indiferente, percorre o seu itinerário, sofrendo discriminação sem, contudo, perceber o que está acontecendo. O escândalo com o filho de um comerciante não chega a ser revelado, o que mostra uma adequação do ponto de vista da história à situação vivida pela menina que presencia obscuramente um brutal processo de amadurecimento. Alguns símbolos são semeados ao longo de sua via crucis cega pela cidade. Os comentários sobre o escândalo nunca chegam a ser esclarecidos, mas ela vai passando por algumas experiências que evocam o desfecho epifânico de sua jornada. Acocorando-se despercebidamente ao lado de um cavalo, ela súbito descobre o sexo de piche que se desembainha para urinar.

O susto que a menina leva não é apenas por quase ter sido atingida pelo jato de urina, mas pelo descortinar de toda uma esfera da vida. Este episódio forte vai ser reforçado por um outro em que
algum meninos rompem a união de um casal de cachorro, fazendo com que eles desengatem os seus sexos: "[...]um dos meninos despeja em cima uma vasilha de água quente. O cachorro e a cadela se largam ganindo, cada qual disparando pr'um lado. O cachorro some de vista, enquanto a cadela, que vem na direção da menina, acaba se
dobrando de costas contra um muro, enfiando a cabeça entre as pernas dianteiras e lambendo sofregamente a queimadura de trás". A condição sofrida da fêmea, que não passa despecebida ao olhar infantil, é uma metáfora da condição feminina numa sociedade cruel (existe uma simetria entre este episódio e a surra que a mãe da menina leva do marido no final da história).

Em seguida, um menino vai sussurrar um palavrão escrito no muro que ela não compreenderá. Todo o seu caminho é a preparação para a descoberta de algo cujo sentido lhe foge. Durante a viagem pela cidade, ela é ignorada ou torna-se motivo de chacota. Apenas o velho sapateiro lhe dirige um olhar de carinho. Este seu périplo solitário leva-a ao ponto das atenções da cidade, o armazém de seu Américo, fazendo com que a sua história se misture ao escândalo. Entrando sorrateiramente no armazém fechado, farta-se com a manjubas que encontra no estoque. Como se trata de um texto com um caráter sexual, que se vale da dicção popular, é possível ver neste simples ato de alimentar-se de peixes secos um significado que está além dele. Manjuba é uma designação chula para pênis. A conotação sexual deste episódio é reforçada pelo fato de logo em seguida ela regurgitar o alimento, completando assim o ciclo sexual. Ao
longo de seu caminho, ela se fixa em alguns símbolos fálicos, tais como a pá com que um jovem bate o sorvete, a muleta do sapateiro e o cajado na imagem de João Batista.

Todo este contato visual com tais símbolos conflui para o confronto com seu Américo. Encontrando o comerciante aturdido num canto do armazém, diz o que sua mãe lhe pedira para dizer: que ele está pagando, com o escândalo do filho, todo o mal que fizera a ela. Aqui fica implícito que o próprio Américo fora o pivô de um outro
escândalo envolvendo a mulher que, agora, se sente vingada. O comerciante reage violentamente: "Puxa daqui, puxa já daqui, sua cadelinha encardida, já agora senão te enfio essa garrafa com fogo e tudo [uma vela estava acesa na boca da garrafa] na bocetinha, e também na puta da tua mãe, e na puta daquela tua mãe..." (p.44).

Fecha-se um estágio no exato momento em que a menina é abordada explicitamente, quebrando assim alguma coisa dentro dela. Em disparada, vai para casa e conta tudo à mãe que se desespera com a afronta. O marido ouve a gritaria do quintal e, sentindo viva novamente a dor de ter sido traído, surra a esposa na frente dos filhos e da vizinha. A menina, que viveu tudo de forma inconsciente, tranca-se no banheiro tentando compreender a sua condição de fêmea: "Acocora-se sobre o espelho como se sentasse num penico, a calcinha numa das mãos, e vê, sem compreender, o seu sexo emoldurado. Acaricia-o demoradamente com a ponta do dedo, os olhos sempre
cheios de espanto" (p.49). O que temos, portanto, é uma menina a caminho de um forçado amadurecimento.

A importância deste conto está na vida das palavras, neste olhar de afeto para uma criatura pobre e solitária que se confronta com todas as forças obscuras de um universo hipócrita. Os demais contos têm a mesma força expressiva. Mas é "Mãozinhas de seda", escrito em 1996, que melhor revela o caráter de Raduan. Retomando eventos de sua juventude e de sua história familiar, ele repudia o universo intelectual: "Eruditos, pretensiosos, e bem providos de mãozinhas de seda, a harmonia do perfil é completa por faltar-lhes justamente o que seria marcante: rosto". Mas, mesmo achando os eruditos obscenos, ele acaba os suportando, por uma questão de diplomacia.
Significativamente, este texto, que foi escrito para figurar no volume dos Cadernos de Literatura Brasileira, ficou de fora. Ele incendiaria todo o circo, estragando o espetáculo. O conto termina com o narrador sentindo saudades de si próprio, do tempo em que ele não hesitava antes de meter bronca nos impostores.

Toda a grandeza de Raduam Nassar, que não se iludam os mãozinhas de seda, está na força bruta de seu verbo, um verbo escrito com a manopla áspera de quem conhece o contato com as coisas.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

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Rodrigo Garcia Lopes