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Miguel Sanches Neto


O nu e o travestido
 

Gazeta do Povo
16.06.97
 

Deve haver alguma simetria entre a identidade sexual de uma drag queen e certa vertente da literatura homossexual. Para a drag queen, a identidade é fruto de um simulacro que, não visando ao convencimento, quer justamente elevar ao ridículo os elementos femininos: os excessos de brincos, pulseiras, anéis, maquiagem, as roupas coloridas e espalhafatosas. Tudo em sua figura é resultado de acréscimos. Ela só pode encenar sua personagem "feminina" depois de um ritual de apropriação de inúmeros penduricalhos.

Há toda uma corrente de escritores homossexuais botadores, ou seja, que enxertam detalhes em seus textos. Os mais inocentes chamam isso de neobarroco, os mais maledicentes, de neobalofo. O fato é que há uma sensibilidade homossexual do excesso que vem produzindoi uma literatura no mínimo monótona. Um bom exemplo
pode ser encontrado em Keith Jarrett no Blue Note (Improvisos de Jazz), de Silviano Santiago - Rocco, 1996. Se o autor não declara o seu barroquismo, a epígrafe de Lezama Lima o declara por ele. Assumidamente gays, estes contos são mais um equívoco deste professor de literatura que conseguiu, com Em Liberdade, um status de ficcionista.

Usando o recurso, oriundo do Jazz, dos improvisos, Silviano faz contos sobre nada, contando com minúcias a sua permanência em uma cidade norte-americana durante um forte inverno. Os contos saem do nada e levam a lugar algum, isso com um desfilar sem fim de pequenos casos descosidos. O volume só se salva pelo último conto, "Quando me apaixono". Contudente, esta narrativa que resgata a trajetória de um casal homossexual durante o velório de um dos parceiros, torna nulas as anteriores.

É constante, no entanto, ao longo do livro, um mau gosto na escolha de imagens e na construção da frase. Aberrações do seguinte tipo: "a cidade esteve, dos pés à cabeça, coberta de neve"; "o vento pergaminhou o que foi pele humana exposta a seus rompantes histéricos"; "o resfriado, companheiro e amante das chuvas de fim de
inverno"; "os bacilos da tuberculose voltam a ser hoje uns goleadores nos leitos dos hospitais americanos"; "folhear as filas de discos"; "Chopin e Art Tatum se dão às mãos e saem remando rio abaixo, rio acima, o rio, numa canoa musical"; "os braços flácidos de um bebê"; "um saco de gatos na memória"; "preencher com pressentimentos lacunas tão espetaculares"; "maçaneta petrificada pela ferrugem"; "assinando assinaturas e mais assinaturas".

Aponto estas escolhas não com o intuito de ironizar, mas por elas funcionarem como metonímia deste livro adiposo que, depois de um regime, daria um bom e pequeno conto. Não há sentido em voltar a escrever balofamente apenas porque alguns decretaram o esgotamento do texto curto, enxuto e limpo. Nenhum texto é previamente bom por ser longo ou curto, barroco ou moderno. Muito pelo contrário, alguns textos são bons apesar de serem curtos ou longos, barracos ou modernos. Keith Jarrett no Blue Note é um livro frustrado e frustrante que, felizmente, já foi analisado pelo autor através do personagem que o representa: "excessos da escrita onírica dum corpo protegido pela calfefação e pelos cobertores numa noite de
tempestade de neve numa cidade norte-americana sem nenhuma importância, textos que por muito querer significar acabam nada significando, dissolvendo-se no ar como um suspiro. Pura clara de ovo batida com açúcar [grifos acrescentados] e levada ao forno, dissolvendo-se na boca do menino guloso" (p. 100). Enfim, embora de mau gosto, a imagem é muito feliz: trata-se de uma literatura com muita caloria, indicada apenas para os adolescentes que não se conscientizaram da necessidade de um regime mais saudável.

A moda do neobarroco, cara aos escritores declaradamente homossexuais (Lezama Lima, Néstor Perlongher e outros cujos nomes prefiro omitir), atende a idiossincrasias pessoais e não pode ser enfiada goela abaixo como uma escrita tipicamente latino-americana. Seria um eqüívoco creditar a este tipo de arte (que, mesmo sofrendo
alterações, está ligado aos elementos colonizadores) a nossa identidade.

Equivocadamente classificado com um simples ideólogo de esquerda, Eduardo Galeano é um dos maiores escritores da América Latina e enxerga nossa identidade em outros elementos. Mulheres (L&PM, 1997) é muito mais do que uma antologia temática de seus pequenos textos que ficam na fronteira entre a crônica, o conto e a
poesia. Se isoladamente eles guardam parentesco com estas formas literárias, no conjunto são uma grande carta geográfica das Américas. Ele desvela a face de um continente através de seus elementos femininos.

Há uma diferenciação implícita nesta escolha de histórias sobre mulheres. O colonizador, portador da arma de fogo, assumiu um papel masculino de imposição de sua cultura e de seus desejos sobre a população nativa. Resgatar a história destas mulheres espalhadas em todos os aíses americanos, inclusive nos Estados Unidos, é, portanto, uma forma de colocar-se ao lado de uma realidade que foi apagada.

Neste livro, elas funcionam como fios de uma grande malha de resistência que une latitudes tão diferentes quanto o Uruguai e o México. Este papel está simbolicamente representado no trabalho das bordadeiras chilenas. O Chile é este mundo de trapos coloridos sobre um fundo de sacos de farinha. Com sobras de lã e velhos farrapos bordam as bordadeiras, mulheres dos subúrbios miseráveis de Santiago. Bordam arpilleras, que são vendids nas igrejas. Que exista
quem as compre é coisa inacreditável. Elas se assombram:
- Nós bordamos nossos problemas, e nossos problemas são feios.

Primeiro foram as mulheres dos presos, depois muitas outras se puseram a bordar. Por dinheiro, que ajuda a remediar; mas ão sóp pelo dinheiro. Bordando arpilleras as mulheres se juntam, interrompem a solidão e a tristeza e por umas horas quebram a
rotina da obediência ao marido, ao pai, ao filho macho e ao general pinochet (p. 156) Estas mulheres que aparecem na obra de Galeano são a matéria prima da grande arpillera que ele tece com as figuras históricas e lendárias do novo mundo. A celebração da mulher torna-se uma celebração da terra e dos seres excluídos contra o macho colonizador, uma celebração da poesia contra o racionalismo.

Galeano pertence à categoria dos tiradores, por isso seus textos são enxutos, sucintos e cativantes. Destas histórias de mulheres surge a representação de todo um continente. Não há pieguismo, nem modismos. O texto fala sem simulacros, sem penduricalhos, resgatando a nossa história através da restauração simbólica do lugar das mulheres na constituição da sociedade americana. Não se trata, logicamente, de literatura feminista, mas de um discurso amoroso que conjuga afetividade com resistência, prosa com poesia, política com arte. Entre o revolucionário, o amante e o poeta não há distância. Amar estas mulheres seria então um heróico ato de resistência aos poderes manipuladores. O resultado é grande literatura em textos pequenos que abrem mão de todo e qualquer gesto grandioloqüente.

Algumas tribos indígenas, quando da colonização, trocaram a liberdade por bugigangas trazidas da Europa. Com estas quinquilharias, e já devidamente vestidos com roupas européis, eles fingiram ser quem não eram. Outros, no entanto, preferiram ficar nus, expondo sua identidade - uma identidade que era despedida até de pêlos.
 

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

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