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Miguel Sanches Neto


A arte de escrever em 31 teses


Gazeta do Povo
09.06.97


1. Escrever é coçar uma urticária: intervalo entre a dor e o alívio.

2. Meu avô e meu pai eram analfabetos. Como pesa este nome: Miguel Sanches Neto.

3. Vindo de uma família basicamente iletrada, recebi a tarefa de ser o seu porta-voz. Escrevo por isso, para fazer com que falem estes entes sem-discurso.

4. Minha tarefa é antes de tudo familiar. Meu pai fala por meus escritos e por eles meu avô se explica.

5. Toda vez que assino meu nome, meu avô e meu pai assinam-no comigo.

6. Quando minha mãe, que tem apenas o quarto ano primário, casou-se, meu pai comprou um caderno para que ela lhe ensinasse ao menos escrever o próprio nome. Mas ele nunca conseguiu.
Herdei aquele caderno em branco com a responsabilidade de preenchê-lo. Por mais que escreva, ele nunca se acaba.

7. A vontade que tenho é habitar todas as folhas em branco para gastar este infinito estoque de silêncio.

8. A ânsia de escrever foi minha herança - e como é difícil dissipá-la!

9. Tive que aprender a escrever para dar uma condição letrada para a longa ignorância de meus antepassados.

10. Quando encaro uma página em branco me assusto. Será que fui mesmo alfabetizado?

11. Um pesadelo: verifico que minhas estantes estão repletas de cadernos em branco.

12. Um sonho me persegue: entro na biblioteca e vejo meu pai (morto há 28 anos) lendo um livro meu.

13. Se me pai fosse vivo eu o ensinaria a ler em meus livros.

14. Minha mãe estudava na escola primária do Cerne (lugarejo entre Bela Vista do Paraíso e Sertanópolis), quando minha bisavó a fez interromper os seus estudos. Ela se isolou em sua mágoa.

15.
Quando eu morrer afogada
não terei ainda conhecido
o amor
nem terei usado um vestido
com rendas
e mal saberei escrever meu nome
- Conceisão do Nacimento.

Agora tiro esta foto
com minha cara de espanto
minha feição roceira
e dedico à prima Nelsa
que também não pôde continuar estudando.

Este meu poema
só será mesmo escrito
por seu filho
que realizará nosso sonho
de meninas pobres.

Agora deixo esta história de lado
e retomo minha sina de moça magra.
Que bom não saber que logo morrerei afogada.

16. No país da infância, minha bisavó me colocava no colo e recitava a história de Miguelzinho e seu veloz cavalo. Depois esqueci a história, a fazenda foi vendida, minha bisavó morreu e meu cavalo fugiu. Continuei a pé o meu destino.

17. Primeiro aprendi a conviver com o lápis. Era leve e seus rastros podiam ser facilmente apagados. Depois veio a descoberta da caneta, sempre ordinária, até hoje, porque escrever não deve ser visto como um privilégio de classe. Logo em seguida, aprendi a datilografar, usando apenas três dedos, para não parecer exibicionista. Agora escrevo no computador, religado à provisoriedade do lápis.

18. Escrever é preencher um cheque a lápis. Você nunca sabe o valor que vai ser descontado.

19. Sinto-me sempre seguro escrevendo a lápis. Quando me falta uma palavra ou idéia, invento a desculpa de que é necessário apontar meus instrumentos de trabalho.

20. Fiz faculdade, cursei pós-graduação, mas não há diploma que mais me orgulhe do que o da Escola Bandeirantes de Datilografia.
Quase fui reprovado. A média 6 deve ter sido uma generosidade da professora Marilu, por quem eu nutria silenciosa paixão. Talvez esta seja a razão do pouco desempenho de quem foi o pior aluno da turma. O que não diminuiu em nada a minha alegria. Só quem vem de uma família de colonos analfabetos sabe o que significa tirar um
diploma de datilografia. P.S.: Não conquistei a professora, mas herdei uma máquina de escrever que foi minha primeira namorada.

21. Um amigo sonha freqüentemente que está datilografando longos poemas. Ao acordar, fita rapidamente a máquina coberta pela capa e vai para o trabalho.

22. Meu padrasto brigava por eu não ocupar a folha inteira com meus poemas adolescentes. Me fazia aproveitar o verso da página e suas largas margens com tarefas escolares, geralmente de matemática.
Percebendo o emagrecimento de meus cadernos, numerou suas páginas e periodicamente os fiscalizava. Desde cedo, minha vocação teve que ser exercida na clandestinidade.

23.
Escrever é caçar caranguejos
pelo método do guaxinim.
Enfiando o rabo no buraco
onde se aloja o crustáceo,
ele espera que este o morda
com suas impiedosas tesouras
para sacar logo em seguida
a presa cravada em sua cauda.
O próximo passo é saboreá-la
com a memória da dor em carne viva.

Enquanto espera, o guaxinim chora
sofrendo de antemão a investida.
Caçador e vítima, é sua própria isca,
motor da mortal armadilha.
Contorcendo-se na auto-emboscada
ele preliba o sabor e a cicatriz
- a água na boca é a mesma das lágrimas.

24. Na linguagem cabocla, bicho-de-pé era chamado de poeta.

25. Palavras são fósforos que tentamos acender debaixo da chuva.

26. Enquanto os meninos ricos aprendiam línguas, eu lutava para tentar escrever cartas de amor sem erros grosseiros.

27. Ter como justificativa para os cadernos que encho de garatujas, o pretexto, como na infância, de melhorar a caligrafia.

28. Primeiro uma meia-água, depois um puxado, mais outro, a varanda, a garagem para o fusca 69 - é assim, a longo prazo, que os pobres constroem suas casas. É dessa forma também que estou me construindo.

29. O crítico lê os livros com o mesmo esforço de compreensão que um semi-analfabeto soletra um jornal.

30. Enquanto escrevo, as raízes tramam em silêncio, sonegando-me água e nutrientes. O fruto mirrado e disforme teve que ser dolorosa e pacientemente elaborado

31. A vantagem de ter mãos pequenas é o fato de elas serem impróprias para tarefas e gestos grandiosos.
 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), girl

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Aníbal Beça