Miguel Sanches Neto
Quando a universidade encontra a
literatura
31.03.97
Com a
massificação dos estudos de pós-graduação, no campo da literatura,
criou-se um quadro no mínimo desalentador. A incapacidade de
interpretar gerou uma necessidade de contar com teorias que
facultassem ao crítico acadêmico, principalmente ao neófito, alguma
segurança diante do objeto literário sempre desafiador. Com isso
surgiu um mercado para a indústria de teorias pré-fabricadas - de
extração estrangeira - que são aqui montadas às pressas para atender
à demanda de uma crítica que, no imediato, precisa encontrar
significações inéditas para as produções literárias. Os exemplos
deste equívoco podem ser vistos em qualquer biblioteca
universitária, o que me desobriga de apontá-los.
Tal
comportamento criou uma produção analítica muito rarefeita em que
abundam os pressupostos teóricos em detrimento de uma discussão mais
desarmada da literatura, em que o analista se confronte com o livro
de forma a buscar os seus sentidos, que podem estar localizados no
momento de sua produção ou no de sua leitura. No primeiro caso, há
uma valorização da figura do autor e do universo de recepção no qual
ele originalmente se projetou. No segundo, o que sobressai é a
perspectiva do leitor e do estágio histórico em que este está
plantado. Quando se aplica, numa obra que pertence a um outro tempo,
uma teoria que faz parte inequivocamente de nossa época, de cara há
uma amputação da primeira dessas possibilidades de sentido,
sufocando assim toda a história da produção do livro. Isso gera a
padronização de um leque de sentidos que, ao invés de ser o mais
amplo possível, acaba concentrado em torno daquelas correntes
críticas de maior prestígio.
Nestes últimos
30 anos, os registros mais históricos do ensaísmo literário foram
relegados, com um sorriso de desdém, ao museu das velharias. Mas,
agora, o que havia sido aposentado compulsivamente volta à ativa. É
indiscutível que vivemos a década da história, o que colocou em
risco o poder dos teóricos que, mais do que rapidamente, elegeram
como nova Meca a teoria da história, que é uma maneira de
garantir as posições conquistadas dentro do campo literário
acadêmico.
Tendo noção
deste problema que conduziu a universidade a um beco sem saída,
impedindo a entrada de leitores não armados (com a devidas armas) na
peleja com a literatura, fica mais fácil compreender a dimensão do
ensaio que Luis Filipe Ribeiro escreveu sobre as imagens femininas
em José de Alencar e Machado de Assis - Mulheres de Papel (Eduff,
1996). Este livro tem dois níveis de significação. Um representado
pelo próprio método de abordagem em que foi concebido e outro em que
se encontram as discussões sobre os dois maiores romancistas
brasileiros do século XIX, cujas obras forjaram arquétipos femininos
no imaginário de então.
Luis Filipe, na
abertura de seu longo ensaio, define como fetichista a análise do
texto visto como produto (ele se vale do estudo da condição
fetichizada da mercadoria na sociedade capitalista, via Marx)
desconectado das suas circunstâncias de produção. Apagar a presença
do humano na mercadoria é uma tática de dominação na medida em que
ela ganha uma falsa autonomia, tornando-se tacitamente independente
do trabalho que a produziu. Tal prática é o motor da alienação. O
que nos leva a concluir que uma postura que conceba a literatura
como um texto com sentido imanente está produzindo um desserviço
crítico na medida em que lhe nega os vínculos históricos e sociais.
O que o autor
busca em seu livro é justamente identificar as impressões digitais
da época e das experiências de vida dos autores nas imagens que eles
cristalizaram em suas obras. Isso que pode parecer uma coisa óbvia,
tem, no meio acadêmico, uma
significação bombástica por colocar de quarentena os estudos
contaminados pela febre das teorizações. Mas não é apenas em seus
objetivos que Mulheres de Papel toca numa imensa ferida dos estudos
universitários. A forma de analisar os romances também é ousada por
abrir mão das exaustivas citações e notas explicativas, que
geralmente acabam juntando alhos com bugalhos. A sua linguagem é de
uma limpeza surpreendente. Em momento algum ele nos remete a
discussões laterais ao corpo do ensaio, naquelas enfadonhas notas
que pretendem, antes de mais nada, dar um status acadêmico ao texto.
A limpeza de seu estilo está aliada a uma limpidez de reflexões
que é coisa rara na academia.
O jogo entre o
leitor e o autor se dá, portanto, sem cartas marcadas. É um jogo
limpo em que o analista não quer despejar uma biblioteca inteira
diante dos olhos estarrecidos do pobre leitor, colocando-o em
situação constrangedora. Isso não quer dizer que Luis Filipe Ribeiro
não seja um leitor atento das produções mais especializadas (ele dá
um extenso mapa de suas leituras no final do livro, numa seção que é
saborosamente intitulada "O que quase não entra"). Estas leituras
são vistas como andaimes que já não pertencem ao edifício pronto que
é o livro.
O ensaísta
parte diretamente dos romances, em análises minuciosas dos trechos
significativos (no domínio da arte das citações está boa parte do
sucesso de um ensaio), desentranhando as marcas do tempo e do autor.
O que se dá é uma substituição das citações destrambelhadas pela
sensibilidade analítica. Ao invés de entrar nos textos arrombando
tudo com as armas pesadas da teoria, ele se movimenta pelos
inumeráveis corredores dos livros munido apenas de sua capacidade de
raciocínio (nutrida em diversas fontes, principalmente históricas) e
de lupa. É na leitura dos detalhes do discurso que são identificados
os rastros de classe, de visão de mundo e dos papéis sociais nos
romances de Alencar e Machado.
Esta forma de
abordar a obra literária tem a vantagem de tratar o leitor como
alguém que está em situação de igualdade com o autor, além de
recolocar a literatura no centro do fenômeno crítico. O autor, que
pensa a leitura como uma forma original de palimpsesto, abre margem
para se definir a crítica, tal como ele a pratica, como uma
espécie de escrita palimpséstica, em que o analista vai escrevendo
por cima da obra literária. Ao invés de conceber o espaço crítico
como uma colcha de retalhos de citações alheias, Luis Filipe esmiuça
o discurso, sem temer a reprodução de longos trechos dos romances.
O centro em torno do qual giram os comentários e as reflexões do
autor são as figuras femininas, daí ter escolhido ele os perfis de
mulher de Alencar (Lucíola, Diva, Senhora etc.)
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