Miguel Sanches Neto
Teoria da Amizade
08.12.97
Recebi um livro
ruim de um amigo bom. Li trechos e logo o desânimo me
prostrou. Não poderia elogiar o livro e não queria perder o amigo.
Rapidamente, escrevi um bilhete: Obrigado pelo teu livro, que
começarei a ler ainda hoje. É claro que comecei a ler. E nunca
terminei. Os amigos da gente não deveriam escrever livros. Seria
mais fácil para o crítico não ter amigos escritores. Os livros
deveriam ser
escritos apenas por nossos inimigos. Se estes publicarem um livro
ruim, estarão dando motivo para o crítico extravasar sua maldade e
suas frustrações. Então poderíamos provar que ele realmente não
presta e, num artigo contundente, destacar nossa superioridade. Se o
livro do inimigo for bom, mais fácil ainda. É uma chance de provar
da humildade e elogiar a obra com gordos e sibilantes adjetivos.
Nosso anjo da guarda ficaria feliz e sairíamos do episódio como uma
pessoa
extremamente compreensiva, sem rancores. Diriam: vejam só, ele que
foi difamado por x, tendo sido o alvo de inúmeras maledicências,
vejam só que nobre caráter o dele - reconheceu a grandeza de seu
detrator, definiu a estatura de seu pior desafeto.
Mas não. Quem
me mandou um livro péssimo foi um amigo. Um amigo de infância.
Desses que já não se fazem mais depois de uma certa idade. Um amigo
que desejou as mesmas mulheres que um dia desejamos. Que freqüentou
os mesmos bares suspeitos. Que gastou conosco, em palestras
descontraídas, horas infindáveis. É este maldito amigo que escreveu
o livro que está sobre nossa mesa, fitando-nos com um olhar de
cachorro ferido, de criança rejeitada. A capa ridícula que só perde
para o conteúdo. A impressão é de péssima qualidade. E, mesmo assim,
o livro provavelmente tenha custado caro. O amigo, que acabou se
perdendo em trabalhos desgastantes, é pobre e deve ter passado por
dificuldades para pagar a gráfica. A mulher dele, cada vez mais
neurótica, com certeza brigou feio com o idiota, É isso que você é,
um idiota, perdendo tempo com estas ilusões. Assim deve ter falado a
mulher, enquanto olhava para as pernas com varizes, pensando que o
dinheiro despendido
poderia ter sido usado para uma pequena cirurgia plástica que a
livraria das horríveis veias azuis, fruto da gravidez que ela não
desejara, mas que acabara aceitando devido às insistências do
marido. Fui sempre uma tola.
É isso que o
livro me diz. Este livro que custou tanto. Não penso apenas no
dinheiro. Mas no tempo. Dez longos anos tentando escrever alguma
coisa decente e o resultado é um romacinho colegial, que qualquer
adolescente poderia ter escrito. A tiragem deve ter sido pequena.
Ele vai deixar nas livrarias do centro. Na Ghighnone, provavelmente
os vendedores colocarão na mais remota prateleira. E como o livro
não traz nada escrito na lombada, vai se perder no meio de outros
títulos irrelevantes e empoeirados. No Chain, ele ficará atrás do
balcão do guarda-volume, numa prateleira que é mais um depósito.
Depois de algum tempo, será devolvido. E por azar, o amigo vai
descobrir: deixara dez exemplares e na hora de recebê-los de volta,
encontra onze. Um jornalista, que recebera o livro de presente,
freguês assíduo da livraria, trocara-o, junto com um volume de
poesia que a editora lhe mandara, por um livro do Paulo Coelho.
Ainda bem que o
amigo nunca vai descobrir que serviu de
complemento para uma troca, e justo envolvendo o Paulo Coelho. Deus
é mesmo perverso. Para uns escritores ruins, tudo. Para outros,
nada.
Mas ele tinha o
amigo que era crítico. E crítico razoavelmente respeitado. E a
opinião da crítica era muito melhor do que o sucesso de vendas.
Vender livro era para os carreiristas. E ele sabia-se um clérigo.
Escrevia por necessidade de expressão. Não suportaria passar a vida
sem deixar uma mensagem para uns poucos. Ele tinha o crítico. Na
verdade, pensando bem, ele escrevera este livro única e
exclusivamente para o crítico. Eram dele todas as belezas contidas
nestas páginas. O romance, uma espécie de educação sentimental,
retomava fatos da infância comum. O crítico era o leitor ideal. Não
precisava de mais ninguém. Ele tinha o crítico. Meu Deus, estava
feliz, mesmo tendo de levar para casa os onze exemplares que o
gerente da livraria lhe devolvera, alegando que não havia espaço
para volumes consignados. Estava mais do que feliz, a qualquer
momento sairia um longo artigo do crítico sobre sua obra. Só agora
se lembrara de que não havia mandado nenhuma foto para o jornal. E
queria um artigo com foto e tudo. Sem nem se lembrar do fato de não
ter encontrado o seu livro nas prateleiras da Ghighnone - se fosse
menos tímido teria perguntado para a vendedora se os livros já
tinham sido vendidos - sem nem se lembrar disso, correu até um
estúdio fotográfico. Depois ficou esperando pelo centro da cidade
até às cinco horas, quando o retrato ficou pronto. Colocou-o num
envelope e o deixou na portaria do jornal, endereçado ao editor.
É o livro deste
amigo que estou levando para doar à biblioteca
pública, depois de ter tido o cuidado de arrancar a página de rosto,
com a calorosa dedicatória em que falava de infância e amizade -
duas palavras que doem.
Antes de
entregar ao funcionário, leio aleatoriamente um parágrafo só para me
certificar de que estou fazendo a coisa certa. Mas a consciência
lateja. Me sinto cruel. O fato de o livro ser ruim não me livra de
minha maldade inata, de minha ingratidão.
Somente quando
me encontro totalmente liberto de sua presença incômoda, volto à
rotina. Leio outros livros, escrevo artigos, assisto a bons filmes.
E toda vez que vou à banca comprar o jornal em que tenho a coluna,
faço-o com a mesma emoção de meu amigo. Coração disparado, olhos
embaçados, abro avidamente o jornal para ver se foi desta vez que
tratei do livro ruim. Mas não foi.
Não escreverei
nada. Nem uma notícia. Quero esquecer o livro. Mas para isso teria
que esquecer o amigo que, um mês e meio depois, me telefona,
deixando na secretária eletrônica o convite para um jantar na casa
dele. Minha secretária liga, avisando que terei uma viagem para
fazer e que, assim que estiver livre, marcarei nova data.
Decorrido mais
um mês, recebo um novo pacote. Abro e encontro outro exemplar.
Nenhuma dedicatória. Apenas o livro com sua cara de mendigo. Dias
depois, imprudente, atendo o telefone. É ele. Parece estar meio
bêbado. Tímido e correto, não faria isso em outra circunstância.
Ouço um programa de auditório do outro lado da linha, enquanto ele
reclama que o seu casamento está uma droga. A mulher não tem
interesse nenhum por literatura. Veja, não chegou a ler o primeiro
capítulo de meu livro. Encabulado, tento mudar o
rumo da conversa. Mas as lamentações continuam. Fala de seu filho
que morreu e de como o livro o salvou de uma crise de depressão.
Você sabe o que é isso, hein? Você sabe o que é perder um filho? Não
tenho palavras. E ele ainda recorda os planos que tinha para o
menino. Queria para ele uma infância bonita como a nossa, com
amizades verdadeiras. Não consigo segurar uma tosse seca. E ele, do
outro lado, insiste em nossos laços de amizade. Diz que encontrou
fulano na rua, aquele que sempre traía a gente por inveja. Pergunta
se eu me lembro dele. Digo que sim. E o amigo pragueja, afirmando
depois, falsamente alegre: O desgraçado está rico, é um advogado de
sucesso. E eu aqui passando os meus apuros. Você sabe que tive de
fechar a loja? Eu só consigo resmungar algo que parece significar:
que pena. Mas ele levanta a bola, É isso aí, ainda bem que tenho os
amigos.
A conversa
termina e eu busco na pilha de livros aquele que espera um elogio
meu. Ligo o computador. A tela vazia me olha. Digito: Fulano de Tal
escreveu um livro inquietante. Isso era verdade, pelo menos para mim
o livro era inquietante. Eu não estava mentindo. Poderia continuar o
artigo que seria apenas um resumo do livro, sem afirmar nada. Mas
são estas concessões, visíveis para qualquer espírito mais arguto,
que fazem com que o crítico perca a credibilidade. Apaguei a frase.
No dia seguinte doei o livro para a biblioteca da escola do bairro.
Depois de uma
semana, todos os dias chegava mais um volume do livro pelo correio.
Eu abria o pacote, último gesto de respeito, e o colocava
diretamente no lixo. O amigo tinha resolvido o problema do encalhe.
Se eu era o leitor ideal, nada mais lógico do que ser o destinatário
de toda a tiragem do romance. Não sei quantas dezenas de volumes
recebi. Algumas vezes, tentava ler um ou outro parágrafo. Mas não
era possível continuar.
Os meus artigos
começaram a ficar estúpidos, perdi o brilho
das reflexões, a graça das frases que sempre compensaram minhas
limitações intelectuais. Estava me destruindo. Toda vez que abria um
livro para ler era como se estivesse lendo aquele que me perseguia.
Logo a capa parecia idêntica. Quando consultava alguma coisa na
estante, tinha a impressão de que todos os meus livros eram iguais
àquele. E isso me desesperava. Tornei-me amargo com os outros
autores. Achei defeitos na obra de Cony, qualquer um faria sucesso
tendo atrás de si uma grande editora e toda a mídia subserviente. Vi
em Rubem Fonseca o virtuosismo informativo de quem tinha tempo de
sobra para vasculhar livros sem significação. Comecei a fuzilar todo
jovem talento. Eles não tinham passado por nenhuma situação parecida
com a minha, eu que sou filho de analfabetos, leitor de biblioteca
pública, agricultor frustrado, eu que não pude contar com a ajuda de
ninguém para estudar.
Então percebi
que, inconscientemente, estava querendo mostrar ao amigo que sou
justo, que sou severo com todos, com os grandes e com os bem
sucedidos. Neste dia, escrevi um feroz artigo contra o romance que
me perseguia. Chamei-o de piegas, monótono, equivocado na linguagem
e na estrutura. Decretei, por fim, a morte definitiva do autor.
Nunca passaria de um escrevinhador de final de semana.
Assim que
mandei, sem nem revisar, o artigo para o jornal, me
esqueci completamente de tudo. Passei a trabalhar com grande
entusiasmo, até o dia em que o texto saiu, ilustrado com a foto que
ele mandara ao editor. E ele sorria de uma maneira espontânea,
confiante. Sorria como no tempo em que éramos crianças.
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