Miguel Sanches Neto
Traduzindo o Paraná
Sem uma
presença mais significativa no movimento de renovação artística que
marcou a década de 20, o Paraná e Santa Catarina, ao contrário do
Rio Grande do Sul, apareceram, no imaginário modernista, como uma
negação do Brasil. Isso, num período marcado pela descoberta de
nossa territorialidade poética, tinha um poder negativo que
despertou a indisposição para com a realidade em que avultavam
componentes alienígenas. Como reconheceu Afonso Arinos de Melo
Franco, num livro de depoimentos organizado por Edgard Cavalheiro
(Testamento de uma geração: Globo, 1944) "o Modernismo derivou das
novas correntes estéticas européias. Mas exatamente por se tratar de
um movimento integral de libertação, não estando preso a nenhum
cânone rígido, como o Parnasianismo ou o Simbolismo, encontrou mais
facilmente do que estes o caminho brasileiro" (p. 47). Este desejo
de enxergar o Brasil fez com que houvesse um grupo engajado no
redesenhar das fronteiras culturais do país, incorporando não apenas
temáticas e linguagens regionais, mas principalmente os produtores
culturais que se encontravam numa latitude marginal.
A
interiorização dos fenômenos literários vai ser uma das linhas de
força do Modernismo, momento em que, pela primeira vez na história
de nossa literatura, pequenas cidades deixam de ser meros objetos,
olhados de fora, geralmente do centro, para assumir sua condição de
sujeitos do olhar, de observadoras de si e do mundo. Um bom exemplo
é a pequena Cataguases, transformada em foco modernista através da
ação do grupo da revista Verde. Nesse sentido, o movimento foi uma
fase de ampliação da malha literária, que abarcou geografias até
então sem existência reconhecida numa busca de representatividade
nacional, comentada por João Alphonsus: "O movimento modernista foi
um laço admirável de unidade nacional no campo das letras [...]. Não
havia regionalismo (no mau sentido). Propunha-se e praticava-se
olhar para o Brasil, cantar Brasil, escrever Brasil" (idem, p. 147).
Isso, é claro,
esbarrava num certo preconceito com relação aos locais com
realidades dessemelhantes, que não correspondiam a uma idéia de
identidade nacional tripartite (portuguesa-africana-indígena), cara
a uma sociologia pensada a partir das parcelas lusitanas do Brasil.
Em nome desta
unidade identitária, cria-se uma barreira em torno dos núcleos
europeus. Tal comportamento pode ser claramente identificado no
depoimento de Manoelito d'Ornelas, intelectual ligado ao Sul do país
(!): "É dentro da opulência de nossa história, nos motivos de nossa
vida e na riqueza das nossas lendas que devemos procurar os
característicos que nos possam dar uma fisionomia típica. Só assim
teremos vencido a poderosa força desagregadora dos continentes
humanos alienígenas que aqui se radicaram em núcleos [grifei]. Às
inconveniências do nosso exagerado cosmopolitismo oponhamos a
barreira defensiva do nosso tradicionalismo tolerante" (idem, p.
181).
Note-se que o
"tradicionalismo tolerante" não aceita os centros de imigração, o
que nos leva a duvidar desta tolerância. Indo contra a dispersão
desagregadora, na esperança de alcançar um Brasil pitoresco, o que
era uma abertura para o múltiplo (as manifestações culturais da
província) transforma-se num expediente centralizador, que visa
apagar do mapa tudo aquilo que não corresponder a uma idéia de
Brasil que, tornando-se hegemônica, desempenhou uma função
planificadora.
A mesma visão
tropicocêntrica pode ser detectada no depoimento de outro integrante
daquela geração, Abguar Bastos: "[...] para o intelectual
brasileiro, o que está em perigo é a nossa cultura, que não pode
sumir de nenhum ponto de nosso território, como sumiu de certas
colônias do Paraná e Santa Catarina" (idem, p.27).
Só à luz deste
projeto de escrever Brasil é que podemos entender a rápida, mas
extremamente significativa, produção de Brasil Pinheiro Machado
(1907-1997) - Poemas: Fundação Cultural de Curitiba/Buquinista,
1997. As quatro primorosas peças que compõem o livro foram
publicados em 1928, duas delas na Revista de Antropofagia, tendo o
conjunto todo aparecido no jornal ponta-grossense Diários dos
Campos. São poemas geográficos, inseridos portanto no ideário
modernista, e colocam a cidade de Ponta Grossa (um dos núcleos
estrangeiros) dentro do mapa do Brasil. O que caracteriza os poemas
não é propriamente uma afirmação da diferença, mas um espírito
incorporativo. Através de uma linguagem abrasileirada, telúrica e
coloquial, o poeta recorta a realidade do Paraná, ligando-o ao resto
do país. O primeiro poema chama-se justamente "Brasil" e faz um
retrato da província como uma região qualquer de nosso vasto
território, com suas crendices e indolência (a rede mole, o violão,
os suspiros de nostalgia, a imobilidade). Brasil Pinheiro Machado
não quer a separação de sua urbe. No poema seguinte, "Paisagem da
minha terra", já se manifesta uma demarcação da especificidade, mas
dentro ainda do projeto integralizador. Há aqui uma distinção entre
a sensualidade, tipicamente brasileira, e religiosidade polonesa. O
poeta está numa "missa internacional / com gentes de todas a raças",
e tudo que sente, como a grande maioria, é uma vontade de olhar as
moças: "Só os polacos de camisa nova / que vieram com as famílias de
carroça lá das colônias /rezam fervorosamente". Continuamos ainda
dentro de uma paisagem e uma linguagem brasileiras.
A oposição
esboçada no poema anterior aparece potencializada no seguinte, que
versa sobre a fundação de Ponta Grossa. O poeta revela a origem
nortista da cidade, a presença dos tropeiros gaúchos e a chegada do
imigrante branco. A urbe, desde aquela época um entroncamento
viário, é pensada não como foco desagregador, e sim como um ponto de
encontro entre as diversas etnias. Apesar de uma geografia
estrangeira (campos longos e tristes como as estepes da Rússia,
geada até o meio-dia), a cidade propiciava a coabitação dos
contrários, invalidando uma idéia de identidade nacional veiculadora
de uma falsa noção de nossa desbrasilidade:
O brasileiro nortista que chegava / Dizia que aquilo não era Brasil
/ Que aquilo era uma aldeia russa. / Que o verdadeiro Brasil estava
lá no Amazonas / Lá no nordeste / Lá no sertão de Canudos / Onde os
homens eram de bronze / O ano todo era verão / E as casas todas
tinham só linhas curvas / Que não podia ser Brasil onde houvesse
geada até o meio-dia / Onde em vez de caboclo meio bronze mulato /
andassem polacos fazendo berganhas de porco e plantando mandioca /
Onde o bandoleiros em vez de usarem a roupa de couro dos cangaceiros
/ e cantarem modinhas tristes de negros e índios / Usassem bombachas
largas e boleadeiras e cantassem (meu Deus!) em castelhano. / Só que
o brasileiro do norte que chorava a desbrasilidade do sul / Não
notou que quando parava o seu fordinho na estrada esburacada / E
apeava para pedir água ou comprar fruta na chacrinha em frente / O
polaquinho / O russinho / O alemãozinho / O italianinho / Nascido
ali / traduzia o pedido do viajante pro pai e do pai pro viajante /
Numa língua igualzinha à dos caboclos de cor de bronze amulatado /
Sem regra de gramática portuguesa, graças a Deus!
A brasilidade
fica aqui definida através do uso de uma língua brasileira,
incorporada pela segunda geração, que faz da tradução do idioma
estrangeiro a ponte entre os componentes de uma sociedade
multifacetada que encontra na linguagem (e não em elementos como cor
de pele, olhos, sobrenome, alimentação etc.) a sua cidadania
brasileira. É também através da linguagem, usada por Pinheiro
Machado de forma estratégica nestes poemas, que o Paraná reivindica
a sua brasilidade, uma vez que o conceito de nação se encontra no
múltiplo. Este, aliás, é o tema do poema seguinte, que narra a
história de um provincianinho em férias no Rio, reclamando da
presença dos estrangeiros, que assediam as mulatas. O poeta vê na
aproximação sexual o caminho para um país carente de investimentos -
apesar da raiva do caboclo, "os estrangeiros que enriqueceram
comendo banana com farinha / Amontoam tanto cobre pra entregar pra
um genro brasileiro...". A contradição, que invalida as restrições
sofridas pelos imigrantes, fica definida pela atitude do
provinciano, símbolo de todo um setor nacional, não raro
nacionalista, voltado para o consumo de produtos estrangeiros: "E na
humildade de seus gestos acanhados / O provincianinho orgulhoso foi
entregar a bolada de tantos anos / Pras francesas sem coração".
Os poemas de
Brasil Pinheiro Machado operam a invenção do Paraná - consolidada
apenas pela geração seguinte, que contará com um livro fundamental
(Um Brasil diferente, de Wilson Martins) e com a atuação iconoclasta
da revista Joaquim, à qual Pinheiro Machado se une na significativa
condição de tradutor.
Curitiba, 12 de Janeiro de 1998
|