Miguel Sanches Neto
Habitar Livros
19.01.1998
A partir das obras Uma vida entre livros, de Mindlin, e
Uma
história da leitura, de Manguel, é discutida a
onda de reflexão
sobre a galáxia Gutenberg
O advento do
hipertexto desencadeou um inusitado interesse pelo livro e pela
questão da leitura. Uma obra como A palavra escrita, de Wilson
Martins, publicada em 1957, só pôde contar com uma segunda edição em
1996 (estando em processo uma nova tiragem) - já dentro desta
revalorização do texto impresso. Fica em aberto se tal preocupação é
uma espécie de balanço da era Gutenberg, significando não o fim do
livro mas o início de um retorno à sua condição matinal de utensílio
elitista, ou o estabelecimento definitivo de seu poder de
sobrevivência às inovações tecnológicas que esbarram sempre na
questão da obsolescência. Se um manuscrito milenar pode ser lido
ainda hoje, sem grandes atrapalhos de ordem material, um texto
gravado em CD será facilmente decodificado daqui 50 anos? Neste
caso, ele exigiria recursos técnicos já não mais disponíveis. Isso
permite pensar que o hipertexto é um mero atalho entre o leitor e o
livro ou ainda um estágio eliminatório da massa escrevinhadora que
nutre desejos de permanência através da escrita.
Independente de
seu destino, sofremos hoje a nostalgia do livro. Como ao volante de
nosso carro, seguimos em disparada para a frente, mas sem tirar os
olhos do espelho retrovisor, acompanhando estarrecidos a paisagem
que fica para trás. É um discurso duplamente nostálgico que
caracteriza o álbum Uma vida entre livros (reencontros com o tempo),
do colecionador José Mindlin - Edusp, 1997. Ele busca o seu tempo
particular e o dos livros. O bibliófilo, antes de mais nada, quer
participar de um passado ao qual se sente unido através da posse de
primeiras edições e de originais de grandes autores. Ele não se
contenta em fazer esta viagem através da leitura, preferindo o
contato físico com um objeto vinculado ao autor.
O reencontro
com o tempo aludido no título é o motor destas memórias de Mindlin
ao longo dos últimos séculos, dos quais, através de sua coleção, ele
garantiu o direito de ter sido contemporâneo. O seu tempo, portanto,
é o da civilização do livro: "num mundo em que o livro deixasse de
existir, eu não gostaria de viver" (p.214).
Há, por trás
deste discurso amoroso, um inocente exibicionismo por parte do
colecionador, que não se cansa de informar o leitor sobre as obras
mais significativas de sua biblioteca. Assim, não seria muito errado
ver este álbum como um catálogo disfarçado, que se justifica mais
pela qualidade de seu acervo do que pela relevância estilística e
reflexiva do relato, um tanto descosido embora muito palatável.
Mindlin é um colecionador que lê e não um leitor que coleciona pois
é o prazer, digamos, erótico de possuir um volume especial que o
leva às virtualidades da leitura. Se não podemos defini-lo
essencialmente como um leitor, seria incorreto pensá-lo apenas como
colecionador: "Em relação aos livros não tenho o fetiche da
propriedade. Sinto-me mais como um depositário do que um
proprietário" (p.213). Para quem, como o crítico, foi, por suas
limitações materiais, sempre um leitor de biblioteca pública, a
trajetória do colecionador (que comprou suas primeiras raridades na
adolescência) distingue-se por uma certa bizarrice.
Tirando a parte
específica sobre a arte de caçar livros prestigiosos - domínio de
interesse quase exclusivo dos aficionados -, revela-se minguada a
reflexão sobre o ato da leitura - embora o autor comunique através
de sua obsessão um exemplo de amor (ou da tara) pelos livros.
Incomparavelmente mais séria e consistente, Uma história da leitura,
de Alberto Manguel (Cia das Letras, 1997), é obra primorosa que nos
coloca diante de um grande leitor e de um escritor que sabe
conciliar inteligência e intuição, leitura e sensibilidade, rigor e
vigor. Contrariando a chatice do discurso acadêmico, que tem
imperado nos meios intelectuais, este ensaio é digno de um Borges -
de quem o autor foi leitor particular -, de um Calvino ou ainda de
um Brodsky. O artigo indefinido do título indica que o autor não
quis fazer a história da leitura, o que lhe permitiu uma grande
flexibilidade - trata o tema com toda a liberdade criativa, em uma
mistura de depoimento pessoal e reflexão histórica e filosófica,
tudo isso em linguagem marcada pelo estilo de quem é antes de tudo
escritor. Ele se apropria da história a partir de sua circunstância
de leitor.
O conjunto de
ensaios que nos apresenta é uma espécie de adiantamento da obra que
sonha escrever e que tem grande semelhança com o livro de areia -
esta metáfora borgeana do texto sem fim, em permanente processo de
desdobramento. A história da leitura é infinita e nunca poderá ser
capturada em um volume normal. Resta-nos o consolo de degustar esta
parcela que o autor conseguiu resgatar de suas páginas semoventes.
O livro,
composto de ensaios que podem ser lidos ao sabor do acaso, tem dois
grandes segmentos que o estruturam e guardam uma certa disposição
cronológica, embora o estilo ziguezagueante do autor vá e volte no
tempo e no espaço, sem perder de vista a linha reflexiva. No
primeiro segmento, Manguel faz um histórico da leitura, das
hipóteses de seu surgimento ao processo democratizador desencadeado
pela invenção da imprensa, que permitia um contato direto com o
livro, sem a intermediação do comentador - seja ele intelectual ou
religioso. (O próprio formato dos livros foi, ao longo dos tempos,
deixando de ser majestático e voltado apenas para as consultas em
biblioteca até atingir a versão de bolso, possibilitando assim a
participação do livro na intimidade do leitor, agora levado para a
cama, para as viagens, passeios pelo campo, etc.)
Um dos centros
deste relato é a possibilidade de libertação que a leitura
individual faculta ao leitor, que através dela pode encontrar os
seus caminhos sem a necessidade de nenhum cicerone. Atividade
criativa por excelência, a leitura forma os espíritos livres que
encontram nela muito mais do que um dogma, mas o hábito do
questionamento.
Este processo
autonômico foi lento. Primeiro precisou-se conquistar o hábito de
ler em silêncio (as leituras eram em voz alta), garantindo assim a
liberdade de escolher (as bibliotecas eram essencialmente coletivas)
qualquer tipo de obra e tirar delas as conclusões mais adequadas ao
sujeito da leitura: "um livro que pode ser lido em particular e
sobre o qual se pode refletir enquanto os olhos revelam o sentido
das palavras não está mais sujeito às orientações ou
esclarecimentos, à censura ou à condenação imediatas de um ouvinte"
(p.68). Assim, a conquista da privacidade foi um passo importante
para o estabelecimento do papel libertário do ato de ler, levando ao
reconhecimento de que só existe realmente uma biblioteca na memória
do leitor - o livro acaba assim visto como meio de uma informação
que só poderá ser reconhecido por quem se entrega a ele. Colocar no
leitor e não no texto o centro da leitura é subverter o poder da
informação em favor do da invenção - em nossa sociedade globalizada,
onde se vive sob a ditadura da informação, este recorte da história
da leitura é de grande significado.
O leitor não
apenas se faz ao ler como faz a literatura neste ato de doação de
sentido ao livro. Aprender a ler, portanto, ultrapassa o nível de
decodificação de uma mensagem unívoca, sendo o exercício mais pleno
de uma autoridade reflexiva que o ser humano pode adquirir. Todo e
qualquer patrulhamento (quem passou pelas faculdades de letras sabe
do que estou falando) é um retrocesso histórico na medida em que
ignora os direitos do leitor individual, da leitura fundante, em
nome de um sentido pré-fabricado. Não existe, portanto, nem
autoridade crítica nem autoral; acreditar nisso seria o mesmo que
cassar a autoridade do leitor. É a descoberta de um sentido e não a
localização de um sentido já estabelecido que dota o ato de ler de
um poder revolucionário. Assim, temos que optar entre ler, por
exemplo, Machado de Assis ou reler o Machado de Assis forjado pela
glosa crítica. Neste último caso, seremos objeto de uma
interpretação - não passando a leitura de um mero mecanismo de
dublagem.
Nada legitima
uma leitura fechada, ortodoxa, porque o próprio texto é sempre
inacabado - ele espera a penetração do seu descobridor para que este
introduza sua vivência, esboçando assim uma possibilidade de
significação que faz o livro à sua imagem e semelhança. O meu Dom
Casmurro será diferente de qualquer outro, porque ao penetrá-lo
alterei sua mecânica. Conceber o livro como portador de uma
estrutura aberta é compreender a leitura como atividade reflexiva
não desconectada com a vida: o leitor se lê nos livros que compulsa,
uma vez que o texto se caracteriza por um tecido elástico, ajustável
a vários perfis de leitores. Nesse sentido, não precisamos ler todo
tipo de obra, mas apenas aquelas que têm condição de nos ler. A
leitura enquanto atividade narcisista é a mais fecunda.
Daí Manguel
empreender uma liquidação do lugar comum segundo o qual quem lê se
fecha para a vida, isola-se do mundo, deixa de viver. Na verdade, o
ato da leitura é muito mais amplo do que a decodificação de textos -
é algo que está presente em todos os momentos de nossa vida, na
leitura da realidade, da qual o debruçar-se sobre o texto é apenas
uma parte.
Podemos dizer
que esta história da leitura está centrada no leitor, que é objeto
de análise do segundo segmento da obra em questão. Embora seja vasta
a tipologia do leitor, do que rouba volumes ao que coleciona e
classifica, do que lê na cama ao que vive em bibliotecas e arquivos,
uma característica é comum a todos: são seres que passam por cima
das limitações de tempo e espaço, de classificação e de galvanização
dos conteúdos, tornando presente e atual toda obra por ele habitada.
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