Borges
dizia que só depois de um espaço de tempo de meio século
é que aflorariam os grandes escritores do presente. No calor da
hora, prevalecem os carreiristas, os autores que investem na autopromoção
e os oportunistas dos mais variados quilates. Enquanto os demais se exibem
nas colunas sociais da literatura, o grande escritor permanece em seu canto,
trabalhando em silêncio e publicando livros para alguns fiéis
amigos. Foi assim a trajetória de Alberto
da Costa e Silva (nascido em 1931), que tem uma seleta bibliografia
? mostrando a sua opção por dizer o mínimo, por escrever
apenas o essencial, sem nenhuma preocupação com marcar presença
na agenda literária do país. Além de ter poucos livros
(e livros invariavelmente curtos), Alberto da Costa e Silva reuniu boa
parte de seus poemas em edições fora do comércio,
destinadas ao seu círculo de amizade. Ao contrário do poeta
afoito para entrar no mercado, o que faz com que produza poemas em série,
Da Costa e Silva colocou toda a sua maestria
a serviço da poesia e não da promoção pessoal
ou de modismos.
Sua
mais recente coletânea ( Ao lado de Vera, Nova Fronteira, 1997 )é
composta por poemas escritos nas duas últimas décadas. Suas
100 páginas, em formato pequeno, dão bem a medida do poeta,
que não acredita na quantidade. Poemas primorosos, nascidos de alguém
que domina a língua, coisa cada vez mais rara em nossa literatura
de improvisadores, Da Costa e Silva passa, com este livro a fazer parte
da literatura nacional definitiva ? e isso aos 67 anos.
Poeta moderno
(sem nunca ser modernoso), interessa-lhe principalmente a questão
da passagem do tempo, das relações humanas e da morte. Assim,
sua poesia brota de uma sensibilidade extremamente aguçada para
a transitoriedade humana, que marcou a sua formação. Em seu
livro anterior ( Espelho do Príncipe, Nova Fronteira, 1994 ), o
poeta restaurou o ambiente familiar e humano em que se deram as suas descobertas
do mundo. É um de nossos grandes livros de memória e mostra
a marcante presença da figura paterna em sua obra. Filho temporão
do poeta Da Costa e Silva, ele presenciou o declínio do pai, acometido
por uma doença e exilado em terras cearenses, vivendo um estado
de enfermidade paralela. Tal proximidade da morte vai configurar sua maneira
de ver o mundo.
Espelho
do Príncipe é, todavia, muito mais do que um balanço
sentimental de suas raízes, é a afirmação de
um laço indissolúvel com um mundo rústico, de pobreza,
que passava por uma mudança com a entrada de um novo modo de vida.
As memórias resgatam o período da II Guerra Mundial e revelam
o estabelecimento de hábitos estrangeiros, trazidos pelas tropas
norte-americanas instaladas em Sobral (Ceará).
Neste livro
de reminiscências, o poeta, que não aceita o ter sido, retorna
a seu reino perdido através do espelho da memória. Não
lhe coube reinar, mas ser apenas o príncipe. E é na condição
de infante que ele restaura os móveis humanos de sua pátria
mais íntima.
O memorialista,
na verdade, é um desdobramento do poeta que assume a tarefa de manter
sempre vivo o que já foi e que, através dele, continua sendo.
Já se disse que o grande motivo poético de sua obra é
a figura paterna. Isso, no entanto, é apenas uma meia verdade. Não
existe uma única figura privilegiada em sua poesia. Ela sidera em
torno das pessoas queridas, principalmente dos familiares. A poesia é,
para Alberto da Costa e Silva, uma maneira de neutralizar a orfandade humana
que ele, grande herdeiro do transitório, sente de forma mais profunda
do que as demais pessoas. Assim, em “Murmúrio”, o poeta sussurra:
Vou pedir a meu pai
que me esqueça menino.
Ou seja,
que o livre da morte. Este poder de fixar os seres em um tempo seguro é
dado ao pai-poeta, revelando a grande tarefa salvadora do escritor.
Embora
em Ao lado de Vera apareça, referências ao seu progenitor,
outras pessoas de seu convívio ganham uma espessura poética.
A mais saliente é sua mulher. Vera é o símbolo da
permanência, como podemos ver no poema que abre o livro (“Soneto
a Vera”), onde o poeta diz que “o que passa persiste no que tenho” (p.9),
idéia retomada no último texto desta seção
do livro, texto que apresenta o mesmo título. Nele, a mulher amada
permanece intacta, apesar da passagem do tempo:
(...) E vais, deitada,
como um barco na praia, alheia ao tempo
a se bordar no bastidor da tarde. (p.35)
Esta eternidade
do amor, maneira de desafiar a morte, faz com que, em “O amor aos sessenta”,
o poeta continue a sua descoberta dos encantos da mulher sempre desejada:
E amar-te, sabendo que a velhice descobre
A mais bela beleza no teu rosto jovem. (p.81)
O que une
o casal é a consciência de que velhice e juventude não
são fases opostas, mas convivem juntas no ser humano, desde que
este tenha presente o tempo passado. Viver integralmente é não
aceitar as divisões impostas pelo tempo.
Além
da figura do filho, aparecem com insistência os netos. Há,
em vários poemas, um diálogo com os jovens descendentes que
ritualizam um encontro com a própria infância do autor. Se
o filho, como ele diz, é uma espécie de pai do poeta (“Perdoa-me
a tristeza, / como se fosses meu pai, / e não meu filho”), o avô
encontra-se no mesmo nível dos netos. Estes são o retorno
de seu passado. Tal sentido perenizador da criança é o tema
de “Num retrato, para João Marcelo”, em que se dá a união
da infância do autor com a de seu neto. O poeta mostra ao menino
um velho retrato seu, lembrando que:
Nem sei se sou eu ou se és tu o menino
Nesta foto apagada (...) (p.75)
Assim,
o menino (personagem principal de Espelho do Príncipe) é
o elemento de resistência à morte, à passagem do tempo.
Funcionando como personificação da infância, dele advém
a força restauradora da vida, que concede ao precário ser
humano o conforto da permanência.
Muito
mais do que uma poesia que se funda na visão nostálgica do
tempo perdido, a obra de Alberto da Costa e Silva deve ser lida como um
ágape atemporal, como uma refeição que coloca todos
os seres de sua vida, os do passado e os do presente, ao redor de uma mesa
para celebrar a vida e sua indestrutibilidade, apesar da morte. É,
portanto, uma literatura de agregação, que insiste em exercitar
o perene numa dimensão em que tudo se desmancha no ar.
Quando o sonho se acolhe em nosso corpo
(...)
e a flor suja sobre a cerca podre
se constela em jardim, e a noite cede,
(...)
e quando o tempo não discorre e pára
o apertar do garrote, a roda e as armas
com que a vida a si mesma se guerreia,
tudo é completo, embora frágil (...) (p.43)
Esta visão
de mundo, que nada tem de piegas e de adocicada, é uma forma de
não aceitar o que existe de falência na vida humana, é
uma maneira de conceber os homens como deuses provisórios, ou, como
diz o poeta, “deuses no tempo”, conjugando fragilidade e resistência,
morte e vida. É a afirmação do princípio da
vida sobre o da morte. Sua poesia, apesar do travo amargo, aposta na sobrevivência
da infância e na eternidade do amor.
Desconheço,
na literatura brasileira contemporânea, um poeta com a mesma força
expressiva, com uma poesia sem o menor resquício da brincadeira
inconseqüente, que encontrou na infância não os jogos
de palavras, ou os chistes espirituosos, mas uma visão filosófica
do mundo. A sua fórmula é envelhecer ao lado da infância,
e não ser uma criança para não envelhecer ? receita
que a sociedade capitalista vem prescrevendo para todos aqueles que não
querem encarar a indesejada das gentes.
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