Miguel Sanches Neto

FRÁGEIS  DEUSES  NO TEMPO 
 
           Borges dizia que só depois de um espaço de tempo de meio século é que aflorariam os grandes escritores do presente. No calor da hora, prevalecem os carreiristas, os autores que investem na autopromoção e os oportunistas dos mais variados quilates. Enquanto os demais se exibem nas colunas sociais da literatura, o grande escritor permanece em seu canto, trabalhando em silêncio e publicando livros para alguns fiéis amigos. Foi assim a trajetória de Alberto da Costa e Silva (nascido em 1931), que tem uma seleta bibliografia ? mostrando a sua opção por dizer o mínimo, por escrever apenas o essencial, sem nenhuma preocupação com marcar presença na agenda literária do país. Além de ter poucos livros (e livros invariavelmente curtos), Alberto da Costa e Silva reuniu boa parte de seus poemas em edições fora do comércio, destinadas ao seu círculo de amizade. Ao contrário do poeta afoito para entrar no mercado, o que faz com que produza poemas em série, Da Costa e Silva colocou toda a sua maestria a serviço da poesia e não da promoção pessoal ou de modismos. 

           Sua mais recente coletânea ( Ao lado de Vera, Nova Fronteira, 1997 )é composta por poemas escritos nas duas últimas décadas. Suas 100 páginas, em formato pequeno, dão bem a medida do poeta, que não acredita na quantidade. Poemas primorosos, nascidos de alguém que domina a língua, coisa cada vez mais rara em nossa literatura de improvisadores, Da Costa e Silva passa, com este livro a fazer parte da literatura nacional definitiva ? e isso aos 67 anos.  

     
           Poeta moderno (sem nunca ser modernoso), interessa-lhe principalmente a questão da passagem do tempo, das relações humanas e da morte. Assim, sua poesia brota de uma sensibilidade extremamente aguçada para a transitoriedade humana, que marcou a sua formação. Em seu livro anterior ( Espelho do Príncipe, Nova Fronteira, 1994 ), o poeta restaurou o ambiente familiar e humano em que se deram as suas descobertas do mundo. É um de nossos grandes livros de memória e mostra a marcante presença da figura paterna em sua obra. Filho temporão do poeta Da Costa e Silva, ele presenciou o declínio do pai, acometido por uma doença e exilado em terras cearenses, vivendo um estado de enfermidade paralela. Tal proximidade da morte vai configurar sua maneira de ver o mundo.  
     
           Espelho do Príncipe é, todavia, muito mais do que um balanço sentimental de suas raízes, é a afirmação de um laço indissolúvel com um mundo rústico, de pobreza, que passava por uma mudança com a entrada de um novo modo de vida. As memórias resgatam o período da II Guerra Mundial e revelam o estabelecimento de hábitos estrangeiros, trazidos pelas tropas norte-americanas instaladas em Sobral (Ceará). 
     
           Neste livro de reminiscências, o poeta, que não aceita o ter sido, retorna a seu reino perdido através do espelho da memória. Não lhe coube reinar, mas ser apenas o príncipe. E é na condição de infante que ele restaura os móveis humanos de sua pátria mais íntima.  
     
           O memorialista, na verdade, é um desdobramento do poeta que assume a tarefa de manter sempre vivo o que já foi e que, através dele, continua sendo. Já se disse que o grande motivo poético de sua obra é a figura paterna. Isso, no entanto, é apenas uma meia verdade. Não existe uma única figura privilegiada em sua poesia. Ela sidera em torno das pessoas queridas, principalmente dos familiares. A poesia é, para Alberto da Costa e Silva, uma maneira de neutralizar a orfandade humana que ele, grande herdeiro do transitório, sente de forma mais profunda do que as demais pessoas. Assim, em “Murmúrio”, o poeta sussurra:  
                          Vou pedir a meu pai 
                          que me esqueça menino. 
     
           Ou seja, que o livre da morte. Este poder de fixar os seres em um tempo seguro é dado ao pai-poeta, revelando a grande tarefa salvadora do escritor. 
     
           Embora em Ao lado de Vera apareça, referências ao seu progenitor, outras pessoas de seu convívio ganham uma espessura poética. A mais saliente é sua mulher. Vera é o símbolo da permanência, como podemos ver no poema que abre o livro (“Soneto a Vera”), onde o poeta diz que “o que passa persiste no que tenho” (p.9), idéia retomada no último texto desta seção do livro, texto que apresenta o mesmo título. Nele, a mulher amada permanece intacta, apesar da passagem do tempo: 
                           (...) E vais, deitada, 
                           como um barco na praia, alheia ao tempo 
                           a se bordar no bastidor da tarde. (p.35) 
     
           Esta eternidade do amor, maneira de desafiar a morte, faz com que, em “O amor aos sessenta”, o poeta continue a sua descoberta dos encantos da mulher sempre desejada:  
      
                           E amar-te, sabendo que a velhice descobre 
                           A mais bela beleza no teu rosto jovem. (p.81) 
     
           O que une o casal é a consciência de que velhice e juventude não são fases opostas, mas convivem juntas no ser humano, desde que este tenha presente o tempo passado. Viver integralmente é não aceitar as divisões impostas pelo tempo. 
     
           Além da figura do filho, aparecem com insistência os netos. Há, em vários poemas, um diálogo com os jovens descendentes que ritualizam um encontro com a própria infância do autor. Se o filho, como ele diz, é uma espécie de pai do poeta (“Perdoa-me a tristeza, / como se fosses meu pai, / e não meu filho”), o avô encontra-se no mesmo nível dos netos. Estes são o retorno de seu passado. Tal sentido perenizador da criança é o tema de “Num retrato, para João Marcelo”, em que se dá a união da infância do autor com a de seu neto. O poeta mostra ao menino um velho retrato seu, lembrando que: 
                           Nem sei se sou eu ou se és tu o menino 
                           Nesta foto apagada (...) (p.75) 
     
            Assim, o menino (personagem principal de Espelho do Príncipe) é o elemento de resistência à morte, à passagem do tempo. Funcionando como personificação da infância, dele advém a força restauradora da vida, que concede ao precário ser humano o conforto da permanência.  
     
            Muito mais do que uma poesia que se funda na visão nostálgica do tempo perdido, a obra de Alberto da Costa e Silva deve ser lida como um ágape atemporal, como uma refeição que coloca todos os seres de sua vida, os do passado e os do presente, ao redor de uma mesa para celebrar a vida e sua indestrutibilidade, apesar da morte. É, portanto, uma literatura de agregação, que insiste em exercitar o perene numa dimensão em que tudo se desmancha no ar.  
                           Quando o sonho se acolhe em nosso corpo 
                           (...) 
                           e a flor suja sobre a cerca podre 
                           se constela em jardim, e a noite cede, 
                           (...) 
                           e quando o tempo não discorre e pára 
                           o apertar do garrote, a roda e as armas 
                           com que a vida a si mesma se guerreia, 
                           tudo é completo, embora frágil (...) (p.43) 
     
           Esta visão de mundo, que nada tem de piegas e de adocicada, é uma forma de não aceitar o que existe de falência na vida humana, é uma maneira de conceber os homens como deuses provisórios, ou, como diz o poeta, “deuses no tempo”, conjugando fragilidade e resistência, morte e vida. É a afirmação do princípio da vida sobre o da morte. Sua poesia, apesar do travo amargo, aposta na sobrevivência da infância e na eternidade do amor. 
     
           Desconheço, na literatura brasileira contemporânea, um poeta com a mesma força expressiva, com uma poesia sem o menor resquício da brincadeira inconseqüente, que encontrou na infância não os jogos de palavras, ou os chistes espirituosos, mas uma visão filosófica do mundo. A sua fórmula é envelhecer ao lado da infância, e não ser uma criança para não envelhecer ? receita que a sociedade capitalista vem prescrevendo para todos aqueles que não querem encarar a indesejada das gentes.  
  
 (in Gazeta do Povo, 1.6.1998) 

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