Miguel Sanches Neto
A alegria da palavra
02.10.2004
Vocação prematura para a poesia, tendo escrito seu primeiro poema
aos 14 anos, Lêdo Ivo (1924) cultivou, em toda a sua obra, a
vitalidade e a inquietação criativas, que agora podem ser
acompanhadas na leitura de sua Poesia completa (Topbooks/Braskem,
2004), volume indispensável para qualquer leitor sério de poesia. Em
nenhum momento de seu extenso percurso literário, encontramos
deflação de entusiasmo ou descrença no poder da palavra. O poeta
está sempre convicto de sua missão de criador que se comunica
concomitantemente com o mistério e a realidade, com divindades
obscuras e homens sofridos. Do choque destes dois pólos nascem
poemas memoráveis.
Sua produção mais matinal, surgida no período em que a Geração de 45
estava em cena, não se deixou dominar pela intransigência de
conceitos, embora traga as preocupações da época. Entre a vertente
classicizante e a surrealista desta geração, Ledo Ivo se aproxima da
última, em busca de um verbo oceânico, que não fica preso nem ao
nacional nem ao formal, temáticas restritivas. Seus versos são
extensos e o poeta canta principalmente o inefável. Em Imaginações
(1944), reivindicando uma perspectiva universal, dirige-se,
significativamente, à figura paterna, em uma recusa à casa e à
paisagem familiares: “Pai, meus pensamentos não cabem na tua sala
com piano tranqüilo a um lado e escuras cadeiras vazias perto da
janela” (p.72). No volume seguinte (Ode e elegia, 1945), impõe-se o
“Canto da imaginária janela aberta”, em que ele reafirma seu vínculo
com o mundo vasto mundo, negando qualquer aprisionamento e retomando
versos extensos que não cabem na sala burguesa de nossa poesia.
Nesta fase, apesar dos sofrimentos da guerra, o poeta enaltece a
alegria da palavra, seu poder restaurador: “Oh, sou apenas um poeta
que não quer cantar as coisas da decrepitude” (p.111), credo a que
manterá fiel por toda a vida.
Nas palavras em estado lírico ele via um amanhecer (no sentido
histórico e metafísico), o que tornava a poesia uma necessidade de
celebração do intangível, a poesia como caminho para o absoluto,
onde residem as coisas que não se deixam perecer. Defendendo a
inspiração, subverteu a hegemonia do racionalismo estético em O
acontecimento do soneto (1948), ao mostrar que mesmo esta forma
matemática é antes um alumbramento: “Não se faz um soneto; ele
acontece” (p.118). Tal prática o leva a conjugar a imaginação
desbragada a um senso de medida, valendo-se alternadamente dos dois
expedientes.
A cada livro, sem nunca deixar de dar respostas às questões do
presente, nem de se manter fiel a seu ser profundo, Lêdo Ivo elide
os contrários, desfazendo definitivamente o antagonismo equivocado
entre modernidade e tradição (“mergulhado no passado, / cada vez
mais moderno e antigo”, p. 115). E seus livros vão sendo levantados
contra tais simplificações. Sem nunca renunciar ao verbo
transcendente, ele vai tratar de temas sociais (principalmente em
Estação central, 1964); exercita composições longas (cântico, ode,
elegia, poema dramático) e pratica, a seu tempo, sonetos, poemas
singelos (O soldado raso, 1980) e haicais; passa dos grandes
questionamentos metafísicos ao humorístico e à poesia amorosa, uma
de suas dicções constantes.
É impossível definir poeta com tamanha complexidade, que elege como
eixo do mundo a eternidade (“ó meu país natal, eternidade”, p. 235),
mas também a linguagem (“Ó minha linguagem, ó meu país natal”, p.
332) e por fim seu pago palustre (“Minha pátria não é a língua
portuguesa [...] é a terra mole e peganhenta onde nasci”, p. 1027).
Estas latitudes múltiplas fazem de Lêdo Ivo um dos casos mais densos
de nossa poesia.
Ignorando a vanguarda cega, que negava o verso, e as verdades
partidárias, praticou inúmeros gêneros poéticos sempre com um desejo
de vencer o fungível, de conquistar uma sintaxe que, sem ser
propriamente hermética, estabelece conexão com realidades mais
profundas, muitas vezes flagradas no cotidiano degradado da cidade
dos homens.
Em tudo que escreveu, encontramos em primeiro plano a vastidão
poética, que não tem na folha em branco uma inimiga, mas uma aliada.
Escrever tem sido para ele uma forma de celebrar o mistério, as
aéreas raízes divinas do humano, tentando fazer da linguagem ponto
de encontro entre o eterno e o efêmero.
Se a tendência de todo poeta é ir construindo certezas, para
fornecer em série as respostas esperadas por seus leitores, em um
processo de fechamento de sentido (um exemplo disso está em João
Cabral de Melo Neto), o grande diferencial de Lêdo Ivo é
problematizar cada vez mais suas inquietações, produzindo uma poesia
em que os excessos verbais e metafóricos não são gratuitos - eles
fazem parte de uma tendência para a ambigüidade e para aquilo que
está além das experiências biográficas. Neste longo percurso, o
poeta vem soletrando virilmente, à luz do crepúsculo ou da lua,
todos os idiomas da dúvida.
Miguel Sanches Neto é poeta, romancista, contista, ensaista,
crítico e professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(Paraná)
POEMAS
A um crítico
Sou o que sou quando não sou.
Sou o espelho onde os outros
em mim se contemplam.
Pensas que não passo
de um pássaro canoro
embora eu seja uma esfinge.
E porque não me decifras
eu te devoro.
A noite misteriosa
Quando durmo, um pássaro
pousa no meu ombro.
Vou sem minha sombra
por essa alameda
que só há nos sonhos.
O sol rompe a névoa
que cai do céu branco
O pássaro voa
e termina o assombro.
O dia insuficiente
Tamanho dia não me guarda inteiro.
Dele sobra a minha alma distraída.
Nesta cinta no excesso me agasalho,
o ouvido surdo a toda marulhada
que se derrama pelo chão cativo.
Pela roda dos anos aprendi
tudo que ensina a morte, quando ensina,
como cartilha aberta sobre a mesa.
Despartido da vida, embora vivo,
em vão procuro a terra do outro lado.
Transposta esta fronteira, não há légua
nem estrelas, nem novo dia claro. |
Leia:
Poesia Completa
Lêdo Ivo
Topsbooks/ Braskem
Preço: R$ 69
Leia a obra de Lêdo Ivo
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