Miguel Sanches Neto
Biblioteca aberta
9.6.2003
Escrevendo sobre José Paulo Paes, Antônio Carlos
Secchin revela sua própria circunstância literária: "Quando um
crítico e um poeta habitam uma mesma pessoa, com alguma freqüência o
primeiro sufoca o segundo, fazendo minguar-lhe a produção [...]. Na
contracorrente desta tendência, num notável exemplo de efetiva
convivência entre prática poética e discurso crítico, situa-se a
obra de José Paulo Paes" – Escritos sobre poesia & alguma ficção (Eduerj:
1993, p. 195). Em Secchin, não apenas poeta e crítico convivem de
forma harmoniosa como há ainda outras ocupações que se insinuam
tanto em seus textos criativos quanto nos analíticos: a do professor
e a do colecionador de primeiras edições de literatura brasileira –
a sua é a segunda maior biblioteca particular nesta área.
Esta personalidade plural leva-o a escrever e a
publicar páginas das mais variadas intenções. O título desta sua
nova reunião é, portanto, extremamente feliz. O leitor não
encontrará o ensaio analítico, a crítica sobre lançamentos ou um
texto sobre história literária. Há de tudo neste volume marcado por
um desejo de inventariar as múltiplas atividades do autor. Temos
desde a narrativa ficcionalizada "Memórias póstumas de Castro
Alves", em que o crítico assume a voz do poeta, dando assim leveza e
certa ironia aos dados biográficos do vate baiano, às entrevistas
que Secchin concedeu à imprensa brasileira, passando por
apresentações de livros e CDs, palestras e pelo argumento para a
inscrição de Ferreira Gullar ao Prêmio Nobel, feita pelo crítico.
Não poderíamos colocar o livro dentro de uma categoria mais
apertada, são realmente "escritos", palavra que melhor define a
diversidade de linguagem e de abordagem deste volume. Não há nisso
nenhum demérito, apenas a percepção da natureza dos textos,
valorizada pelo autor.
Da mesma forma que sua coletânea poética Todos os
ventos (Nova Fronteira, 2002) não tinha um centro estilístico, pois
o poeta queria praticar poesia e não uma forma de poesia, este
volume carece de qualquer hierarquia literária. Secchin abriu mão do
julgamento, comentando tudo dentro de uma composição sem linhas de
fuga. O resultado é um amplo painel em que aparece, com uma certa
equivalência de espaço, desde mestres de nossa literatura até nomes
destinados ao esquecimento. O crítico lê todos com o mesmo
entusiasmo analítico, festejando esta entidade democratizada – a
palavra em estado literário. O centro de suas leituras é ainda João
Cabral de Melo Neto, tema recorrente em seu currículo crítico,
tratado sempre com paixão. É interessante salientar que, apesar
desta presença forte do escritor pernambucano, Antonio Carlos
Secchin não lê os demais poetas usando Cabral como contraste. Assim,
poetas difusos, como uma Cecília Meireles, aparecem generosamente
comentados, sem nenhum resquício de preconceito. Esta parecer ser a
postura escolhida pelo crítico: a não-discriminação estética. Com o
mesmo respeito e o mesmo festejo de linguagem são tratados poetas
antagônicos como o recém-falecido Waly Salomão e Alexei Bueno, donos
de dicções bem distantes.
Se Cabral ocupa lugar privilegiado no trabalho de
Secchin, neste livro os momentos mais altos parecem estar em dois
textos de revisão da historiografia literária: "Algumas notas sobre
o parnasianismo" e "Simbolismo e modernismo". A ausência de uma
receita de programa permite ao poeta ler com devoção estes
movimentos que precederam nosso modernismo, visto apenas como
rompimento com o passado: "Lidos sem preconceito, os parnasianos –
como todos os poetas efetivos – ainda hoje têm o que ensinar aos
novos poetas. [...] As sucessivas edições das obras de Bilac
(atualmente também redescoberto e valorizado como cronista) indicam
que, apesar da barreira modernista, a poesia parnasiana vai
conseguir chegar ao leitor do século XXI" (p. 138).
Contra todas as formas de barreira, o crítico ergue
sua palavra compreensiva e acolhedora, e mesmo que em alguns
momentos ele deixe transparecer a sua descrença no livro que está
sendo desembrulhado para o leitor, sentimos o seu olhar terno, o seu
esforço para gostar, o seu respeito ao trabalho do outro. O
resultado é um conjunto de textos que não quer criar uma lista dos
melhores autores disso ou daquilo, mas que fala da palavra poética,
em suas mais variadas temperaturas, das quase frias às ferventes.
Há achados lapidares em seus textos, como a metáfora
tirada do vestuário da época para revelar o predomínio social de um
movimento: "a gravata e o fraque parnasianos venceram a batalha
contra a túnica simbolista" (p.139). A arte de Secchin se manifesta
principalmente nestes entremeios textuais.
Do colecionador vem seu gosto de analisar as edições
do livro, o que lhe permite fazer descobertas interessantes, que
passam despercebidas para o leitor mais voltado para a última
impressão do livro. A prática do magistério lhe dá a facilidade para
as sínteses didáticas de épocas, estilos e obras. E a alma de poeta
determina sua propensão a metáforas que flagram o espírito de um
texto ou de um autor.
Estas características configuram um estilo de escrita
sem os rigores da escola dos cartógrafos, sem a linguagem
excessivamente técnica e sem nunca perder de vista o livro. O
comandante conduz seu barco próximo desta costa literária – para
usar a imagem de John Updike –, não dando valor excessivo às
divagações teóricas. Sempre vemos os livros ou os textos que estão
sendo comentados, jamais nos perdemos deles nesta viagem pela
biblioteca aberta para a qual o crítico nos convida.
Duas coisas apenas talvez possam incomodar o leitor.
Este território democrático faz com que nos percamos entre alguns
poetas secundários, para cujas obras não sentimos maior apelo. Lemos
algumas partes do livro como se estivéssemos em um espaço social,
sendo educadamente apresentados a pessoas.
O outro problema que vejo, talvez um preconceito de
minha geração, é o gosto por jogos com palavras, principalmente com
títulos de livros, e o uso de trocadilhos, uma preferência que liga
o autor aos anos 70, quando este estilo analítico passou a ser um
instrumento de desconstrução da solenidade crítica. Exaurido o
impacto de tal recurso, ele fica um pouco deslocado num texto que é
de uma elegância ímpar, tanto no tom urbano quanto na gramática
clara e precisa.
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