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Miguel Sanches Neto




Animal recordativo

 


 

Ler poesia contemporânea é, na maioria das vezes, ler o vazio, quando todo ato de leitura pressupõe uma transcendência do texto rumo a algo que está além, neste espaço nublado do sentido. A grande poesia é sempre uma aventura de ultrapassagem, que nos coloca em contato com as incontroláveis forças humanas. A poesia em voga hoje está, no entanto, presa ao umbigo da própria palavra, como se ela não comunicasse a experiência de um sujeito e de toda a humanidade. Se não apontar para o humano, o poema passará a fazer parte de um mundo de objetos e terá tanta importância quanto uma coleção de parafusos. Sabemos que o parafuso é um elemento essencial da mecânica, mas ele sozinho não tem a menor razão de ser. Ele só existe como parte de um maquinismo. Na companhia de seus pares, funciona como peça do colecionismo. Boa parte do que se publica como poema é uma coleção de parafusos por não considerar o homem, ficando no nível mais objetual da linguagem.

Abrindo sua nova coletânea com um texto que fala do descompasso entre os poemas vividos na alma e os que foram escritos, Ruy Espinheira Filho (Elegia de agosto: Bertrand Brasil, 2005) marca a natureza de uma poesia que não se quer como conquista material num mundo de coisas. O poeta baiano localiza o poético neste lugar vago que é alma, espaço em que o tempo foi suspenso, possibilitando experiências mais plenas. A alma e o sonho são a pátria primeira da poesia, sendo o poeta um tradutor desta dimensão para a outra – secundária, a da palavra.

Ruy Espinheira é um autor na contra-mão da tendência materialista por produzir uma poesia universal, que remete o leitor a uma pantemporalidade. Nesta sua pátria alargada, o ontem fulgura como agora. Ele não nega o passado (tal como a tradição modernista e suas derivações contemporâneas) e nem o toma como único tempo de grandeza (à maneira dos tradicionalistas), por entender todos os tempos dentro de um continuum. Se a realidade material muda, o homem permanece uno – Elegia de agosto vai reafirmar esta transcendência em um conjunto primoroso de poemas.

O que é o poema para este autor? É principalmente uma iluminação, uma epifania, uma abertura da temporalidade por meio da palavra, um túnel que interliga tempos. Logo, o poeta não recupera todo um tempo marcante, e sim uma fração simbólica, portadora de sentidos metonímicos. Em “Soneto dos incomparáveis joelhos”, ele não se recorda da mulher, mas de certos joelhos impessoais, que não saem de sua memória há 30 anos. Estes joelhos continuam “ardendo – sem lugar nem tempo – em mim” (p.49). E voltamos à idéia de que a poesia é freqüentar este espaço de alma e sonho, fora das contingências históricas.

A crença na memória substitui o realismo das coisas tal como elas são. Além desta natureza palpável, do corpo que tocamos, há uma dimensão interna. A memória torna-se a ferramenta poética por excelência, capaz de colocar em ação, no tempo presente, o que já não existe fora destas experiências diáfanas de recordação. A poesia, vista assim, é um legado de outros ontens que o poeta deixa aos seus – tal como Ruy escreve em “Herança” –, impalpável mas extremamente denso de significação.

Em “Insônia”, verdadeira obra-prima da poesia brasileira, o poeta (e não esta figura de linguagem, o eu lírico) olha as telhas de barro (está em uma casa sem forro) enquanto tenta em vão dormir. Surge-lhe então uma frase que ele não sabe o que significa: “o silêncio sonha nas telhas”. Eis um verso forte, carregado de conotações. As telhas de barro são o futuro pó de todo homem, nelas o que era humano virou apenas silêncio, mas mesmo este silêncio sonha e, portanto, está além de seu estado de descanso. O silêncio das telhas revela ao poeta a sua natureza frágil e perene, de ser destinado à falência e programado para o sempre mesmo depois do fim de tudo. Até as coisas sonham. Sonhar é nossa revolta contra a matéria. Daí a idéia de que todo o ser é um processo de permanente acumular-se: “guardo / como vêem / memórias / que o tempo faz cada vez mais fundas” (p71). Esta é a grande marca de Ruy Espinheira, cuja poesia nasce no território da memória, maior do que qualquer outro que o homem possa conquistar.

Como fica sugerido em outro texto (“Biografia”), escrever é recusar a superfície das coisas em busca das “ficções profundas” do ser humano, onde mora a verdade imorredoura. A fonte da poesia é a recordação, em cujas águas imóveis o poeta constantemente se banha.
Em alguns poemas, a memória vai ser representada pela água parada (“Açude” e “Moringa”), em oposição ao rio corrente do tempo histórico e corporal. Em “Soneto a dez dias de completar 60 anos”, Ruy define o homem nesta idade como “lago obscuro, um vago vinho / em que marulha a voz de outras idades” (p.118). Vozes de outra cidade, a cidade da memória e dos mortos, de onde jamais saímos – eis o endereço do poeta, principalmente no conjunto de poemas chamado “A cidade e os sonhos”.

Animal recordativo, o homem existe porque existe como memória. Em todos os textos de Ruy, uns mais outros menos, há este coração pretérito e pulsante da poesia. Escrever não é um artesanato, um trabalho de marchetaria com palavras, mas uma coabitação de tempos, convívio entre seres (instantes) mortos e vivos. A escrita causa sofrimento, pois coloca o poeta nesta outra cidade, apesar da aparente tranqüilidade de seu verbo crepuscular:

...escrevo estas palavras que parecem
fáceis e indiferentes mas são
difíceis e dolorosas (p.137)
 

A dificuldade não está na linguagem, mas nas experiências que a precedem, quando o poeta se comunica com o tempo perdido. Isso explica a opção por uma poesia rigorosa na sua espontaneidade lírica, que não chama a atenção para o estilo. O estilo é obtido por meio de uma situação de purificação anterior, extra-estética, quando o poeta participa do território da alma/sonho, para dele extrair uma mensagem límpida, que nos é transmitida em uma forma tranqüila, sem crispações pânicas.

 



Ruy Espinheira Filho
Leia a obra de Ruy Espinheira Filho
 

 

 

 

10/06/2005