Nelson Ascher
A crítica e o tempo
[in Folha de São Paulo,
23.05.2005]
Meses atrás , Marcelo Rubens Paiva
comentou, um pouco hiperbolicamente, que, escrevendo sobre "Bala na
Agulha", eu fora o único resenhista a descobrir determinado lapso no
seu "thriller". Não se tratava de nada grave. Um cadáver, numa das
tramas secundárias, aparecia degolado e, mais adiante, comentava-se
que o defunto havia sido torturado com agulhas de injeção na
gengiva. Como, todavia, ninguém lhe achara a cabeça, não se entendia
de onde surgira a informação.
Era quase seguramente um caso de falha de continuidade. A cabeça
ausente, quem sabe, reaparecia numa versão anterior à publicada,
mas, ao eliminar esse possível incidente elucidativo, o autor não
acomodara a tal alteração todos os detalhes relevantes.
Coisas similares acontecem em diversos romances, em filmes etc.
Obras complexas que são, cuja elaboração leva tempo, se perde aqui e
ali a concordância de alguma minúcia com outras. Por exemplo, ao
reler, para adicionar-lhe notas de rodapé, as provas da nova edição
de "Os Meninos da Rua Paulo", de Ferenc Molnár (traduzido do húngaro
por Paulo Rónai e publicado agora pela Cosac Naify), percebi que,
não obstante a trama se desenrolar em meados da década de 1880, um
personagem mencionava anacronicamente a guerra russo-japonesa de
1904, contemporânea não da ação, mas da redação do livro.
Mesmo um gênio como Franz Kafka cometia lá seus deslizes. Ele compôs
um breve conto no qual fala do silêncio das sereias. Estas, que na
"Odisséia" atraíam cantando os navegantes rumo aos recifes de sua
ilha, teriam se calado para Ulisses, que nem sequer tomou
conhecimento do fato, pois, além de amarrado ao mastro do navio,
tapara, a fim de resistir à cantoria das moças do mar ("mermaids"),
seus ouvidos com cera. Ora, o que Homero conta é que Ulisses tapara
os ouvidos dos remadores, não os próprios, para que aqueles não
cedessem às sereias. O herói, por seu turno, se deixara imobilizar
com o intuito de ouvi-las sem correr o perigo de se dirigir à fonte
melodiosa de sedução. Se Kafka era alguém capaz de introduzir
propositadamente um erro assim em sua versão da história, é provável
que este não passe mesmo de um acidente. E só uma sessão espírita
com ele permitiria desfazer a dúvida.
Uma vez que não existem obras nem autores perfeitos, apenas
escritores e livros melhores ou piores, tampouco são ocorrências
semelhantes que determinam o modo como os avaliamos -desde, é claro,
que sejam, no conjunto, raras e desimportantes. Julgam-se obras de
ficção por meio de critérios mais intricados, complexos,
abrangentes. Assim, quando, no filme "Central do Brasil", Dora
(Fernanda Montenegro), uma velhinha inescrupulosa a ponto de vender
para "desmanche" um garoto cuja mãe nem sequer esfriara na cova,
muda súbito de idéia e resolve praticamente adotá-lo, conclui-se que
estamos diante de um personagem central inconvincente, ou seja, de
um grave defeito estrutural.
Quem, no entanto, determina quais deficiências comprometem uma obra,
quais são meramente superficiais? O bom senso, sem dúvida, ajuda. Há
narrativas que, malgrado carecerem de uma trama decente ou de
coerência interna, foram tão bem escritas que lê-las dá prazer, e
sobram muitas que, apesar de um linguajar insosso ou até ruim,
conseguem, devido a um enredo interessante, envolver leitores
exigentes. Cada caso é um caso, as combinações são infinitas, e o
que conta, afinal, é o resultado. Não que faltem teorias elaboradas
que acenam com a miragem de uma avaliação inequívoca dos produtos
culturais. Sucede, porém, que elas raramente funcionam e o juízo
estético (jamais definitivo) decorre antes de circunstâncias
empíricas.
Constatá-lo equivale não somente a tratar os construtores de
edifícios conceituais menos como guias infalíveis do que como
conselheiros ocasionais mas também a desiludir os praticantes que
acreditem possuir ou desejem adquirir a chave-mestra de todas as
fechaduras. Não que isso reduza obrigatoriamente qualquer juízo de
valor à mera opinião subjetiva, porque esse se compõe, em doses
cambiantes, de elementos subjetivos, intersubjetivos e objetivos.
Entre os últimos se encontram, digamos, o sentido corriqueiro das
palavras e as regras gramaticais. Ilustram os primeiros pessoas que
não gostam de tal ou qual gênero, deste ou daquele assunto. Quanto
aos intersubjetivos, são os que um grupo de indivíduos acata, em
certo momento e lugar, como consensuais. Cada categoria, que não
está cercada por um muro intransponível, convive com as demais em
extensas zonas cinzentas. A tarefa inicial dos candidatos a críticos
consiste em não as confundirem. Daí que uma das marcas registradas
da crítica incapaz do discernimento que a legitimaria seja a
insistência estridente na objetividade de pontos de vista pessoais,
com o excesso de decibéis ou a profusão de adjetivos substituindo a
argumentação fria e o raciocínio persuasivo.
Eis aqui uma regra útil: quanto mais uma resenha transborde de
certezas, quanto mais um ensaio se valha de expressões "fortes",
"duras", taxativas, tanto melhor é percorrê-los com distanciamento,
cautela e generosas pitadas de sal. Se existe uma virtude ou
deficiência objetiva na obra ou autor analisado, cabe ao crítico
mostrá-las e demonstrá-las. O restante se situa na "twilight zone",
onde a excentricidade pessoal se mistura com/ou procura se converter
em consenso. Caso domine os recursos retóricos, um crítico que se
empenhe está apto a fazer prevalecer suas opiniões. O que não
implica que ele tenha razão e que elas passem pelo mais rigoroso dos
testes: o do tempo.
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