Napoleão Valadares
Tico tico preto
Cinco da manhã. Pedro saía para o
trabalho e, ao abrir a porta, um embrulho no chão. Criança recém
nascida, enrolada nuns panos. Agora essa! As mães deixando as crias
em portas alheias. Na hora de fazer, todo mundo está pronto. Vão
parindo e abandonando os inocentes.
Com aquela
filharada, vinha lhe agora mais uma boca para comer. Do jeito que a
vida andava difícil... Por que não deixavam na porta de um rico? Ali
perto morava Dr. Santana, advogado, cheio da grana, folgado. Dr.
Santana nem precisava se levantar a uma hora daquelas, só saindo
para o escritório mais tarde. Ele, Pedro, é que tinha de pular da
cama com o escuro, correr uma água na cara e se mandar para a obra.
Se chamasse
Madalena, ela ia querer ficar com a criança. Não chamaria. Ia era
levar aquele embrulho e entregar ao juiz. Ele que arranjasse um
jeito de resolver o problema. Mas àquela hora não ia encontrar juiz
nenhum. O juiz, como Dr. Santana, só se levantaria mais tarde.
Pegou aquilo com
cuidado, atravessou a rua, amaciou o passo, puxou o trinco do
portãozinho e colocou na porta de Dr. Santana. Um aperto no coração
e uma vontade de retomar a criança e levá la para casa. Mas teve
medo de ser visto ali na porta alheia. Fazendo o quê? E saiu
apressado, segurando se para não correr.
Na obra, os
pensamentos. Se puseram em sua porta, tinha que tomar conta. Teria
agido certo, recusando se a dar abrigo à criança, colocando a na
porta de outro, negando a caridade?
– Seu Pedro, a
massa tá pronta. O senhor hoje tá pensativo... – despertou-o Manuel,
o servente.
– É... Não.
Pensando é mesmo nisso aqui. Essa obra...
Que obra que
nada! Teve que empurrar a criança para outra porta, negando a
caridade. Tinha ouvido Frei Plequelmo dizer num sermão que o sujeito
pode ser tudo neste mundo, mas se for caridoso, vai para o céu.
Parece que era o caso de Dimas, que pintou o sete e depois ainda
ganhou o reino de Deus.
– Seu Pedro, o
senhor não disse que ia começar o reboco lá pela frente? Tá no mundo
da lua hoje...
– Sim, Manuel, é
pela frente. Distração minha.
Não podia criar
mais ninguém. Bastavam lhe os seus. A vida custando o olho da cara.
Chegava de despesas. Mais uma criança em casa significaria repartir
o que os filhos comiam.
Em casa,
Madalena já tinha a novidade. Veio toda repórter com as canjicas de
fora:
– Pedro, não te
conto a maior: deixaram um nenenzinho essa noite na porta de Dr.
Santana. Uma gracinha! D. Terezinha mais Dr. Santana tão encantados
com ele. Só vendo...
– É homem?
– É. Você já
sabia?
– De quê?
– Do nenem, uai.
– Eu? Eu não.
Por quê?
– Está
perguntando se é homem, como se já soubesse...
– Não. Sabendo
agora.
Dr. Santana,
mais que depressa, deu ao menino o nome de Otávio, em homenagem ao
civil dos Dezoito do Forte. Otávio, crioulinho bem nutrido em casa
de branco, novo encanto de D. Terezinha, que já tinha os filhos
grandes.
Na porta de
outro. Sujeito fraco não pode se meter a caridoso. Fazer caridade
para sacrificar os seus? Tinha agido certo. Dr. Santana era rico.
Ele que criasse.
Acabava de
largar o prato, quando o telefone tocou.
– Alô. É Pedro
que está falando?
– Ele mesmo.
– Pedro, aqui é
a Valquíria.
Gelou se.
Valquíria, um caso antigo e complicado. Depois de umas brigas, ela
sumiu. Fazia meses. Agora vinha telefonar para casa, o que nunca
tinha feito.
– Alô...
– Alô, Pedro.
Valquíria. Estou telefonando para avisar. Olha, não quero criar
problema pra você não. Escuta. Só pra avisar que deixei nosso filho
em sua porta essa noite. Toma conta. Você sabe, eu não posso criar.
E, pra deixar numa porta, achei melhor deixar na sua, que é pai.
Pode ficar tranqüilo, que não vou complicar sua vida não. Estou me
mandando pro Paraná. Fica com Deus e olha ele.
Na porta de
outro. Tinha botado o menino lá, sem saber que era seu filho. Se
soubesse, não botaria. Co¬mo não sabia, estava certo. Estava? A
situação pra lá de feia, com essa carestia dos diabos. Dificuldades
e dificuldades. E uma criança dá despesa que não é brinquedo.
Lembrava se do
tempo de menino, quando caçava ninhos. Por vezes, achava filhote de
pássaro preto em ninho de tico tico. A fêmea preta botando em ninho
alheio. O velho Procópio ensinava: "É, menino, a passa-preta é uma
sem vergonha, e a tica tica é uma besta que cria o pretinho." Sem
vergonheza... A natureza não sabe tudo? Não seria porque a comida
fica mais escassa para o pássaro preto? Pobre criado em casa de rico
pode estar apartado da idéia de fome. Otávio crescia gordo. Um
pássaro preto em ninho de tico tico. Tico-tico preto. Deus o
abençoasse.
|