Natalício Barroso
Rastro de fogo
"O ato de escrever é uma espécie de lepra, uma enfermidade
cancerosa e opaca que deve ser escondida das pessoas que transitam
normalmente à luz do dia"
Kafka
As vinhas da ira
bem que poderiam ter uma outra composição se tivesse ocorrido com
John Steinbeck o mesmo que aconteceu comigo. Havia terminado de dar
um ponto final no meu último romance quando, por descuido, toquei
uma das teclas do computador que, no lugar de salvar, deletava
depois de mandar as mensagens, via e-mail, para outros computadores
– pois foi o que aconteceu. O endereço, felizmente, era de um
sobrinho meu mas, como não o encontrei em casa, deixei para
telefonar depois; quando telefonei, mais tarde, havia saído
novamente. Assim, passei o dia inteiro procurando localizar meu
sobrinho; quando dei com ele, à noite, disse-me que havia enviado
aquele mesmo texto para uma outra pessoa (não sei qual); como
possuía o endereço eletrônico desta pessoa, passou para mim. Não
tinha o telefone dela, asseverou, mas não era difícil localizá-la
pelo e-mail. Assim tentei.
A sensação que
tive quando comecei a mandar e-mails pra um conhecido e outro em
busca de Rastro de fogo (como se chamava meu romance) era a de que
ele havia se perdido. Tinha entrado na boca de um monstro que, mesmo
que atenda pelo nome de Internet, nem por isso é menos voraz do que
um buraco negro no interior do qual – se alguém conseguisse vê-lo
por dentro – havia de se deparar com coisas extraordinárias: textos
antiquíssimos, da época de Assurbanipal, ou outros, mais recentes,
mas, nem por isso, menos valiosos.
A noite, quando
chegou, encontrou-me debruçado sobre o computador. A luz da vela,
que havia posto no canto esquerdo da tela para iluminar meus
rascunhos, tal como os monges faziam no tempo dos velhos castelos
medievais, apenas bruxuleava enquanto eu escrevia.
Moro sozinho.
Minha casa tal como um velho solar abandonado à beira de uma
estrada, mais parece um casarão antigo – destes mal-assombrados – do
que uma residência; no entanto, é aí mesmo que moro. A intenção,
quando resolvi comprar um prédio antigo e mal assombrado num lugar
ermo como este foi, justamente, a de não ser importunado por
ninguém. Mas sou. As pessoas passam defronte da mansão onde moro e,
como a acham muito estranha, resolvem parar o carro para vê-la por
dentro. Fosse eu um assassino – ou algo parecido – já teria morto
várias delas mas, como não sou, deixo-as pensar que a velha herdade
de dois andares com um brasão na fachada está vazia realmente.
Assim, seguem adiante. Eu fico por trás das cortinas olhando para
elas; quando vão embora respiro fundo. A casa é muito pesada; fosse
um trailler dava um jeito de levá-la para longe da estrada; como não
é, o jeito é ir me acostumando com ela.
Kafka, autor de
livros importantes como O processo e A metamorfose, escreveu, certa
vez, que "o ato de escrever é uma espécie de lepra, uma enfermidade
cancerosa e opaca e opaca que deve ser escondida das pessoas que
transitam normalmente à luz do dia" – e tem razão. Afinal, qual o
profissional que, para trabalhar, precisa se isolar dos outros?
A comparação
mais acertada sobre a vida e a literatura que considero, no entanto,
não é nem a de Kafka; a comparação mais acertada que acho é a que
fez um autor anônimo quando comparou os poetas e romancistas de seu
tempo com monstros tal como o Dr. Jekyll de Louis Stevenson e
Charles Ward de Howard Philip Lovecraft. A comparação é evidente. A
literatura, assim como uma droga qualquer servida por uma feiticeira
em uma taça de ouro, transforma o indivíduo num homem solitário;
capaz de praticar qualquer desatino.
Alexandre Dumas,
se não tivesse sido escritor, talvez tivesse se tornado um homicida.
Basta dizer que, quando escrevia, tinha o hábito de pendurar vários
bonecos diante dele; quando seus personagens começavam a brigar o
autor de Os três mosqueteiros também se punha a atirar ou a
traspassar os seus bonecos com uma espada. Isso, para mim pelo
menos, é uma prova mais do que evidente de que Dumas era, no fundo,
um assassino.
A maior tolice
da humanidade, portanto, é imaginar que a poesia – tanto quanto a
música ou a pintura – é inútil. Tenho para mim, que não sou genial,
que a poesia é muito mais importante aos homens do que todo o
petróleo que se encontra atualmente sob a terra. Assim, a única
comparação possível que se pode fazer entre a produção literária e o
mundo circundante, é com o amor – pois só o amor, a exemplo da
inspiração, é capaz de mudar, completamente, o comportamento das
pessoas.
Mas não
enveredemos por este caminho.
Voltemos à minha
preocupação inicial: a perda de meu livro.
Quantos
escritores perderam seus livros no passado? Muitos. Camões foi um
deles. Nenhum, contudo, perdeu o seu original da maneira como perdi
o meu. Camões, se não me engano, perdeu os seus poemas ("livro de
muita erudição, doutrina e filosofia", segundo um de seus
contemporâneos, Diogo do Couto) numa viagem que fez de Goa para
Moçambique. Eu perdi o meu sem sair de casa e é sem sair de casa que
pretendo achá-lo novamente. Afinal, fazer como os escritores antigos
que batiam de porta em porta em busca de seus originais, é
impossível – pois não há original algum. Há uma série de palavras
iluminadas que, da mesma forma como surgiram no mundo, podem
desaparecer.
Gostaria até de saber o que acontece com os textos quando a pessoa
que trabalha neles digita a tecla destinada a apagar todos eles.
Será que desaparecem completamente ou será que viram uma pequena
centelha dentro do computador capaz de incendiar uma cidade inteira
se, por acaso, forem tocados outra vez? É difícil dizer. A minha
situação, em todo caso, não é nada fácil. Camões, quando perdeu seu
livro em Moçambique tinha muito mais chances de encontrá-lo do que
eu – apesar de não tê-lo achado. Um dia o encontram – quem sabe? A
minha obra-prima, infelizmente, jamais. Ela pode até está sendo
acessada, neste exato momento, por um português ou um gaulês. Tudo
isso é possível. Como ela não existe, porém (pelo menos na mente
destas pessoas) ninguém vai imaginar que se perdeu ou que alguém a
procura, desesperadamente, na Internet.
Outro dia recebi
uma mensagem em árabe no meu site. Como não sei árabe, resolvi
apagar a mensagem; hoje, se tivesse recebido esta mesma mensagem não
teria feito isso; iria pensar que alguém, depois de atirar o tapete
no chão e rezar para Alá com o rosto voltado para Meca, tinha lido o
meu apelo e, tendo encontrado o meu livro, mandava um recado para
mim.
Como ainda não
havia perdido nada na Internet, porém, dei pouca atenção àqueles
garranchos todos. Pobre de mim!, comparo-me, na situação em que me
encontro, a um pirata que, como o Capitão Ahab no Perquot, procura
por uma baleia que, se não é Moby Dick, é, pelo menos, algo tão
difícil de encontrar quanto ela. E aqui estou, navegando noite e dia
neste mar que, se não tem céu nem estrelas tem, pelo menos, as ondas
cibernéticas de um veículo de comunicação.
A aldeia onde
nasci é pequena e fica a poucos quilômetros daqui. De vez em quando
aparece gente de lá. "Seu pai", dizem elas, "mandou isso e aquilo
para você". Eu recebo. Afinal, como todo escritor pobre que tem,
como único orgulho, a sua literatura, não posso me dar ao luxo de
dispensar seja lá o que for. Assim, recebo meus antigos vizinhos,
mas sinto que não gostam de mim.
Houve um tempo,
quando morava na aldeia, que me tratavam até com certa deferência;
neste tempo, contudo, eu era uma outra pessoa, ainda não tinha
descoberto a literatura; hoje, depois que li Tolstoi, Dostoievski e
Proust, não sou mais o mesmo. É natural, portanto, que meus antigos
vizinhos, quando me vêem, se sintam mal. A casa onde moro, por outro
lado, não ajuda muito; como costuma ficar fechada noite e dia e a
única pessoa que se move, dentro dela, sou eu, não há como negar o
pavor que isso provoca nos outros.
Mas isso pouco
importa. Melhor do que estas observações fortuitas e pouco
esclarecedoras, é que tenho tido notícias de Rastro de fogo. Foi
visto no Himalaia, ao pé de um rio que, segundo dizem, percorre
aquela região durante o verão; também foi visto na Índia ou em
regiões mais distantes como a China; teve um amigo meu que, como
morou por lá, disse haver acessado os sites brasileiros e viu o meu
livro passar por ele tal como aquele rio que desce o Himalaia
durante o verão.
A história mais
incrível que ouvi a respeito de meu romance, porém, não foi a de que
passou por choupanas ou por palácios requintados; a história mais
incrível foi a de uma senhora que, se dizendo muito emocionada
depois de folheá-lo (parece que o imprimiu), me falou de vários
personagens que, infelizmente, não eram os meus. assim, fica muito
difícil dar, na Internet, com o que existe apenas em potencial mas
não concretamente; por outro lado é interessante dar com estas
pessoas que, antes mesmo que você se apresente, parece que já sabem
tudo sobre você: quando nasceu, onde e quando (chegam a este tipo de
perversão) vai morrer. No início até estranhava isso; com o tempo,
porém, passei a dar pouca importância a este tipo de vidente. Hoje,
quando ligo o computador, a única coisa que me interessa é o meu
romance. Onde se encontra? Em que tipo de rede está sendo acessado
neste momento? Não sei. Alguém, no entanto, talvez o esteja lendo
justamente agora quando pergunto por ele e não consigo localizá-lo.
A vida é
estranha. As pessoas, por mais que pareçam próximas, por causa da
Internet, continuam distantes; esta idéia de que o computador foi
capaz de reduzir o mundo a uma simples aldeia de pescadores, não
passa de especulação; pois a única coisa que se vê, no mundo, depois
do computador, não é a sabedoria mas a ignorância.
Rafael, meu
amigo, apareceu no solar onde moro e me trouxe notícias do mundo
real. A aldeia onde nasci e onde meus pais ainda residem, foi
praticamente varrida por um vento muito forte. As pessoas ficaram
tão impressionadas com aquilo – a força do vento – que tiveram medo;
algumas delas, por sinal, foram obrigadas a repor as telhas que o
vento, depois de sua passagem, havia levado consigo; a casa de meus
pais, felizmente, não sofreu nenhum dano – exceto, contou-me Rafael
sorrindo, uma árvore enorme, do tamanho de uma torre, que
praticamente desabou; não fosse o muro que cerca a casa, ela teria
caído mas, como o muro é alto e resistente, manteve-a praticamente
suspensa no ar por um bom tempo.
Todas essas
histórias de um mundo que eu praticamente havia esquecido, me
impressionava bastante. Rafael, enquanto isso, continuava falando:
meus pais, depois que o vento passou e levou as folhas verdes (e
ouras nem tão verdes), resolveram dilapidar a árvore. E assim foi
feito. A frente da casa onde moram, portanto, não tem mais aquela
velha carnaubeira que, como uma palmeira no deserto, anunciava para
as pessoas que o oásis começava ali; a carnaubeira tombou, sob o
peso das intempéries; felizmente, como não tombou para dentro mas
para fora do terreno onde a casa se encontra, não feriu ninguém.
Rafael, quando
me dava essas notícias, sorria. Havia alguma coisa de ingênuo em
Rafael, é verdade. Ele via o mundo como sempre foi; era incapaz de
reter algo, na memória, que não tivesse, primeiro, passado por um de
seus sentidos. Agia, no tempo dos computadores e dos satélites
artificiais, com a mesma simplicidade com que os irmãos de José,
segundo o Velho Testamento, agiam quando partiam em grupo para o
Egito. A maneira de Rafael contar uma história, portanto (ou dar uma
notícia) não diferia muito da maneira como os velhos escribas do
tempo de Israel relatavam suas profecias; caso tivesse paciência
para ouvir Rafael por mais algum tempo, era bem possível que, assim
como os aviões que cruzam os céus, ele me falasse de tropas de
jumentos que, à semelhança dos camelos que atravessam o Saara, na
África, cruzam os sertões com as cangalhas carregadas de frutas ou
legumes; como o meu tempo é todo ele dedicado à leitura ou às minhas
pesquisas infrutíferas, é verdade, na Internet, despedi-me dele e vi
quando, no lugar de entrar num carro, como seria de esperar no
século XXI, montou num cavalo – tão bem selado quanto o de qualquer
outro do século XIX – e saiu por aí, trotando.
Com a partida de
Rafael voltei a meus afazeres costumeiros. A tela do computador,
como sempre, mostrava um quadro de Rembrandt que, com o tempo, se
transformava num outro, de Rubens, e assim sucessivamente até
retornar ao quadro de Rembrandt outra vez; depois que apertei um
botão no teclado, porém, tudo isso desapareceu; surgiu, no lugar da
pintura voluptuosa de Rembrandt, de Rubens ou de Ticiano, a página
branca da Internet sobre a qual me pus a trabalhar. Meu livro, como
sempre, era uma incógnita, mas não custava nada dar um novo passeio
por aí e ver se o localizava em algum lugar.
Havia um recado
para mim. A língua na qual havia sido escrito me era inteiramente
desconhecida; em todo caso, como estava determinado a não deixar
passar nenhuma informação (mesmo que não fosse sobre meu livro)
resolvi imprimi-la e mandá-la para alguém em algum lugar do mundo,
que pudesse identificá-la. Assim, imprimi o seguinte:
Os caracteres,
como se pode observar, não são ocidentais, mas asiáticos; as letras,
imitando ideogramas chineses ou japoneses, até parecem esculpidas e
não apenas desenhadas sobre a superfície branca do papel. A
decifração delas, contudo, e não a sua aparência, era o que mais me
chamava a atenção. O que será que significavam? De onde vinham e
quem, dentre as milhares de pessoas que possuem computador no mundo,
pode ter pensado em mandá-las para mim? Terão elas alguma relação
com meu trabalho literário perdido na Internet ou não? A única
maneira de saber isso, naturalmente, era lendo a mensagem – e foi o
que fiz. Mandei-a para alguns japoneses que conhecia no Japão,
exatamente, e eles me enviaram a resposta. Aquelas garatujas não
pertenciam à terra dos samurais nem à China mas a Coréia; um deles,
como lia coreano perfeitamente, me mandou dizer o seguinte: meu
livro tinha sido lido por uma grande figura da Coréia do Norte; ela,
a figura, ficou interessada na história mas, como estava incompleta,
gostaria de saber como poderia obter os outros capítulos.
A leitura de meu
livro, como se vê, tinha sido feita em coreano. Isso significa que
estava sendo traduzido para outras línguas. O esquisito, nisso tudo,
era que, apesar de traduzido parece que meu nome e meu e-mail
continuavam na capa ou na folha de rosto do romance.
Por outro lado
nada me tirava da cabeça que, como meu livro estava sendo impresso e
traduzido por aí, não acharia nem um pouco estranho se ele
aparecesse publicado com o nome de outra pessoa. Como não estava
registrado com meu nome, era natural que não tivesse como provar sua
autoria – o que muito me preocupava, evidentemente.
A tela do
computador, assim como um buraco negro no interior do qual se pode
ver de tudo, funcionava, para mim, como uma janela enorme depois da
qual eu tanto podia ver quanto ouvir tudo aquilo que passava na
minha frente.
A alegria que
senti quando soube que aquelas figuras geométricas que vinham da
Coréia tinham algo a ver com meu livro, me deixaram quase sem
fôlego. Como manter contato com tal criatura? Como perguntar a ela
em coreano ou em inglês que eu não tinha mais os capítulos que
faltavam nem possuía aqueles que ela – este seguidor de Buda mal
disfarçado em militar – havia lido?
Tudo isso
passava por minha cabeça com a mesma velocidade com que os meteoros
atravessam a atmosfera terrestre, se iluminam por um instante e
desaparecem para sempre em seguida.
Havia, porém,
uma alternativa. Aqueles mesmos japoneses com os quais eu me
comunicava em inglês e que sabiam do meu romance, podiam me ajudar.
E assim aconteceu. A informação de que eu gostaria de receber os
poucos capítulos que meu leitor coreano possuía, foi enviada para
ele; estes poucos capítulos, contudo, nunca chegaram. A impressão
que eu tenho é a de que o coreano, desconfiando de que talvez eu não
fosse o autor daquela obra-prima, resolveu não me importunar mais
ou, quando muito, não se preocupar mais comigo. Assim, a segunda vez
em que tive a informação de meu livro (a primeira foi quando aquela
velhinha me escreveu dizendo que o havia lido mas, quando citou os
personagens percebi que não se tratava de meu romance mas de um
outro) foi uma nova decepção.
As regiões
montanhosas da Coréia que ficam entre a China e o Japão, parece que
guardam, para sempre, pedaços deste meu trabalho que, pelo visto, se
perdeu para sempre.
Santa
ignorância!, a Internet, já disse alguém, se parece muito com os
redemoinhos que se agitam nas proximidades da Noruega; ali, quando
eles aparecem, as pessoas têm o hábito de contemplá-los de longe mas
nunca de se aproximar. A tolice que cometi, na minha busca
desesperada de ser lido, foi esta: ter apertado um botão, no
computador, que não só joga os trabalhos escritos na Internet;
também os desmancha completamente no monitor onde foram gerados;
assim acho que agi como um náufrago que, tendo encontrado uma ilha e
não sabendo como se comunicar com o continente, se serve da única
alternativa que dispõe no momento: esvazia as velhas garrafas de rum
para colocar, dentro delas, cartas e mapas onde supostamente se
encontra no oceano; feito isso espera o momento em que um navio ou
um homem de bom coração que tenha lido suas mensagens venha
procurá-lo e salvá-lo da solidão.
A casa onde
moro, como já disse antes, é um tanto quanto misteriosa. De vez em
quando as portas e as janelas batem, sozinhas. Quando isso acontece
tenho a impressão de que não estou realmente sozinho neste velho
bangalô. Mas deve ser só impressão. Mesmo assim – para tirar todas
as dúvidas – desço as escadas de madeira que dão no térreo e saio
por aí abrindo e fechando portas e janelas; quando estou muito
disposto vou mais longe. Levanto um velho alçapão, em tudo parecido
com aqueles que se vê em filmes de terror, e desço uma escada que,
se não é de madeira nem por isso deixa de ser tão tétrica quanto
aquela: trata-se de uma escada de ferro – bastante enferrujada, por
sinal – que vai dar numa antiga adega e num poço cheio de sapos e
casas de aranha. Ali abro os baús que se conservam amontoados no
chão para ver se encontro algum vampiro dentro deles mas não acho
nada nem ninguém.
Não há nada mais
absurdo do que procurar fantasmas onde eles talvez não existam – mas
como dizem que moro com alguns deles (há quem diga que sou um deles)
tomo as minhas precauções pois a fantasia, mais do que a realidade,
é responsável por coisas absurdas. Gontcharov, autor de Oblomov,
passou a vida toda acusando Turgenev de haver roubado parte de suas
novelas. Chegou ao cúmulo de se trancar com algumas delas num
quarto.
Tinha medo de
Turgenev – considerado um pilantra por ele – aparecer por acaso em
sua residência e levar as suas últimas produções. Assim, quando
penso que há alguém em casa ou que algum fantasma – mal saído das
páginas de Oscar Wilde – se infiltrou nos compartimentos lúgubres do
velho prédio onde percorro as salas e corredores em silêncio, não
penso duas vezes, corro atrás dele; quando o encontro (como se isso
fosse possível) (mas há sempre indícios deles em lugares tristes e
remotos como este onde me refugio) dou-lhe as boas vindas; quando
não me deparo com eles fecho as portas e janelas para que não batam
mais e volto para o computador.
A sala onde
trabalho também é tão lúgubre quanto o resto da casa, mas, como tem
duas janelas – uma que dá para o mar, muito longe, e outra que dá
para a aldeia onde nasci – é até arejada. A ventania, quando entra
na sala, no entanto (e faz isso com certa freqüência), penetra nela
com tanta violência que não deixa nada – nem mesmo as cortinas (e
olhe que são pesadas) – imóveis. A luz do sol, por sua vez, me deixa
ver coisas incríveis. Marcas de antigos quadros que foram pendurados
durante muito tempo nas paredes; livros, quase do tamanho de códices
medievais retirados das estantes em volta aparentemente com
violência e pesados bustos de bronze que apenas sugerem a sua
presença com o recorte ainda visível por cima dos plintos mal
conservados. Mesmo assim me sinto bem aqui. É como se o corvo de
Allan Poe estivesse aqui, entre essas quatro paredes, batendo as
asas e esperando o momento certo para, como fez com o poeta
norte-americano certa vez, me dizer aquilo que mais temo ouvir neste
mundo: "never, never more..."
Foram poucas as
pessoas que leram meu romance, realmente. Com exceção de meu
sobrinho, para quem mandei uma cópia sem saber, acho que só o amigo
dele para quem havia enviado o e-mail, leu o meu livro; esta
criatura que mora na Coréia e que teima em ignorar meu apelo para
que me mande pelo menos algumas páginas de meu trabalho, foi outro
leitor. Assim, num mundo onde habitam quase cinco bilhões de
pessoas, talvez apenas quatro ou cinco tiveram a oportunidade – mais
do que o prazer, penso eu – de ler meu último romance.
Todos que o
leram, felizmente, dizem que gostaram muito. Apenas uma delas –
aquela velhinha que, no final, vi que não tinha lido o meu mas outro
original – fez uma ressalva: "seu livro é muito bom, disse-me ela,
mas há um porém..." Foi a partir deste porém, por sinal, que vi que
não se tratava do meu mas de outro texto.
Dizem por aí que
quando alguém escreve um livro tem que esperar pelo menos alguns
anos para publicá-lo; isso, felizmente, no tempo de Horácio que,
quando editou aquele opúsculo a que deu o nome de Poética, escreveu,
textualmente, que todo poeta que se preza terá que aguardar pelo
menos nove anos para, finalmente, dar à luz seus rabiscos. E quem
sou eu para me contrapor a Horácio?
O mundo no qual
vivemos, no entanto, não permite mais tamanha disparidade. Tudo no
mundo hoje (devido à televisão e ao computador, naturalmente) tem
que ser imediato. Talvez por isso não se redijam mais livros como
antigamente. Virgílio, quando morreu, ainda não havia terminado a
Eneida e Dante, que passou boa parte de sua vida no exílio, só
publicou a Comédia (aclamada como "divina" posteriormente) após dez
anos de trabalho. Mas será que a literatura terá que ser sempre
assim: cheia de exigências? Stendhal, autor de livros famosos como
Lucien e Crônicas italianas, que o diga; ele que publicou O vermelho
e o negro após muitos anos de trabalho (mas não tanto quanto
pretende Horácio) teve que enfrentar um dilema gravíssimo: a partir
de quando O vermelho e o negro seria entendido? Stendhal, ele mesmo,
respondeu: "daqui há trezentos anos". E foi o que aconteceu.
Pobre Stendhal,
fosse médico, o que teria ocorrido? A literatura, felizmente (ou
será infelizmente?), tem esta virtude: o autor pode até ser
derrotado; a sua produção literária, contudo, pode se sair
vitoriosa.
Hoje, no
entanto, não se pensa mais assim. A fúria com que os meios de
comunicação procuram desvendar o futuro é tão grande que, por mais
que se queira exaltar aqueles que se contrapõem a isso, não se
consegue.
A literatura,
por outro lado, não foge à regra: a poesia, que era escrita com a
maior parcimônia (porque era feita para as gerações futuras e não as
contemporâneas) sofreu um abalo tão grande com os novos meios de
comunicação que deixou de ser poesia para se transformar em letra de
música: sendo assim fica difícil imitar Camões ou Fernando Pessoa.
Camões porque, como não tinha condições – nem físicas nem
financeiras – para publicar Os lusíadas, passou a vida inteira
esperando uma oportunidade que só surgiu à beira da morte; Fernando
Pessoa, que não estava nem um pouco interessado em se exibir para o
mundo como poeta apenas deixou escrito, no baú, o seguinte: "Mesmo
que os meus versos nunca sejam impressos,/ eles lá terão a sua
beleza, se forem belos/ (...)/ porque as raízes podem estar por
debaixo da terra/ mas as flores florescem ao ar livre e à vist" – e
assim aconteceu. Seus poemas, como eram belos, vieram à luz e, com
eles, a vida boêmia e obscura deste cidadão pacato que ganhava seu
sustento traduzindo cartas comerciais num pequeno escritório da
Baixa, em Lisboa.
A necessidade de
se exibir hoje em dia é tão grande, no entanto, que tanto a poesia
quanto as outras artes não têm mais importância alguma: ninguém
publica livros ou promove vernissage para mostrar seus trabalhos: o
objetivo é outro. A imprensa está aí. A televisão, como atinge
milhares de pessoas ao mesmo tempo, é capaz de dar notoriedade a
qualquer um, independentemente da qualidade de sua produção. Por
isso as "instalações", que não exigem nada do artista, a não ser
"boas relações", pululam por aí.
Mas aqui estou
eu me metendo onde não devo. Melhor do que falar mal da criatividade
alheia é voltar a falar de meu livro que, como continua viajando
pela Internet, talvez já tenha sido publicado na Indonésia com o
nome de outra pessoa enquanto o autor, que sou eu, fica por aqui
remoendo tamanha desdita.
Miguel de
Cervantes, para escrever Dom Quixote, imagina que o autor deste
livro é um árabe chamado Cide Hamete Benengeli cujos rascunhos
encontrou num mercado, comprou e pagou a um outro árabe para o
traduzir. O mesmo acontece comigo. O autor de Rastro de fogo (título
do meu livro) sou eu; o tradutor, no entanto, seja ele quem for, é
quem passou a deter os Direitos Autorais a partir do momento em que
assumiu a sua paternidade – e talvez seja assim mesmo. Marco Polo,
que nunca escreveu uma linha sequer sobre a sua vida, também é
considerado autor daquele livro que desde a Idade Média circula pelo
mundo e que tem a China como cenário principal; o verdadeiro autor
do livro de Marco Polo, contudo, não foi ele mas um outro veneziano
chamado Rusticiano ou Rustigielo de Pisa que, como foi preso pelos
genoveses numa torre em 1298 ali se encontrou com o filho de Nicolo
Polo e passou a ouvi-lo: ao sair da prisão, Rusticiano, que não era
tolo, escreveu e publicou o livro que, até hoje, leva o nome de
Marco Polo e não de seu verdadeiro autor.
Meu livro,
certamente, não fará o mesmo sucesso de Dom Quixote nem, muito
menos, de Marco Polo mas só o fato de ser meu e não ser assinado por
mim me machuca tanto quanto aquela segunda parte do Cavaleiro da
Triste Figura, escrita, supostamente, por Lope de Veja e que tanto
mal causou a D. Miguel – a ponto deste investir furiosamente contra
o falsário: "isso não é carga para os seus ombros", vocifera o
pacato Dom Miguel contra Lope de Veja, "nem assunto para seu
resfriado engenho".
Agora, porém, é
tarde. Não dá mais para recuperar o que foi perdido. Miguel de
Cervantes conseguiu: matou o ingenioso hidalgo no final de sua
segunda saída pelas terras da Mancha; eu, como não disponho nem da
primeira nem da última página de minha produção literária, só possuo
um consolo: a casa onde moro e que, se fosse vista por um escritor
genial – Edgar Allan Poe, por exemplo – é bem provável que tal
criatura, num rasgo de imaginação sem limites, comparasse a minha
situação com a de "um vírus perdido no interior de um arquivo morto"
– e estaria certo. Difícil seria dar com estas palavras num dos
textos de Poe.
Mesmo assim fica
a imagem: a casa onde moro é, de certa forma, um arquivo; eu, por
outro lado, não passo de um vírus que, fuçando os computadores da
Europa e da Ásia, procuro um livro que, como a luva de um astronauta
antigo que se perdeu no espaço sideral, também se perdeu num espaço
que, se não é tão incomensurável quanto o Cosmo, não deixa de ser
mais ou menos equivalente a ele: a Internet.
Assim, para que
minhas lamúrias não se prolonguem por muito tempo e este "desabafo"
não se transforme num novo romance, reproduzo, aqui (à guisa de
informação) o refrão que todo dia envio pela Internet: mandem meu
livro de volta, ordeno mais do que suplico; preciso muito dele,
choramingo em seguida – tanto quanto Merlyn quando foi aprisionado
por Morgana e ainda hoje se encontra lá mais indefeso do que cativo
em sua nuvem.
Rastro de fogo, como disse, é o nome do romance que escrevi e que
sumiu. A história, banal, tem, pelo menos, uma virtude: boa parte
dela se passa no espaço sideral e não aqui, na Terra. As personagens
principais, portanto, são um asteróide e um arquiteto. A função do
asteróide é a de atingir o arquiteto, no futuro; a deste é servir
como prova de que o futuro da humanidade talvez, como diz lá o
ditado árabe, já esteja escrito nas estrelas.
A grande
surpresa que tive estes dias, no entanto, foi assustadora: alguém,
não sei quem, me mandou trechos deste bendito romance pela Internet.
Abri o computador um dia e, quando fui ver, lá estavam eles – os
trechos. A alegria, no início, foi imensa; com o tempo, porém, vi
que não tinha muito motivo para comemorar. Havia tantas mudanças na
composição do romance que não era mais o mesmo que redigi. Era
outro.
As pessoas quando mudam ou fazem uma viagem muito longa, são
altamente admiradas por isso – principalmente quando aprendem
línguas novas ou falam de lugares por onde passaram e ninguém nunca
imaginou que tal coisa fosse possível um dia.
A situação do livro é diferente: ninguém quer saber de ler um
romance que, tendo sido escrito por uma pessoa, passou por tantas
transformações ao longo de sua trajetória, que nenhum leitor saberia
identificar o autor nem a língua em que foi redigido. De repente
passa do português para o inglês, deste para o alemão e assim por
diante como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Assim, para
quem lê Homero é preferível pensar que se trata de um único autor do
que de vários que, se revezando ao longo do tempo, nos deram estas
duas obras-primas que são a Ilíada e a Odisséia.
A mesma coisa –
ou quase – ocorreu com meu livro na Internet. A diferença – se houve
alguma – foi apenas de lugar (e tempo) mas não de comportamento. As
pessoas que se debruçaram sobre a Ilíada e a Odisséia para
modificá-los ou para acrescentar alguma nova aventura, todas elas
eram gregas; a língua que usaram, portanto, foi a grega; as pessoas
que se aproveitaram do meu romance para criar novos personagens ou
dar vida às suas idéias macabras nem todas elas eram portuguesas
-–ou de língua portuguesa – pertenciam a vários países e a várias
etnias.
As idéias do Dr.
Frankestein quando se pôs a juntar restos de cadáveres, eram a de
criar o homem do futuro; o mesmo homem que Nietzsche havia
profetizado em seus livros e que o Dr. Mengelli, médico nazista,
tentou reviver durante a II Guerra Mundial. A criatura que surgiu
destas duas experiências, contudo, não foi nem um super-homem, como
queria Nietzsche, nem um ser altamente civilizado como o Dr.
Mingelli sonhou no futuro mas, como afirma a autora, um monstro
abominável.
Rastro de fogo, como passou pelo mesmo processo de formação adotado
pelo professor Frankenstein no romance de Mary Shelley (Dr. Mengelli
não existe neste universo), também não foge à regra. Aquelas
criaturas que Santo Agostinho pensava que existiam na América antes
desta ser descoberta, perdem é feio para a aparência miserável de
meu romance. Caso Rastro de fogo tivesse tido a sorte de ser
modificado por aqueles mesmos escritores que substituíram Homero no
passado, a sua redação teria melhorado consideravelmente, mas como
quem interferiu em sua narrativa não tinha a mesma genialidade dos
colaboradores de Homero, o resultado foi o pior possível: Rastro de
fogo, hoje, é mais digno de um estudo de teratologia do que de
estética.
A história, no
entanto, não muda. Continua a mesma. Trata da viagem interplanetária
de um meteoro.
A viagem, no meu
livro, pelo menos, começa em Saturno, o planeta; dali o objeto
perdido no espaço sideral se dirige para a Terra. Neste exato
momento nasce, na Terra, uma criança que se chama Eduardo. A
trajetória de Eduardo, desde o instante em que nasce até aquele em
que se torna adulto, está intimamente relacionada com a do meteoro
pois este – mesmo sem Eduardo saber – está destinado a matar o filho
de Dona Creuza. Assim, todos os passos que Eduardo dá, na Terra, são
imediatamente relacionados com os movimentos que o meteoro executa
no espaço.
No meu texto
Eduardo não vive no melhor dos mundos; também não vive no pior – tem
lá as suas paixões e as suas ambições: arquiteto, pai de família,
sai por aí desenhando plantas de casas e acompanhando a construção
de algumas delas; quando o engenheiro o interpela por algum motivo,
Eduardo não se deixa convencer: exige que a casa em construção seja
levantada de acordo com a planta que elaborou e não de acordo com as
ponderações apresentadas pela engenharia civil.
A vida de
Eduardo, neste caso, é semelhante a de qualquer outro que, como ele,
exerce uma profissão dita liberal – pois este homem feliz (pelo
menos até certo ponto) – está condenado a ter um fim trágico: o
fragmento espacial que surgiu no Universo antes mesmo de a Terra ser
o que é – o habitat não só da humanidade mas de uma imensa
quantidade de seres vivos – parece que o persegue desde que o mundo
foi criado.
Aí está o resumo
– mal pincelado, é verdade – de meu romance. A intenção, quando
escrevi este livro, foi a de chamar a atenção das pessoas para o
fato de que o futuro – se existe – já está no passado: a nossa
morte, neste caso, já está resolvida há muito tempo assim como as
nossas aspirações, tão difíceis de serem atingidas, talvez já tenham
sido alcançadas de alguma maneira.
A história que
me chegou pelo computador, como disse antes – apesar de todas as
interferências apontadas – não é muito diferente desta. Eduardo que,
no meu romance, se chama José Eduardo Horta, no livro que me foi
enviado, tem outro nome: Eduardo, apenas; a mulher dele, que se
chamava Ane, passou a se chamar Luiziane e a mãe – uma personagem
importante na novela – também não se chama Creuza mas Lucíola.
A mudança do
nome dos personagens principais, penso eu, tem um objetivo muito
claro: confundir o leitor ao mesmo tempo em que procura dar maior
credibilidade à nova narrativa.
A história principal – aquela que trata da morte de Eduardo por um
asteróide – esta é contada na íntegra – com algumas alterações,
logicamente: a morte de Eduardo, no romance que escrevi, não se dá
num espaço aberto, mas fechado; a morta de Eduardo no livro em
questão ocorre numa praça e não numa sala. A diferença de lugar,
como se pode notar, também é uma outra estratégia do Lope de Veja
moderno para, como no caso do nome dos personagens do meu romance,
confundir tanto o leitor quanto o autor verdadeiro.
Agora, porém,
não há mais alternativa. Rastro de fogo, o livro que escrevi, não me
pertence mais: pertence àqueles que o copiaram e o publicaram na
Internet mas, como a Internet tem as suas peculiaridades – nem tudo
o que está nela pertence a quem o introduziu mas a quem o descobriu
– talvez tenha alguma outra oportunidade: provar que Rastro de fogo
me pertence e não a um aventureiro que, tendo tomado conhecimento
dele por intermédio da rede mundial de computadores dele se
assenhoreou e o publicou como sendo o dono de um livro que nem
sequer copiou direito.
A dificuldade
que vou ter, claro, vai ser a de provar isso perante a justiça. Caso
houvesse uma legislação específica de Direitos Autorais para quem
trabalha na Internet, seria mais fácil; mas, como não há, o jeito
vai ser apelar para a sorte.
Rafael esteve
comigo novamente na casa onde moro e, como sempre, trouxe novas
notícias da vila. Meu pai, segundo ele, está muito preocupado
comigo; afinal, andam dizendo por aí que não sou mais o mesmo.
Aquela criança que jogava bola em torno da aldeia e que todo mundo
conhecia como sendo o filho do seu Nô, não existe mais.
As idéias de
Rafael, claro, se confundem com as da aldeia mas como o mensageiro
de meu pai está mais próximo de mim e de minha família do que os
demais, parece que não dá muita atenção ao que escuta. Por isso
Rafael, quando fala, me faz rir por dentro.
O fato de meu
pai está preocupado comigo, no entanto, me deixa apreensivo. Ele
sabe muito bem o que levou a me isolar completamente do mundo no
qual vivi até então. Kafka, como citei antes, foi muito feliz quando
disse que todo escritor é como um vampiro que não deve ser sequer
tocado pela luz do sol quanto mais pelas pessoas que o rodeiam.
A conversa que
tive com Rafael, portanto, foi bastante proveitosa. Como Rafael lida
com o mundo de uma maneira bastante diferente da minha, acho que
esta disparidade facilita – e muito – a nossa conversação mas não é
o suficiente para me tirar deste mundo de sonho e fantasia no qual
me habituei e no qual outros escritores – Sófocles e Montaigne, por
exemplo – também mergulharam completamente.
Após esta longo
digressão que começou com as dificuldades que a poesia, o conto ou o
romance trazem para aqueles que se dedicam à sua produção e terminou
agora com o retorno – feito aos pedaços, é verdade – de meu último
romance, voltamos a falar da minha casa e das histórias macabras que
a cercam – e por quê? Porque a minha vida, aqui dentro, não difere
muito da dos ascetas que, pretendendo se afastar do mundo – seja lá
porque for – escolhem um lugar ermo e distante como este para morar;
quando estes ascetas são monges ou pessoas dadas à religião, o lugar
onde moram (ou o pequeno oratório que constroem perto do tugúrio
onde dormem) se transforma em igreja ou em capela que, com o tempo,
vira catedral; a minha situação, logicamente, não é nem um pouco
semelhante à de tais criaturas até porque, como não tenho a menor
pretensão de ser pioneiro em nada, é natural que esta casa velha e
mal assombrada venha a ser, no futuro, o que sempre foi: um antro
medonho de morcegos e fantasmas.
Por falar em
fantasma, aqui vai um segredo aterrador: tenho visto coisas
surpreendentes estes últimos dias; desde que meu livro – ou pedaços
dele – reapareceu no meu site, aliás, que tenho tido visões
estranhíssimas. A primeira delas foi a de que o mar, pacato a
princípio, levantava,, como se fossem páginas mal arrancadas de um
temporal, ondas e mais ondas de poesia em torno de mim; a segunda –
tão esquisita quanto esta – foi a de uma mulher que, como carregava
um ramo de oliveira numa das mãos, confundi com uma Suplicante de
Minerva – e assim era – mas, no momento de depositar os ramos sob os
pés da deusa adorada pelos tebanos no tempo de Édipo, a Suplicante
mudava de direção e punha os ramos de oliveira diante de mim.
A explicação
mais satisfatória que encontrei – isso depois de vários dias de
meditação – foi a seguinte: as ondas do mar, quando se ergueram na
minha frente, não estavam apenas me mostrando poemas e contos
fabulosos: estavam me incitando, penso eu, a voltar a escrever; as
Suplicantes de Minerva, por outro lado, fazia a mesma coisa só que,
no lugar de me mostrar o reino mágico da poesia e da prosa, me
tratava como se eu fosse um deus – pois só um deus (apontava ela com
seu gesto) era capaz de exercer a mesma profissão de Homero.
As visões, neste
caso, se sucediam – eram uma atrás das outras e cada uma delas mais
fascinante que a outra. Assim, cada janela que batia, cada degrau
que rangia ou cada lufada de vento que por acaso entrava no prédio
ou na sala onde me encontrava e levantava a poeira quase secular que
me envolvia, me chamava a atenção para uma destas visões ou para uma
idéia que eu ainda não tinha tido e que era quase impossível
esquecer.
Desta forma aqui
estou escrevendo estes rascunhos que, a princípio, não tinha a menor
intenção de publicar, mas, como parece que se tornaram
imprescindíveis para o romance que perdi, aqui estão eles expostos à
luz do dia como se fossem velhos manuscritos do Mar Morto recém
descobertos em Quram, na Palestina.
Mal conservados
e mal traduzidos ainda nem por isso deixo de publicar na íntegra
para que tanto os escritores quanto os leitores mais afoitos tomem
conhecimento do meu infortúnio e possam se precaver melhor contra
tudo e todos que os cercam no momento em que estão lendo ou
escrevendo.
Acho até que foi
a partir deste dia – este dia em que tomei esta decisão heróica de
mostrar as próprias entranhas – que tudo mudou. Abri as portas e
janelas do casarão onde moro, afugentei os fantasmas que me
perseguiam e deixei que as visões – aquelas visões de escritor mal
sucedido que me importunavam tanto – desaparecessem completamente.
Agindo assim
cheguei à conclusão de que a poesia, tanto quanto o romance, também
tem a sua luz interior, como aquela que guiou os hebreus no deserto
no tempo de Moisés, e é capaz de transformar um ser esquivo e
arredio como todo escritor num ser humano mais ou menos tratável e
equilibrado emocionalmente como deve ser toda e qualquer pessoa...
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