Natércia Campos
Discurso de posse na Academia
Cearense de Letras
Em: 28 de fevereiro de 2002
Sr.
Presidente da Academia Cearense de Letras, Artur Eduardo Benevides.
Sr. Secretário da Cultura e Desporto do Ceará, Nilton Melo Almeida,
na pessoa de quem cumprimento os componentes da mesa, os presidentes
de entidades, as autoridades, escritores, intelectuais presentes e
meus ilustres colegas acadêmicos.
Minha
mãe, Maria José Alcides Campos, em nome de quem cumprimento os
amigos, as queridas colegas integrantes da Sociedade Amigas do Livro
e familiares presentes.
Feliz
estou com a presença de todos, dentre os quais destaco com carinho,
os que vieram de longe. Minha irmã Marisa, a pintora Badida, como eu
a chamava quando criança. Minhas filhas Clarissa, Emmanuela e minha
neta Mariana. A querida tia Nilda e minhas primas Maria Helena e
Maria Carolina. Suzana Martorelli, Joaquina e Zélia Fernandes
Vieira, amigas-irmãs.
Destaco
também com alegria a presença de meu irmão Cid, minhas filhas
Caterina e Carolina, meu filho Rodrigo, minha nora Sílvia, meus
genros Oliveira Júnior e Omar. Presentes estão meus netos Thiago
José, Natércia Maria, Rafael José e Pedro.
Hoje, ao
entrar nesta casa, voltei no tempo.
Década de
30! Aqui, neste patrimônio histórico, foi meu pai apresentado à
minha mãe. Na sala grande da frente, funcionava a Secretaria dos
Negócios do Interior e da Justiça do Ceará, onde minha mãe
trabalhava. Meu pai fora nomeado para a mesma Secretaria. Ele
costumava afirmar: “O Destino é o mais fértil dos ficcionistas,
aquele capaz de todas as tramas e enredos”.
O
encontro dos dois, nesse ambiente de trabalho, os fez caminharem
juntos mais de meio século! Sua história de amor teve início na
época em que se flertava e os descobrimentos entre os enamorados
eram conquistas diárias, esperadas e sonhadas.
“O poder
lírico do amor”, assim nos diz o mestre Câmara Cascudo, fez meu pai
revelar-se em poemas até hoje inéditos. Só a minha mãe pertencem.
Ela sempre me contou sobre o encontro dos dois: o salão da frente,
minha filha, tinha portas abertas para a Igreja do Rosário, uma das
mais antigas do Ceará e ao lado havia um jardim. Seu pai tinha
paixão por livros e por cinema. No início do expediente, ele em pé,
recostava-se no bureau a me contar sobre os filmes, naquele jeito
tão dele, elegante, o cigarro fazendo parte dos gestos sugestivos na
mão longa e expressiva. Quando nos casamos, ele me disse: “Se um
dia, querida, nós tivermos uma filha, ela se chamará Natércia”.
Por isso,
hoje meu desejo grande, ao transpor a porta desta casa, era transpor
Tempo e Espaço.
Nesta
casa me senti próxima ao meu pai, pois, na sala com seu nome, seus
livros e fotografia, fui por ele recebida, com seu meio-sorriso
acolhedor de boas-vindas.
Lembro-me
de um amigo querido, o poeta baiano-árabe-Jorge Medauar - que me
disse certa vez: “- Moreira Campos, seu pai, passou a mão pelos seus
cabelos e esta é uma forma mágica de transmissão.”
Às vezes,
quando me acerco do seu fusca verde, que hoje me pertence, por um
brevíssimo instante acalenta-me a idéia de que nada mudou. Logo o
avistarei vindo ao meu encontro com seu jeito tranqüilo, feliz pela
surpresa de me ver, envolto no cheiro do fumo de seu cigarro: “sua
maneira disfarçada de suspirar” - no dizer do poeta Mário Quintana.
Mas o momento esfuma-se... Estranho este véu de invisibilidade que
envolve nossos entes queridos quando eles se vão. No entanto,
persistimos em vê-los com o olhar da memória. E é nesses momentos de
evocação que eles, os que partiram, mais se aproximam de nós e
quase, quase conseguimos transpor a barreira desta dimensão tão
oculta e tão presente.
No início
deste século 21, meu filho mais velho, meu Zé, faria 40 anos. A magia
do tempo o alcançou, e ele é hoje, dos seis filhos, o meu caçula com
27 anos. Esta foi a idade escolhida pelo destino, para que sua
sombra, desde então, acompanhasse os momentos do meu viver.
Escreveu
Cervantes: “O louvor
vale pela pessoa que o dá” e é assim que recebo os louvores feitos
por meu amigo querido – Presidente desta Academia – o poeta, Artur
Eduardo Benevides.
Suas
palavras, agora proferidas, me levam a sentir quão precioso e
imprescindível é ter amigos. Na travessia do tempo a sua poesia foi
um longo pastoreio de palavras belas, leves e encantadas. Foram elas
o liame que nos aproximou e irmanou com grave paciência, desde as
reuniões literárias e amigas, realizadas no pequeno jardim da casa
de meus pais, no Benfica.
Seguindo
o ritual desta ilustre casa, recordarei o digno patrono da cadeira
número seis, Antônio Pompeu de Sousa Brasil. Filho de Tomás Pompeu
de Sousa Brasil, o Senador Pompeu, e de Felismina Carolina
Filgueiras. Nasceu ele em Fortaleza, a 29 de março de 1851. Médico
pela Faculdade do Rio de Janeiro. Preferiu, no entanto, levado por
seus pendores para os assuntos industriais, dedicar-se inteiramente
à montagem e direção de uma fábrica de tecidos, nesta Capital.
Faleceu muito moço, aos 35 anos, em 26 de janeiro de 1886. Era
pessoa de grande acatamento e de muita simplicidade de maneiras. Pai
de Tomás Pompeu Sobrinho, titular, inicialmente da Cadeira de Nº 6,
da qual era Patrono Fausto Barreto. Na reforma de 1930, escolheu
como Patrono o próprio pai.
Não
conheci Francisco Alves de Andrade e Castro, o titular que me
precedeu na cadeira Nº 6, mas ao debruçar-me sobre sua história de
vida, seus livros escritos, sua sensibilidade poética, ficou-me a
singular saudade de não ter usufruído do seu convívio. Creio que
seríamos amigos por várias razões, dentre elas seu agudo humanismo.
Afirmava
Francisco Alves de Andrade e Castro: “Devo aos meus professores do
Seminário, meus conhecimentos sociológicos, filosóficos e humanismo
cristão”.
Nasceu
ele em 21 de novembro de 1913, nos sertões de Mombaça, do Ceará, no
Sítio Recreio, de chão duro e de solos vermelhos. Seus pais foram
José Alves de Castro e Raimunda Paes de Castro. Seus primeiros
estudos, o curso primário, fez em sua cidade juntamente com seu
irmão, a quem tanto queria e admirava, Paes de Andrade. Saiu de sua
terra para cursar o secundário no Seminário Diocesano de Fortaleza.
O
interesse pela literatura ampliou-se nesses anos de estudos no velho
Seminário da Prainha. Ainda seminarista, em hora dedicada à
meditação, saiu em silêncio da sala e subiu à torre da Igreja do
Seminário. Seu olhar pousou no Farol do Mucuripe e escreveu seu
primeiro poema, aos 20 anos. Nosso poeta Artur Eduardo Benevides o
incluiu na sua "Antologia de Poetas Bissextos do Ceará”.
No ano em
que nasci, diplomou-se Francisco Alves de Andrade e Castro na Escola
de Agronomia do Ceará. Foi ele o orador de sua turma, que teve como
lema “Estudaremos o Nordeste”. Fiel a esta legenda, lembra nosso
historiador Raimundo Girão, “ele realmente se dedicou ao estudo dos
problemas nordestinos, dos quais, depois de Tomás Pompeu Sobrinho e
José Guimarães Duque, se tornaria a grande autoridade”. Cientista e
Humanista, formou-se também em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Faculdade de Direito do Ceará. Afirmou-se nele a ampla visão
humanista.
Herdou
Francisco Alves de Andrade e Castro dos seus avós, do clã dos
Inhamuns, o amor à terra. Depois, a sua profunda vivência com os
sofridos homens dos sertões, quando, demarcando terras, palmilhou
estes chãos em contato com a problemática da vida regional, o fez
tornar-se um dos cearenses que mais escreveu sobre o Nordeste.
Guiou-se
esse homem de letras, cultura e humanismo telúrico, pelo pensamento
e pela ação, no anseio do desenvolvimento por amplos caminhos. Estes
o levaram, com dedicação e justiça, a procurar amenizar a vida do
homem do campo.
Em 1942,
casou-se Francisco Alves de Andrade e Castro. Sua mulher, nossa
querida Mundinha, sempre se destacou por seu espírito de
solidariedade, força de liderança e amor a todos os seus familiares
e amigos. No seu livro, lançado em novembro de 2001, no Ideal Clube,
com o título – “Antes que eu me esqueça”, ela registra seu mundo,
vivido com respeito e dedicação, junto ao marido e seus quatro
filhos: Raimundo Régis – agrônomo e professor universitário como foi
seu pai, Tereza Cristina: a única filha do casal, formada em Letras
e Pedagogia na Universidade Federal do Ceará. Pedro José e Paulo
Alexandre, ambos médicos.
Francisco
Alves de Andrade e Castro exerceu vários cargos e funções públicas,
dentre os quais:
Diretor
da Produção Animal da Secretaria de Viação e Obras Públicas do
Ceará; Secretário da Agricultura do Ceará, em 1946; Delegado Federal
do Ministério da Agricultura na década de 60, Chefe do Departamento
de Zootecnia da Universidade Federal do Ceará; Representante do
Governo do Ceará no CODENO e, depois, na SUDENE; Chefe da Zona do
Departamento de Terras e Colonização, da Secretaria de Agricultura
do Ceará; Professor Catedrático de Zootecnia Especializada da Escola
de Agronomia da Universidade Federal do Ceará.
Recebeu
os títulos de Professor Emérito, da Universidade Federal do Ceará, e
de Professor Honoris Causa, da Escola Superior de Agricultura de
Mossoró, Rio Grande do Norte.
Foram-lhe
concedidas a Medalha do Mérito Agronômico do Brasil, outorgada pela
Federação das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil e a
Medalha Justiniano de Serpa, do Estado do Ceará.
Foi
membro do Instituto do Ceará e da Sociedade Brasileira de Zootecnia
Suas principais obras publicadas são: As Possibilidades de
Desenvolvimento e Melhoria dos Recursos de Gado Bovino no Ceará em
1942, A Escola Rural e a Pecuária (1946), O Pioneiro do Folclore no
Nordeste do Brasil (1949), estudo sobre Juvenal Galeno; Estudos de
Zootecnia Regional (1949), Tomás Pompeu e seu Tempo (1954), A
Pecuária e o Crédito no Polígono das Secas (1955), A Reforma Agrária
no Polígono das Secas (1959), Cerâmica Utilitária de Cascavel
(1959), Agronomia e Desenvolvimento do Nordeste (1960), O Presbítero
e os Sertões (1976), Ildefonso Albano e outros Temas (1985) e Saga
dos Sertões de Mombaça (1987).
Seu livro
Agronomia e Humanismo, uma de suas obras principais no campo da
ciência, conquistou o Prêmio Clóvis Beviláqua, da Universidade
Federal do Ceará. São muitos os estudos que fez estampar em
periódicos, mas podemos destacar “Como nasceu a indústria da
oiticica no Ceará”, na revista Nordeste Econômico e Financeiro de
1948; a “Saudação a Guimarães Duque”, na Revista do Instituto do
Ceará de 1953, bem como o prefácio que escreveu para a edição de
1965 das Lendas e Canções Populares de Juvenal Galeno. Organizou o
livro “Renato Braga - In Memoriam (1967)”.
São de
Francisco Alves de Andrade e Castro os versos: “In Aeternum”, feitos
em homenagem ao seu mestre e amigo-irmão, 'Renato Braga, que certo
dia a ele confessou: “- Chico Alves, quando eu morrer gostaria que
plantassem uma árvore, sobre a terra onde estarei”.
In
Aeternum
Quando eu
morrer
e voltar
ao seio da terra amiga,
não quero
túmulo,
nem
epitáfios em lousa fria...
Plantem
uma árvore sobre o meu jazigo!
E que as
cinzas do meu corpo
sirvam a
suas raízes de alimento!
E tudo o
que era sangue,
correndo
pelas veias,
batendo
nas artérias,
reviva em
seiva!
Que a
poeira dos sonhos desfeitos,
na
aderência das lágrimas e humo,
forme
solo fecundo
à
exaltação da vida...
E homem
que fui,
árvore
que serei
da
matéria vencida,
hei de
crescer para o alto!
E
buscando sempre o sol,
Bebendo a
intensa luz,
Estenderei meus ramos,
Sorrindo
para o azul infinito!
E todo o
antigo amor,
ressurgindo das entranhas
do velho
coração já morto,
subirá
pelo tronco à fronde,
onde
desabrocharão flores,
de onde
penderão frutos... |
Exalto,
com respeito, sua memória. Reverencio o homem erudito, enfim, essa
figura humana tão plena de amor por sua terra. Sua obra é referência
fundamental a quem quiser conhecer as virtudes e lutas do homem
nordestino. Foi um precioso tempo esse em que me debrucei sobre a
obra Francisco Alves de Andrade e Castro, sobretudo por seu sentido
humanista, a envolver, em um vínculo sagrado, homem e sertão.
E assim,
peregrina pelos caminhos da alma, pareço escutar o eco das vozes,
sentir as mãos amigas e o amor dos que me protegeram, do ninho ao
vôo! São tantos! Desde a casa dos meus pais ao sobrado da rua dos
Potiguaras Nº 10, dos meus avós maternos. Na casa deles, as noites
chegavam para que eu cedo adormecesse e as manhãs surgiam para que
meu espreguiçar despertasse a minha alegria de viver. E isso
acontecia tão simplesmente, fazendo-me crer que havia de ser essa a
razão dos dias e das noites existirem. Era a casa dos meus avós o
meu regaço.
E então,
os livros chegaram como mensageiros vindos de outras paragens
encantatórias, com a missão de ampliarem meus sonhos. Sinto nas mãos
e ainda aspiro o cheiro da minha velha Crestomatia – “Última corrida
de touros em Salvaterra” de Rebelo da Silva. Meus livros tão
manuseados! "Reinações de Narizinho” – "História do mundo para
crianças”. Minha mãe sempre contou, que chorei inconsolável quando
me deu a notícia da morte de Monteiro Lobato. Tinha eu, nessa época,
9 anos. Absorvi a beleza imorredoura dos contos encantados de
Andersen, dos irmãos Grimm, de Perrault.
Quanta
saudade da minha coleção de quase cem pequenos exemplares da Edição
Melhoramentos. Das fábulas de Esopo e de La Fontaine, com
ilustrações em bico de pena. Do Tesouro da Juventude e seu papel
fino a lembrar suavidade da seda! Todos eles e os que vieram depois
foram companheiros inseparáveis. Tive a ventura de ter uma
biblioteca na casa de meus pais e toda a liberdade para ler o que
desejasse. Tardes que marcaram essa época, vivi na casa de minha tia
Nilda, onde protegida por sua aguda sensibilidade, lia e escutava
música.
Os
livros, com seus vários personagens e destinos, povoaram meu mundo
de infindas sensações. Despertaram-me para a beleza, os mistérios, a
peregrinação lunar, a mitologia engastada no esplendor das
constelações, a grandeza ilimitada da natureza e a multiplicidade
dos sentimentos.
Até hoje
quando releio alguns dos meus livros, todos velhos e queridos
amigos, volto no tempo. Esse regresso feito em silêncio me comove,
pois cada vez que os visito são ainda melhores e mais nos
entendemos. Todos são companhia sagrada. Soam como música dentro de
minha alma. Já afirmava o genial Borges: “Uma forma de felicidade é
a leitura”.
Daí o
motivo de alegria, quando ingressei na Sociedade Amigas do Livro,
pelas mãos de uma mulher, especial e querida, Nadir Papi de Saboya.
Nesta entidade, atualmente presidida por Cybelle Valente Pontes,
tenho a oportunidade de participar de palestras e debates
literários. Fazer parte desta sociedade muito me honra.
Mas o
primeiro Grémio Literário que participei, foi o do meu inesquecível,
Ginásio 7 de Setembro, cujo o diretor, era o dinâmico educador, Dr.
Edilson Brasil Soárez, que nos alertava sobre a importância da
leitura na formação do jovem. Dona Nila Gomes de Soárez sua mulher,
foi minha professora, amiga e conselheira. Hoje no Colégio 7 de
Setembro, cujo o diretor é meu grande amigo, colega de classe,
Ednilo Soárez, estuda meu neto muito amado, Rafael José.
Os livros
novamente abriram caminhos e estes me levaram a trabalhar na
Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, no setor de editoração,
em seguida fui incumbida da coordenação do stand do escritor
cearense, desde a primeira Feira do Livro. Hoje faço parte do
Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural do Estado do
Ceará, presidido pelo secretário de cultura, Nilton Almeida, meu
amigo.
Foi, no
entanto, muito depois que descobri o mundo mítico dos longínquos
sertões-de-dentro, bem distante do meu sertão-de-fora, a Praia de
Iracema, onde nasci.
Devo este
meu deslumbramento ao meu tio e compadre querido, Hildebrando
Espínola, jornalista, professor, sociólogo e bibliófilo.
Ele me
pôs nas mãos o "Dicionário do Folclore Brasileiro", de Luís da
Câmara Cascudo. Foi esse livro a minha bússola. Com ele segui como
os antigos pastores da Mesopotâmia que se guiavam pelas estrelas e
por elas sabiam dos caminhos da terra.
Meu amigo
Diógenes da Cunha Lima – Presidente da Academia Norte-Rio-Grandense
de Letras, define com sensibilidade e maestria esse sábio mestre:
“Em verdade, ninguém escreveu mais e melhor sobre o Brasil e sobre
os brasileiros do que Câmara Cascudo. Os seus estudos etnográficos
são imprescindíveis para a compreensão do que é nosso. Penso que ele
e Gilberto Freyre são duas faces da mesma moeda. Eles estudaram e
revelaram o Brasil. Gilberto com maior visão sociológica e Cascudo
com visão antropológica, de cultura popular. Fazem a verdadeira
interpretação social. Gilberto parte do Regional para fixar o
brasileiro no mundo (Casa Grande e Senzala). Cascudo parte do homem
no Universo para fixar o brasileiro (Civilização e Cultura). As suas
obras são paralelas, vezes convergentes e complementares uma da
outra. Os dois descobriram o Brasil”.
Meu
primeiro livro, de nome “Iluminuras”, foi a ele dedicado: “Para o
Mestre Luís da Câmara Cascudo, minha magia e meu real.”
Enveredei
em torno dos sociólogos, historiadores, antropólogos mestres
incontestes do folclore brasileiro. Palmilhei “Os Sertões” de
Euclides da Cunha; os "Capítulos da História Colonial", de
Capistrano de Abreu; "Os Cantadores e Violeiros do Norte", de
Leonardo Mota; a "Paisagem das secas" de Mauro Mota; e "Usos e
Superstições Cearenses" de um dos maiores pesquisadores de nossa
terra – Guilherme Studart. Fui em busca do genial sergipano, Sílvio
Romero, com seus "Cantos e Contos Populares do Brasil"; pela
"Pequena História do Ceará" do nosso Raimundo Girão; pelos "Peãs" do
épico Gerardo Mello Mourão; pelas "Raízes do Brasil" de Sérgio
Buarque de Holanda. Li "Guerreiros do Sol - o banditismo no Nordeste
do Brasil" – livro sobre a sociologia do cangaço, do gentil-homem,
meu amigo, Frederico Pernambucano de Mello, cujo prefácio escrito
por Gilberto Freyre o consagra. Emocionei-me com o "Romance d’A
Pedra do Reino" e o "Auto da Compadecida", clássicos, do maior
artista contemporâneo em todas as artes – o heráldico Ariano
Suassuna, amigo muito querido e a quem tanto admiro. Dele recebi
recentemente uma iluminogravura e um soneto.
Amigo de
meu pai foi Gustavo Barroso. Dos dois tenho uma fotografia, em
conversa evocadora de alpendre, deitados em redes, em uma tarde
chuvosa. Diz o meu poeta querido, Francisco Carvalho: "A chuva me
restitui a infância perdida na correnteza dos dias". Acho que ambos
naquela tarde tiveram uma restituição ímpar, um longo reencontro com
os dias de sua meninice. Voltaram: às suas casas, lugares vividos,
às árvores, aos viventes, sentindo o cheiro da terra molhada pela
abençoada chuva.
Um dos
livros de Gustavo Barroso que me fascinou por sua prosa- poética é o
antológico “Terra de Sol”. Seu livro "Ao Som da Viola", editado em
1921, foi a primeira antologia folclórica publicada no Brasil. Este
pequeno texto escrito por Câmara Cascudo diz da dimensão do escritor
Gustavo Barroso:
"Foi um
mestre incontestável do folclore brasileiro, valorizando-o em fase
que ninguém percebia interesse e valia, enriquecendo-o com livros de
notável erudição. Um estilo ágil e claro, de discreta elegância
vocabular, trazia uma força de comunicabilidade admirável. Sua
bibliografia é essencial para o folclore".
Foi
novamente meu tio Hildebrando Espínola que me emprestou "A Caça nos
Sertões de Seridó", de Oswaldo Lamartine de Faria. Ressaltou: "Leia,
Natércia. Você vai gostar. O homem é um dos grandes em etnografia".
Obedeci. Segui seu rastro. Seu aboio. Suas abelhas. Seus açudes.
Seus arreios e vaqueiros. Suas histórias marcadas por um estilo
inconfundível -seu ferro e sinal – trazem de volta os dias de
antanho do sertão-velho, com seus preceitos e a integração total do
homem à natureza.
Sobre
Oswaldo Lamartine de Faria diz a nossa Rachel de Queiroz: "Acho que
no Brasil, ninguém entende mais do sertão e do nordeste do que
Oswaldo". No seu romance "Memorial de Maria Moura", agradece a ele
na página das dedicatórias: "A inestimável ajuda de Oswaldo
Lamartine de Faria".
E assim
os livros, esses mensageiros vindos em revoadas de vários pontos
cardeais, conseguiram tornar alado meu mundo interior. Finquei
minhas raízes nas tradições populares. Foram tantos livros em
migração, que por vezes, ingratamente, esqueço o nome dos mestres
escritores. Perdoem-me os não citados.
Minha
jornada pelos sertões-de-dentro tem sido fascinante. Por onde
enveredo se alumiam os desvãos da minha alma. Sigo por atalhos,
platôs, rios, caatingas, pastagens, vilas, caminhos em cruz, em
busca das ocultas nascentes, e nelas sacio minha sede.
Tenho
sedução por cheiro de mato, de terra, de gado, de café torrado em
alguidar de barro – "café donzelo", de assistir ao repiquete de um
rio, aboios soltos na hora do Ângelus, quando os sinos distantes da
matriz tocam, nos campanários, as Trindades, e o sereno cai,
trazendo seus malefícios. Percorro em silêncio uma casa de farinha,
com sua boca de forno a lenha. Pareço, às vezes, escutar chocalhos e
o canto de galos, a clarear manhãs de sol a coar-se pelas telhas.
Vejo fiapos de névoa na risca das serras verdes, clarão de
relâmpago, noite de lua e a fuga pelos céus da luminosa zelação, a
estrela cadente, seguida do pedido: Deus te Guie. Ouço o baque de
frutas espatifando-se no chão molhado, onde se vêem, nítidos,
rastros de gente e bichos. Por vezes, escuto o canto da chuva em
horas mortas, banhando uma velha casa de duas águas, equilibrada num
cerro, cercada de alpendres escorados em colunas, onde o vento dia e
noite entra solto a percorrer salas e quartos, trazendo as frias
manhãs e a viração mormacenta das tardes, que penetram na noite e
tangem o cheiro das velas bentas nos santuários. É quando, ao
anoitecer, ao som das contas dos terços e ao embalo doce das redes a
gemer nos armadores chegam as mansas conversas e sonhos.
Curioso é
que este mundo não vivido acalento dentro de mim, como uma
recordação antiga, eco de velhas histórias contadas à luz das
lamparinas, sobre o sertão belo e trágico de distâncias infinitas.
Apoio-me
na força poética de Nertan Macêdo: "Longínquo país, a morada dos
nordestinos. Longas, silenciosas, adormecidas terras de
lápis-lazúli. Assim o encontraram, há trezentos anos os nossos
avós".
Sinto o
encadeamento, um tear a unir fios, o entrelaçar de mundos paralelos:
os descobertos pela imaginação, instigada e povoada por leituras e
os da minha memória ancestral vinda da minha bisavó e avó
portuguesas, do distante Minho, casadas com homens andejos,
descobridores dos caminhos do mar e desbravadores de terras. Tais
mulheres ficavam nas suas aldeias à mercê de Deus e da Virgem, das
meizinhas, superstições e crendices, que davam alento à sua força
interior. Tão iguais à minha bisavó e avó nordestinas com seu legado
de luta neste sertão, que elas superavam: trabalhando, fiando,
cozinhando, plantando, a criar filhos e afilhados, cercadas por um
profundo misticismo de rezas e agouros. Estes dois mundos avoengos
são como as estrelas extintas que continuam a enviar seu rastro de
luz através do tempo.
No
entanto, foi na terceira casa, onde mais tarde pousei a esperar meus
seis filhos, que aconteceu o mais belo aprendizado. Com eles aprendi
a beleza da partilha. As responsabilidades, ponderações, dúvidas,
zelos e desvelos criaram alento. Abrandou-se em mim o egoísmo.
Aprendi que mãe e filho possuem liberdade de trocarem os títulos,
conforme as situações vividas. Todos os seis com suas provisões de
doçuras e durezas e suas profundas diferenças: Caterina, José Thomé,
Clarissa, Rodrigo, Emmanuela e Carolina ampliaram a minha vida em
infinitas vidas. Dizia Olavo Bilac: Há numa vida humana cem mil
vidas!...
Certa vez
li e guardei este pensamento do mestre Guimarães Rosa: "A vida
inventa. A gente principia as coisas no não saber porque, e desde aí
perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por
todos remexida e temperada."
Lembro-me
que no ano de 1987 escrevi minha primeira carta para o poeta Jorge
Medauar. Pedia sua opinião de crítico literário, sobre meus
primeiros contos, todos ainda inéditos. Não me identifiquei. Sua
resposta muito me incentivou. Ele escreveu: "Envie-me suas
histórias. Quero publicá-las nos suplementos literários aqui de São
Paulo. Seu estilo é nódoa braba de caju. Aí na sua terra, procure o
mestre do conto, Moreira Campos". Encantou-me a coincidência.
Respondi a Medauar, revelando ser filha do mestre Moreira Campos e
desde então, assim "temperada", de surpresas, sentimentos e
cumplicidades, permanece até hoje a nossa correspondência. Um dia
quem sabe resolveremos publicá-la.
Chego
hoje a esta casa – a Academia Cearense de Letras – a mais antiga de
todas as academias culturais no país, emocionada e feliz. Sempre me
causam admiração as pessoas que planejaram seus passos, suas
diretrizes e a vida permitiu que assim pudessem ser e acontecer.
Comparo, alguém já fez isso, a um teatro: Abre-se o pano, vai ter
início a peça. Alguns sabem e agem como se tivessem feito antes um
longo ensaio geral, e outros não, a vida vai acontecendo com suas
circunstâncias, arbitrariedades e mutações. Faço parte destes
últimos.
Daí a
vida, assim acontecendo sem maiores empenhos e planejamentos, traz
com ela momentos como este, de felicidade.
Recebi um
cartão de um amigo, o escritor João Soares Neto, que diz esta
verdade: “- Natércia, engraçado. O vestibular da vida a aprova. E,
de prova provada, você é acadêmica. Com a alegria do João”.
Hoje sei
que a minha vida tão incrustada de aprendizados simples foi regida
por minha boa estrela, a da sorte. Desde que nasci – na hora aberta
do meio-dia – fui por ela aquinhoada. Sempre espero que alguma coisa
de bom esteja prestes a me acontecer. É uma sensação leve, como o
fremir das asas de uma borboleta... mas palpita dentro da minha alma
este porvir. Valho-me do poeta Artur Eduardo Benevides: "Percebo:
nada fiz de extraordinário além de exercitar-me na esperança."Por
isso minha emoção quando hoje à noite transpus a soleira desta
Academia Cearense de Letras, cujas paredes ouviram sobre meus pais e
seus sonhos. "O rumor antigo conta", afirmava Camões.
Senhores
acadêmicos, amigos queridos que me trouxeram a esta casa para mais
próximos compartilharmos nossas vidas e amor ao livro. Agradeço a
todos a unanimidade do bem-querer. Esta alegria tão minha se
transforma em dupla alegria pela partilha.
Termino
estas palavras com a poesia de um amigo ausente, mas tão presente em
sua amizade, Sânzio de Azevedo:
"Há
momentos na vida que compensam
a grande,
imensa turba dos momentos
de
angústia e de agonia.
São
clareiras de luz na selva escura,
frinchas
abertas na aridez dos muros.
- Há
momentos que valem toda a vida..."
E este, é
um deles, meu pai. |
Obrigada.
Natércia
Campos.
|