Nei Duclós
A palavra que ninguém enterra
Crítica de Nei Duclós ao
romance de Japiassu
Tocaia na seca: as surpresas do novo romance de Moacir Japiassu
Linguagem é território livre, mas não deveria estar aberta a certas
liberdades. Se o lugar escolhido para moradia for a Paraíba, as
palavras precisam seguir a orientação ditada pela sabedoria da
terra, e cuidar principalmente da tocaia. Um tiro pela culatra é o
que menos aguarda um índio que se aventure na seca abraçada à areia.
O que mais assusta é a desventura de ver sua catedral de palha - a
percepção que até o momento se alimenta do mundo - sofrer o revés de
um pé de vento. Mas para quem é estrangeiro, e queira visitar essas
paragens, nada mais resta do que tratar o assunto com as hipérboles
do seu espanto, já que o não-nordestino sofre de escassez de
entendimento quando se trata de abraçar a Terra do Sol.
Um adventício, especialmente se for criado nas lonjuras sulistas,
quando lhe bate a luz excessiva na cara cai na tentação de lembrar o
óbvio, de que o caminho escolhido para a Criação do mundo foi o
verbo, o romance do Gênesis. Deus, prudente, preferiu aliar o
testemunho por escrito aos seus gigantescos atos. Não fosse assim,
quem garantiria crédito ao seu desmesurado esforço? E, melhor: não
fosse pela palavra, quem poderia garantir que a encomenda fosse
entregue no endereço certo? Pois não bastava inventar, era preciso
inventar escrevendo. E assim foi feito o primeiro Livro, do qual
todos os outros são apenas imagem e semelhança.
O viajante traz na bagagem os arquivos a que está acostumado e
quando depara com a Paraíba, por exemplo, é capaz de desistir da
empreitada, pois tudo o que vê não poderá amarrá-lo a semelhante
paisagem, já que nada ali tem seu feitio, a não ser o idioma, termo
mais apropriado do que língua, que serve para diversas
licenciosidades. É agarrado ao idioma que o viajante entra na
Paraíba, guiado por Moacir Japiassu, que tem, com qualquer viajante,
uma identificação plena. Pois ele também, um confesso paraibano
auto-exilado, serviu-se da vivência estrangeira para depurar sua
criação e entrou de volta não com a curiosidade dos turistas, nem
com a condescendência dos que se iludem com os grandes centros, mas
com a gana do combatente que volta para algum tipo de desforra.
É bom que se diga: não se trata de vingança, pois nenhum espírito
mau sobrevive ao fogo do amor pelo lugar que nos viu nascer e
crescer. Mas porque o escritor está empenhado em uma missão
intransferível: a de resgatar o que perdeu, tornando essa herança
tão viva para os outros como foi para ele um dia; e tão maior do que
qualquer mundo presente.
Todos que estão ao redor de um possuído incorporam as razões da
advertência e confidenciam a quantidade de perigos que sugere esse
estado. Mas quem é possuído não pela desrazão, mas pela Criação
obstinada, sabe que não pode voltar atrás. Ele precisa, como
Japiassu fez, colocar em ação o moto contínuo de sua febre, composto
de uma biblioteca afundada no ermo; um assobiador que é misto de
virtuose, intelectual e torturador; um senhor de engenho do mando e
do cutelo, dono de escravaria jagunça; outro senhor de engenho
solteirão e cheio de remorso; uma sogra carola e terrível; uma
esposa apática; uma professorinha na flor do viço e tentada pela
esperteza; mais um padre que faz cruzada contra a jogatina. O sezão
de Japiassu não se contenta, porém, em dispor esses personagens
entre o canavial e a choupana, entre a igreja e a varanda, entre
povoados que, no escuro, como ele diz, aglomeram as casas com medo
da escuridão. Seu delírio o leva para mais longe.
Ele precisa descobrir, portanto inventar, o engenho de duas guerras
acavaladas e isso só pode ser feito se for um leitor compulsivo de
tudo o que as armas fizeram nesta nação, onde todos pensam que
sabem, mas poucos sabem o que pensam. A revolta de Princesa, no
interior da Paraíba, a cavaleiro da revolução de 30, movimento
nacional visto aqui pelo prisma revelador do Nordeste, são os
espaços históricos da sua incursão à memória mítica do País, ao que
nossos pais nos contavam e nenhum livro oficial de História dava
crédito. Como as guerras, no Brasil, convivem com as versões que as
negam, cabe à literatura desencavar o rebento retido nessa gravidez
tardia, que envenena o corpo do Brasil disforme, prenhe de gaiatices
sobre revoluções.
O paradoxo é que o material de Japiassu é exatamente essa humanidade
sinistra e ao mesmo tempo galhofeira, que é protagonista nos fatos e
algoz nas versões. O campo de ação de um escritor fica duplamente
minado e agora podemos entender quando Japiassu fala do trabalho que
deu reescrever capítulos inteiros, adaptando a linguagem do narrador
à fala das personagens. Esse trabalho é fruto do exímio talento
aliado à persistência sertaneja, já que Japiassu dá um boi para
adiar a escrita de um livro (seus grandes romances só saíram nos
últimos anos, depois de décadas de militância na imprensa) e uma
boiada para sair dele com a consciência do dever cumprido. O
funcionamento desse mundo, que ele resgata inventando, passa pela
cuidado extremo com o detalhe, como o levantamento minucioso de cada
peça musical clássica, por exemplo; ou as pistas deixadas pelas
revoluções incompreendidas, entre trechos de jornais, manchetes,
documentos; ou mesmo o cruzamento entre o clima da terra e o ânimo
das pessoas, a geografia e a anatomia. Faz tudo isso usando muitas
vezes a linguagem dos brutos: o sexo tem tratamento frontal (mas é
praticado de todos os lados), os xingamentos especializam-se na
demolição das biografias, o fedor antecipa o tiroteio e assim por
diante. E cuida em definir-se pelo pudor dos verdadeiros criadores -
ninguém fica sabendo se Isaías, o assobiador, é filho do padre Sabaó
(se Isaías não sabe, porque o autor vai lhe devassar esse segredo)?
Tudo intercalado (para evitar pomposidades) pela gargalhada
explícita - reação comum do leitor em várias passagens do livro.
Sua galeria de personagens inclui tantas figuras fundamentais, que
elencá-las numa resenha parece ser o relatório do viajante iludido
em levar o romance como lembrança. O jornalista do jornal Imprensa
às Suas Ordens, cúmplice do assassinato do presidente João Pessoa,
ilumina as origens de um conterrâneo tornado ilustre, Assis
Chateaubriand; o José Américo recriado aqui revela o lado
desconhecido da Revolução de 30, com suas contradições no bojo da
luta; o conde cafetão e a soprano lírica amante do político poderoso
são um ensaio sobre os bastidores de um movimento que ainda guarda
inúmeros enigmas. Não satisfeito, Japiassu ainda brinda o leitor com
os antecedentes de toda a situação política e social do Nordeste ao
colocar em praticamente dois parágrafos (páginas 185 e 186) as
origens da República por meio de ilustres figuras da transição,
vindas do Império. Parece um confeito no bolo da noiva, mas é mais
uma bala nesse rifle recheado.
Estamos longe de ver no concerto de Japiassu apenas uma obra
didática, já que ele compartilha do caos que representa sem dó. Mas
ele mantém a majestade do Maestro que ensina ao impor sua regência.
Seu romance reinventa a importância do seu autor, assim como
estabelece um novo parâmetro na terra calcinada da literatura
brasileira. O autor, imbuído da sua missão e do seu destino, avisa
que os mortos não foram enterrados, nem o serão tão cedo. Que os
enterrados vivos mordem. Que os excluídos da História sempre voltam.
Que Deus, mesmo para os anti-clericais, está vendo tudo. E que a
punição será severa se tentarem ignorar mais este acontecimento
cultural, que reforça a necessidade de o Brasil criar grandes
livros, e não apenas literatura descartável.
O lançamento conta ainda, na apresentação, com um texto de Wagner
Carelli, que não por acaso é o seu editor: Carelli escreve como
poucos e guia-se pelo próprio talento para sintonizar os seus
editados. Carelli define o livro como um épico "capaz de ser
poderoso como um sinfonia de Mahler - mas que se lê rápida, clara e
deliciosamente como uma partitura de Mozart". No posfácio, brilha a
análise de José Nêumanne, que enriquece a leitura com sua cultura
certeira e empresta a este resenhista sua mais preciosa metáfora, a
da tocaia sertaneja.
Diante de um homem como Moacir Japiassu, ungido pelo dom da Criação
e apoiado pela cavalaria andante do talento, é prudente não
exceder-se na conversa, já que se trata de um soldado marcado pela
guerra.
Diante de um escritor como ele, quem tem juízo cala e escuta.
E quem tiver respeito, apresenta armas.
Concerto para Paixão e Desatino - Romance de
uma Revolução Brasileira - Moacir Japiassu (Editora Francis, 350
páginas, apresentação de Wagner Carelli, posfácio de José Nêumanne)
(*) Jornalista, poeta e crítico literário.
6/10/2003
Leia os comentários postados:
Luiz Sergio Nacinovic [07/10/2003 - 06:13]
Vou ter que arrumar um e colocar a leitura local em dia.
Marcelo Min [07/10/2003 - 00:04]
Nei, estarei nessa tocaia digital aguardando a chance de ler mais e
mais as tuas resenhas e iluminações
Auri [06/10/2003 - 19:57]
(Diretor-Projeto Ler & Escrever - GO)
Depois de ler uma resenha deste quilate, o que mais dizer? Apenas
que estou lendo, aos poucos, desde que comprei, numa livraria de um
shopping, aqui em Goiânia, o impagável romance "A Santa do Cabaré",
onde o estilo de Japiassu se manifesta com vontade e talento em
demasia. Agora é ler este, num futuro próximo, e poder ter acesso a
mais uma boa dose do pena de Mestre Japiassu.
Léo Bueno [06/10/2003 - 17:05]
(Diretor - Mídia-Prefeitura Municipal de Santo André - SP - Santo
André)
Inclusive, Delmar, deixa eu fazer a sugestão de que o Comunique-se
organize uma promoção para nos premiar com o livro, porque estamos
numa pindaíba de fazer dó. Gosto de Japiassu porque ele tem estilo,
mas nunca o faz mais importante do que o leitor. Sua escrita tem
alma e, ao mesmo tempo, é inteligível. Não é que nem muita gente que
escreve, busca e rebusca e, no final, não dá para entender patavina
do que ficou escrito.
Delmar Marques [06/10/2003 - 16:28]
(Diretor-DM Textual Editoração Eletrônica - SP)
Pô, agora a gente tem que ler o livro para conferir. Mas, conhecendo
o Nei, podemos entrar nessa trilha com a certeza de que a viagem
compensará.
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