Nelson Hoffmann
Mais que um romance
(Jornal Poiésis, nº 103, outubro-2004,
Petrópolis, RJ)
Li, certa vez, em Otto Maria Carpeaux,
uma afirmação de Thomas Mann: Hoje em dia, um romance precisa ser
mais que um romance. Em seqüência, vinha a explicação do próprio
Carpeaux: O romance do século XX tem de ser, ao mesmo tempo,
romance, ensaio, tratado científico, também obra de história e
reportagem. Pois esta foi a lembrança que me veio, há pouco, quando
li “A espera do nunca mais”, de Nicodemos Sena.
Quem me apresentou Nicodemos Sena foi
o poeta Aricy Curvello. Um dia, mandou-me este uma cópia do texto “O
mar de nomes de A. Curvello”, de autoria de Nicodemos Sena e saído
no jornal “O Estado do Tapajós”. Nele era eu citado e o nome do
autor não me era estranho: trazia-me ressonâncias que eu não
identificava. Não sabia de onde, perguntei. E o Aricy Curvello
apresentou-nos.
Soube, então, que Nicodemos Sena
nasceu em Santarém, Pará, na Amazônia brasileira. Grande leitor
desde pequeno, foi estudar em São Paulo. Formou-se em Jornalismo
pela PUC e em Direito pela USP. Residiu em São José dos Campos, SP,
foi Diretor de Redação do jornal “A Província do Pará” e, hoje, vive
em Caraguatatuba, no litoral paulista. É romancista, ensaísta,
jornalista. Seu primeiro romance, “A espera do nunca mais”, de 1999,
recebeu o “Prêmio Lima Barreto – Brasil 500 Anos”, outorgado pela
UBE/RJ. Outro romance seu, “A noite é dos pássaros”, está pronto e
em vias de lançamento. Colabora em jornais e revistas e, às
quintas-feiras, assina coluna em “O Estado do Tapajós”.
Em nossa troca de informações e
livros, do Nicodemos Sena e eu, aos poucos fui descobrindo que eu já
tinha lido muito sobre ele, embora não lhe conhecesse a obra. Isto
é, não lhe conhecia o único romance, esse “A espera do nunca mais”.
Eu lera aplausos da crítica, vira até reproduções da capa, mas não
conseguira o livro. Muito menos, lera. Daí, os ecos da memória.
Quando recebi o meu exemplar de “A
espera do nunca mais – Uma Saga Amazônica”, autografado pelo autor,
quedei-me embasbacado. Pesei, sopesei o volume, folheei. Voltei-me
para as prateleiras de meus livros e fiquei a considerar “A pedra do
reino”, de Ariano Suassuna. Logo, passei-me para “Os tambores de São
Luís”, de Josué Montello, e vislumbrei “Gabriela, cravo e canela”,
de Jorge Amado. Havia o “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo
Ribeiro. Alcancei o Érico Veríssimo, com o seu “Incidente em Antares”
e descortinei o “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Até
Plínio Salgado chegou-me aos olhos com o “Vida de Jesus”. Mas nenhum
equiparava-se, em volume, ao “A espera do nunca mais”. De jeito
nenhum!
Parecia-me um absurdo, isso. Hoje, em
tempos de tanta pressa e tão pouco tempo, surgia-me um autor com um
calhamaço desses?! Inacreditável! Para ser exato, 876 páginas, nesta
segunda edição. Quem leria?
Eu li. E vou dizendo logo: foi uma das
melhores coisas que eu li, nesses últimos anos. Há muitos anos,
neste e deste Brasil. Com gosto e prazer, eu li. Do começo ao fim,
da primeira à ultima linha. Mergulhado. E valeu a pena. Emergi com o
sentimento gostoso da mais pura satisfação: eu tinha lido um grande
romance.
“A espera do nunca mais” divide-se em
três partes, cada parte beirando as trezentas páginas. O todo
alcança quase cem capítulos. Tudo isso espanta e amedronta o leitor
menos avisado. Mas, pode-se garantir, uma vez iniciada a leitura,
não se pára mais. A leitura é um mergulho, eu já disse, e vai às
raízes da gente brasileira, navega pelos meandros da vida nacional e
está à tona em nossos dias que vivemos. Poucas obras vão tão longe,
abrangem tanto, são tão completas. E tão romanescas e tão
verdadeiras.
Basicamente, o cenário é a Amazônia e
a história acontece dos anos 50 aos anos 70 do século XX. Mas aí não
se fixa. Avança, recua, desvia, penetra, divaga, reflete, espairece,
imagina, reflexiona, demonstra, narra e traça um painel completo da
Amazônia, desde seus primórdios até a atualidade e sua agonia. Não é
um romance histórico, mas a História está presente; não é um romance
geográfico, mas a Geografia está presente; não é um romance
folclórico, mas o Folclore está presente; não é um romance mítico,
mas o Mito está presente; não é um romance religioso, mas a Religião
está presente; não é um romance psicológico, mas a Psicologia está
presente; não é um romance sociológico, mas a Sociologia está
presente; não é um romance político, mas a Política está presente;
não é um romance econômico, mas a Economia está presente; não é um
romance ideológico, mas a Ideologia está presente.
Sonho, fantasia e realidade perpassam
a história de ponta a ponta. Os personagens são humanos e fortes, a
gente acompanha as peripécias de cada um e quer ver o desfecho.
Gedeão, Julião e Dora são emblemáticos, junto com Estefano, o
protótipo do conquistador branco. Destacam-se estes, sem diminuir os
outros, que são muitos. Estes, porém, conduzem o fio da narrativa,
sempre tenso, até o desenlace. Cabe à Dora, em final traumático,
manter a chama acesa e assegurar que o sonho continua: Ela faria
diferente; daria aos tapuios algo que ninguém ia poder tomar.
Ensinaria as crianças tapuias a lerem e escreverem, (...),
plantando, assim, na mente das crianças, a semente dos sonhos, para
que elas, ao crescerem, não ficassem como seus pais: À ESPERA DO
NUNCA MAIS.
Este final lembrou-me o final de outro
livro famoso, o “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez.
Com um detalhe, uma gratificação mais forte: a seta apontando o
caminho. Utopia?
Isso depende de nós.
As veredas do romance de Nicodemos
Sena são muitas. Justamente por isso, por serem quase infindas as
veredas, é que surgiu-me com tanta insistência a lembrança da
afirmação de Thomas Mann: Hoje em dia, um romance precisa ser mais
que um romance.
O romance de Nicodemos Sena é bem mais
que um romance: é a própria Amazônia. E é o Brasil e é o Mundo.
*NELSON HOFFMANN é professor, escritor e
crítico gaúcho; autor, entre outros, de “Onde está Maria?”
Leia a obra de Nicodemos Sena
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