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Nelson de Oliveira


 

Desconfio dos místicos.
Desconfio principalmente dos poetas místicos.



O Estado de São Paulo, Brasil

 

O novo trabalho do poeta, tradutor e ensaísta mistura relato autobiográfico e poesia, diário de viagem e preces a Alá - um documentário das diversas incursões que o autor empreendeu aos países e às culturas do Oriente Médio

 

Minha formação intelectual me proíbe de embarcar na retórica do "sublime idealizado" da qual o discurso místico faz uso. O que não me impede de me deliciar com a poesia de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. Mas tendo a ler a produção destes poetas da mesma maneira como leio os mitos gregos e a boa ficção-científica. Como construções da imaginação, nada mais do que isso. E tal postura cética, que se beneficia da "suspensão da descrença" exigida por toda obra ficcional, não deixa de ser uma ofensa à literatura mística, que, independentemente da presença ou não de qualidades estéticas, almeja sempre descrever a Beleza e a Verdade, com inicial maiúscula. Não importa se essa Beleza e essa Verdade sejam a do hinduísmo, do islamismo ou do cristianismo. Importa que extrapolem o texto, que contaminem e doutrinem o leitor.

Os Olhos do Deserto, novo trabalho do poeta, tradutor e ensaísta Marco Lucchesi, é um livro místico. Mistura de relato autobiográfico e poesia, diário de viagem e preces a Alá, este livro é o documentário das diversas incursões que o autor empreendeu aos países e às culturas do Oriente Médio.

Não há um fio condutor único a percorrer todas as seções e capítulos da obra. Há, isso sim, uma unidade mítica, representada ora pelo deserto enquanto local ideal de peregrinação, ora pelo próprio peregrino enquanto representação, para as diversas religiões aqui envolvidas, da condição do ser humano na Terra. É vestindo a pele de peregrino - uma segunda pele sobre a do moderno homem sul-americano, sedentário por tradição - e adotando para si o nome árabe Al-Hajj Abdaljamil - um segundo nome, que poderia ser traduzido por algo como "o que procura o belo para servi-lo" - que Lucchesi propõe-se a verter em conceitos ocidentais o que seria sua busca interior de conhecimento e liberdade.

É aqui que reside o grande descompasso que o livro, resta saber se contra a sua vontade, instaura no leitor de nosso tempo e de nossa cultura.

Descompasso que faz com que eu desconfie mais ainda dos bons poetas místicos, como Jorge de Lima, Murilo Mendes e Adélia Prado. A partir do momento em que a imersão no universo árabe (um dos pólos do Oriente Médio), nos seus mosteiros e mesquitas, nas suas cidades e desertos, e principalmente na sua língua, se transforma, nas mãos habilidosas do autor, num sofisticado relato literário, é inevitável que este queira vencer os próprios limites, que almeje ser muito mais do que mero texto literário. E é isso o que se dá com Os Olhos do Deserto, prosa sofisticada que vislumbra ser muito mais do que um sensível auto-retrato do artista que a concebeu.

Como todo texto místico, o de Lucchesi também quer ser, em vários momentos, revelação e ensinamento.

Lucchesi, durante sua travessia por dunas de areia e gargantas de pedra, invoca os filósofos neoplatônicos e os metafísicos, Leibniz e Novalis, o Oriente primordial, de Apolo e Dioniso, e o Oriente cristão, de Jesus e os apóstolos, além de mais uma centena de referências que funcionam como cortes fulminantes na noite solitária. A fatura das invocações é dupla. Ora resulta em imagens sem originalidade, em clichês como: "Pertenço a estas rochas e estas rochas me pertencem", "Deus é o primeiro poeta a redigir o livro do mundo" e "O deserto tem seus desafios. O deserto tem seus riscos. Suas pequenas mortes. O deserto tem suas vertigens. Como suportar essas forças?"; ora em achados belos e vigorosos como: "Somos logonautas perdidos em mares metafísicos", "Ó dor, não ouses chamar-te dor! Despe-te, dor, de tuas dores!" e "No islamismo reza-se de pé, como uma árvore; de joelhos, como um homem; prostrado, como uma pedra: e assim três reinos se perfazem numa dimensão".

Os Olhos do Deserto, ao alternar ficção e história pessoal, constitui-se em um pequeno avanço se comparado a "Bizâncio" (poema publicado ao lado de outros no volume de mesmo nome, de 1997) porque, num país em que a tradição mística não fincou raízes profundas na alta cultura, é um livro que se arrisca mais a pisar nas armadilhas do terreno bem definido dos gêneros literários. As anotações de Lucchesi são o registro de seu esforço em alcançar uma realidade transcendente, absoluta, realidade esta que estaria em íntima conexão com o mundo físico. O deserto é o plano geográfico ideal, e o turco, o árabe e o persa os idiomas ideais para o exercício da intuição, das emoções e do subjetivismo, única forma de identificação do indivíduo com o Todo ou o Uno. Mas quando tal busca interior envereda pelas sendas da literatura, alguns reparos têm de ser feitos em nome desta mesma literatura.

A meu ver o grande problema de Os Olhos do Deserto e de toda literatura ocidental que desemboca no Oriente é a excessiva idealização do mundo oriental. E Lucchesi comete este pecado quando, por exemplo, narra sua visita ao campo de refugiados do massacre de Sabra e Chatila, em que 1.500 civis foram trucidados pelas milícias cristãs, e às cidades fustigadas pelo conflito entre israelenses e palestinos. O esqueleto dos edifícios destruídos em Beirute, os escombros de igrejas, mesquitas e sinagogas (a lembrar os quadros de Salvador Dali), os carros blindados, as patrulhas civis e militares e a população acossada são representados com o filtro da idealização próprio da prática mística. O leitor não consegue ter acesso direto, por via de uma prosa que teima em ser exótica, aos horrores da guerra. Para tanto, em alguns momentos o autor teria de ter feito uso de uma linguagem mais crua, menos metafórica, mais ligada à esfera do senso comum.

Em razão disso, conseguimos ter acesso tão-só a uma representação harmoniosa dos confrontos e da miséria resultante. Os odores, as excrescências, as mutilações que nascem da carnificina não chegam até nós. Estão além do véu de Maia. O desejo sexual e as funções corporais são outra faceta cara à Vida que poderia ter sido mais visitada pelo narrador-peregrino.

Honesto, o próprio autor se dá conta das limitações do discurso místico, averso ao racionalismo e à analise puramente científica, quando confessa:

"Dependo de minhas forças. E quando as tenho, sonho decisões épicas, e mais não cuido. Mas, se me faltam, sou o último dos seres, perco-me em metáforas." E mais adiante: "Vou condenado por um simulacro. De aumentar a vida em meio-tom. Meio-tom acima. Preso nas malhas de uma supra-realidade."

Por estes lampejos de autoconsciência e pela prosa cuidadosa, bem construída, de Lucchesi, vale a pena vestir-lhe os olhos e observar - como turista acidental, nunca como nômade oriental - o rico deserto da alma palestina.
 



OS OLHOS DO DESERTO, de Marco Lucchesi, Record, 160 págs. R$ 18,00


Nelson de Oliveira é escritor, autor de Subsolo Infinito (Cia das Letras), e mestrado em Letras na USP
 

Marco Lucchesi

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10/03/2005