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Nelson de Oliveira




O melhor que pode acontecer a um croissant, e O porquê de todas as coisas



 

O excêntrico Pablo Tusset nasceu em Barcelona, em 1965, e O melhor que pode acontecer a um croissant, romance policial que já se tornou best-seller internacional, publicado na Espanha em 2001, é o seu primeiro livro. O autor passou a infância em Genebra, adotou um pseudônimo para assinar o livro de estréia — “Tusset porque sou catalão e Pablo porque penso em castelhano” —, foi elogiado por Manuel Vázquez Montalbán e aqui termina o seu currículo. Ficha mais extensa é a do seu conterrâneo, Quim Monzó. Um dos escritores mais prestigiados na Catalunha contemporânea, Monzó também nasceu em Barcelona, em 1952. Sua variada e premiada produção compreende romances, coletâneas de contos, ensaios, traduções, letras de música, roteiros para a tevê e o cinema. Muitos de seus livros já foram traduzidos para diversos idiomas. Apesar disso, O porquê de todas as coisas, lançado em 1993, sucesso de crítica e de público no seu país, tendo sido adaptado para o cinema em 1994, é o primeiro livro de Monzó publicado no Brasil.

O romance de Tusset narra as peripécias de Pablo Miralles, adolescente de trinta e três anos, solteiro, gordo e preguiçoso. Apesar de a sua família pertencer à alta burguesia catalã, Pablo não quer nada com as obrigações que essa privilegiada posição social implica. Mas, cínico ao extremo, as facilidades e regalias proporcionadas por essa mesma posição são sempre reivindicadas por ele. Principalmente o dinheiro do pai e o do irmão mais velho e mais bem-sucedido. Os seus dias são preenchidos com as tolices e as frivolidades com que a maior parte dos adolescentes do planeta está envolvida: dormir até meio-dia, seriados antigos de tevê, bate-papos na internet, cigarros, bebedeiras, drogas e prostitutas. Pablo não leva nada a sério, exceto as regras da desregrada vida vadia. Atribuir aos parentes e aos amigos apelidos engraçadinhos faz parte dessas regras: o pai é chamado de SP (Senhor Pai) e a mãe, de SM (Senhora Mãe); o irmão, sócio majoritário de Pablo na empresa de assessoria financeira Miralles & Miralles, é chamado de The First, e a sua mulher, de Lady First, e assim por diante.

Logo no início dessa história pop, o desaparecimento de The First (seqüestro ou fuga?) dispara a sucessão de perguntas e falsas respostas, perseguições e engodos que levam Pablo ao beco sem saída da Fortaleza e da organização secreta comandada por alguém chamado de Exorcista pelo protagonista. A trama se desenrola e se completa sempre aos tropeços, no ziguezague de um labirinto, como convém à literatura policial. Mas a falta de vigor da narrativa de Tusset se deve mais à frouxidão do gênero ao qual pertence do que à falta de talento do autor. Toda a literatura de gênero — erótica, de suspense, de terror, de ficção científica — parece ter-se esgotado. Também a literatura policial já deu o que tinha que dar. Hoje, até mesmo a paródia dos grandes romances policiais de meados do século XX, estratégia muito usada pelos autores pós-modernos — entre eles Umberto Eco, com O nome da rosa —, já deixou de ter graça. O melhor que pode acontecer a um croissant (a resposta infame está logo na primeira página: “é ser lambuzado de manteiga”) é atordoante, é longo, diverte mas não satisfaz.

Já os trinta contos de Quim Monzó, reunidos em O porquê de todas as coisas, são feitos de matéria mais pura, mais leve. Não me refiro à leveza e à pureza de ordem psicológica, afinal essas narrativas, à sua maneira, apresentam altíssima densidade. Falo da pureza e da leveza gramaticais, sintáticas, lingüísticas. Monzó conta de maneira linear, sem torcer a frase nem a paciência do leitor, as histórias mais mirabolantes. Faz isso esvaziando o fabuloso e o insólito, marcas da sua literatura, de tudo o que possa parecer realista ou verídico, estratégia que o afasta de Kafka e Cortázar, trazendo-o para mais perto do nosso Murilo Rubião. Os contos esquemáticos de Monzó são, na verdade, fábulas contemporâneas. O seu método efabulativo, linear e racional, aproxima-se da rotina de muitos autores que escrevem exclusivamente para o público juvenil. Mas a aproximação pára por aí: as freqüentes cenas picantes ou de mutilação, pois o humor negro também é marca da sua literatura, empurram as coisas e os seus porquês para a esfera do escatológico e do erótico.

Do primeiro ao último conto, o relacionamento afetivo dentro e fora do casamento é praticamente o único tema, desdobrado aqui em dezenas de variações. Há o caso da enfermeira-chefe disposta a mentir para não perder o jantar com o namorado da melhor amiga. Há o desencontro cômico e ao mesmo tempo trágico de Zgdt e Bst, casados há oito anos, no quarto do hotel de uma cidade distante. Há as ruminações sobre o que seria a perfeição no amor, bordadas em silêncio pela mulher fatal e pelo seu parceiro, o homem irresistível. O nome das personagens é assim mesmo, estalidos de língua — Zgdt, Bst, Grmpf, Pti, Bplzznt — ou então puro esquema conceitual, pura fórmula: o homem azul e o homem magenta, a mulher sensata, o homem que não se apaixona nunca, o homem sem entranhas, o homem que durante a infância havia tido certa fé religiosa. O aspecto tragicômico da vida afetiva no mundo civilizado é ressaltado pelo choque entre essas fórmulas, bidimensionais e repetitivas, e a nossa própria vida afetiva, infinitamente mais rica e turbulenta. Como se, até na leitura mais descompromissada, o cotejo inconsciente da ficção com a realidade afetiva do próprio leitor provocasse o curto-circuito estético. Outra função da repetição dos esquemas é apertar o gatilho do cômico. O humor brota sempre do encadeamento de certos módulos, como ocorre nos dois contos mais longo da coletânea, Entre meio-dia e uma e A euforia dos troianos.

O primeiro conto é o divertido diálogo telefônico entre Maria e Jaume — ou seria entre Carme e Joan? —, no qual as falsas suposições e as informações desencontradas transformam a conversa em um samba-do-crioulo-doido. No segundo acompanhamos a queda em curva do homem que durante a infância havia tido certa fé religiosa. Ao longo da narrativa ele é identificado por outros apostos: ora como “o homem que na infância teve certos problemas de adaptação” ora como “o homem que recebeu o primeiro salário aos dezesseis anos” e assim por diante, em ordem cronologicamente crescente. De cidadão bem casado e economicamente estável, vivendo num país democrático, esse homem passa a solitário, vagabundo e aleijado, num país tomado pelos militares. Curiosamente, não há como não se divertir com o azar desse infeliz. Tudo por culpa do autor. Um bom exemplo da verve de Monzó: “Uma vez vendido o carro e feitos os testes pertinentes, o dinheiro que conseguiu dá apenas para pagar os testes necessários para decidir qual braço ortopédico lhe fica bem, braço que fica, então, fora do seu alcance econômico.”

Mas o aspecto mais importante nesses contos, que certamente explica boa parte do carisma da coletânea, é o modo carinhoso com que o autor trata as suas personagens. Sejam elas a garota apaixonada pela vida romântica dos romancistas, o gato e o rato do desenho animado ou o homem obstinado tentando ensinar uma pedra a falar, em nenhum momento ele as abandona ou censura os seus atos tresloucados. Em instante algum ele adota o tom analítico, frio, kafkiano, como que se eximindo da responsabilidade pelas opiniões preconceituosas ou anacrônicas de suas criações. Ele as acompanha aonde quer vão, sem criticar nem debochar da sua condição humana, demasiado humana. Essa cumplicidade cheia de ternura andava mesmo em falta na literatura contemporânea.


O melhor que pode acontecer a um croissant, de Pablo Tusset
Editora W11, 320 páginas

O porquê de todas as coisas, de Quim Monzó
Editora Globo, 168 páginas


 

 

 

 

18/03/2005