Nelson de Oliveira
Prefácio de Coração marginal, de Cida
Sepúlveda
Criaturas que dão medo
São quarenta contos.
Quarenta conflitos íntimos. Quarenta sessões de eletrochoque.
Falar em momentos
epifânicos seria o mais apropriado. Mas ao longo do último
século essa definição já foi usada tantas vezes, que o melhor é
deixá-la de lado. Em vez de quarenta momentos epifânicos, quarenta
crises transcendentes.
Muitas dessas crises
atravessam o território pervertido e angustiado dos sonhos.
As personagens, o
tempo, o espaço e a ação ganham os contornos e a velocidade da
maquinária onírica, graças ao mergulho fragmentado e lírico do
narrador.
Tudo é e não é. Todo
dia pertence à noite. Todo barulho nasce do silêncio.
Movidos pelo caudal
dos impulsos ancestrais, nessas narrativas as pessoas e as suas
circunstâncias se deslocam para o âmago da mais pura subjetividade.
Os protagonistas de
Cida Sepúlveda — Cecília, Lívia, Jasmim, Alessandra, Teresa, Milena,
Beto, Gato, Virgínia — são criaturas que, alheias ao violento fluxo
da revolução industrial, pertencem ainda aos domínios do nosso
passado selvagem.
Pertencem ao
primitivo mundo das fazendas, do campo, das pequenas cidades, das
regiões localizadas na fronteira entre o arcaico e o moderno.
Apesar de dois ou
três desses protagonistas estarem na faculdade e, por isso, muito
próximos da realidade das grandes metrópoles, até mesmo o seu mundo
ainda é o da selva dos nossos antepassados.
Mundo dos afetos
rudes, dos sentimentos ainda não transformados em produto, ainda não
enlatados para a prateleira dos supermercados.
Mundo do sexo
embrutecido, da violência espontânea, da dominação improvisada.
Mundo em que os
vaga-lumes ainda não foram apagados pela luz prateada das tevês.
Mundo em que a velha
vadia mistura-se com os cães e a sujeira.
Mundo de sonos
perigosos, em que o espírito da mãe desmaiada fica a noite toda
preso entre o céu e a terra.
Mundo de casas
abandonadas em estradas desertas, em que a menina cheirosa feito
flor é violentada pelo bicho-papão.
Mundo em que o
ex-guarda da Associação Comercial, fugindo do crime que cometeu,
roda o Brasil inteiro.
Mundo imundo,
medonho, brutal.
Mundo em que o amor,
seja ele de que cor for, tem sempre o seu dia de punhal.
Disso sabem muito
bem Virginia, Milena e Beto, anti-heróis sistematicamente
apunhalados nos contos finais desta coletânea. No conjunto de contos
que, interligados pelo suor da mesma crise afetiva, pode ser lido
também como breve novela.
Na obscuridade dessa
prosa recortada pela poesia, aqui e ali a autora deixa claro outro
aspecto importante da sua ficção.
Sem exagerar nas
pinceladas, ela nos mostra que o choque elétrico que põe em
movimento a sua máquina simbólica é alimentado pela luta de classes.
Nessa hora a
morbidez subjetiva dá lugar, por curto espaço de tempo, aos dramas
da coletividade.
Agora no palco os
miseráveis, os sem-teto, os perseguidos pela ditadura.
Não se trata de
literatura panfletária. Claro que não.
Trata-se de expor os
dois lados da mesma injustiça: a violência de certas pessoas e a
inércia de outras, diante do moedor que triturará a sua carne.
Mas esses momentos
têm a duração certa: ocupam poucos minutos.
Depois vem novamente
o transtorno subjetivo e o narrador nos arrasta de volta para o
fundo do pesadelo primordial.
Fundo que dá medo.
Contos como
Cecília, Os fósforos, A mãe, Boca suja, O narrador, Cinqüenta paus
e A transa (os meus prediletos) não só inquietam. Eles
assustam. Muito mesmo.
São contos de
terror.
Leia Cida Sepúlveda
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