Nelson de Oliveira
O corpo o luxo a obra
(excertos)
Herberto Helder
Em certas estações obsessivas,
insondáveis
pela doçura e a desordem, eu vi
sobre
o barulho dos buracos terrestres
as
caras
engolfadas fulgurando até ao sangue, sua teia
de ossos fechada
por membranas que respiram com luz
própria.
O luxo do espaço é um talento da árvore,
a arte do mundo húmido.
Por dentro da
terra
o ouro cresce
em cadeia. Vi
os flancos suados das casas
contorcendo-se
no fundo
da luz,
onde o dia faz uma ressaca onde
gira a noite com seu tronco de planetas.
Eram
rápidas,
fortes,
espaçosas
as noites do poder. O alimento vinha
com o apuro do mel. O dom
desenvolvia em mim esses mesmos rostos
abertos a meio, com a lua
e o sol dentro e fora.
Lanho a lanho
cerrara-se a carne em seu tecido
redondo.
(…)
Também as mulheres se alumiam
pela abundância, pela
boca até ao fundo, o pêlo que salta,
omoplatas,
mãos redondas, os borbotões
da seda
escoada.
Estas
têm caras ascensionais, magnéticas. Inspira-as
o movimento dos quartos, a matriz
secreta
do ouro afundada entre
a vulva e o coração,
a órbita
das laranjas em torno
da estaca
viva.
A estrela voltaica queimando
a minha obra
morosa afina sombriamente cada cara
soldada
ponto a ponto,
sobre as válvulas, sobre
a luz que se abre e se fecha
na carne
lunar, implacável.
(…)
Vi
dorsos torcerem-se à volta da sua dor.
No meio,
o sorvedouro fazia um laço
de carne. Rodava em torno das válvulas negras
a estrela atômica.
(…)
E é cruel surpreender
a inocência
frenética, a taciturna doçura
com que devora:
às vezes
a força dos rostos que tem contra Deus.
Assim:
o nervo que entrelaça a carne toda,
de estrela a estrela da obra.
22-23.XI.77
Orfeu na multidão
Nelson de Oliveira
1. Lanho a lanho: a alquimia
O poeta Herberto Helder é o melhor exemplo
contemporâneo de artista avesso às homenagens oficiais e à vida
social literária. Em 1982 recusou o prêmio do Pen-Clube de Portugal,
em 1994 recusou o Prêmio Pessoa e em 2000 não compareceu ao Salon du
Livre da França, no qual seria homenageado ao lado de três colegas
de ofício. Há inclusive os que gostariam de vê-lo finalmente
ganhando o Nobel, apenas para conferir se iria abrir mão das
centenas de milhares de dólares. Em 1982 o poeta também proibiu que
se inserissem fotos suas na edição da biografia escrita por Maria de
Fátima Marinho. Idiossincrasias à parte, a recepção crítica da sua
poesia tem sido unânime há mais de cinqüenta anos. Dezenas de
especialistas, dentro e fora das universidades, dentro e fora da
redação dos jornais — sendo raros os que não deixaram vazar o
entusiasmo rasgado —, já analisaram os mais de vinte títulos
lançados por Helder, desde a sua estréia em 1958. O resultado são as
dezenas de livros e as centenas de resenhas publicados em toda a
parte, sobre a poesia, a prosa, as traduções, a teoria estética e a
vida desse autor português. De acordo com os seus comentaristas, a
poética de Helder tem sido sempre a da metamorfose unificadora e a
da transmutação alquímica. A sua poesia é a da totalidade, é a
simbiose absoluta entre todos os seres, é o corpo no qual ocorre a
unificação de tudo o que está disperso. Imersa no delírio xamânico,
a sociedade coisificada não lhe interessa.
Ao menos é isso o que o próprio poeta tem divulgado
em notas, posfácios e entrevistas. Ao menos é isso o que os seus
estudiosos têm difundido. Seria possível, então, falar de poesia
politicamente engajada, ao tratar da poesia de Herberto Helder?
Seria aceitável, a partir da poesia alquímica de Helder, questionar
e ampliar o conceito vigente de engajamento político? Seria
possível falar em discurso presente, mesmo quando o seu enunciado
está fisicamente ausente? Seria possível falar em discursos
fantasmas? Acredito que sim. Creio ser possível seqüestrar e ampliar
o conceito de engajamento político, não com o objetivo de vê-lo
abarcar generosamente também a poesia de Helder, mas com o intuito
de demonstrar que essa poesia, ao recusar a postura panfletária,
consegue ser politicamente muito mais crítica do que, por exemplo, a
de seus contemporâneos neo-realistas: Fernando Namora, José Gomes
Ferreira, Carlos de Oliveira e outros.
Consoante o colofão, a primeira edição d’ O corpo
o luxo a obra, impressa tipograficamente em caracteres Elzevir
(corpo 12), na lisboeta Tipografia Ideal, teve apenas seiscentos
exemplares. O modesto caderno com vinte e quatro páginas grampeadas,
quinze centímetros de altura por dezessete e meio de largura,
contendo o poema escrito por Herberto Helder em novembro de 1977,
foi lançado sem pompa nem circunstância em julho de 1978. Ocupa o
frontispício um desenho de gosto bastante duvidoso, francamente
kitsh, de Carlos Ferreiro. Os duzentos e cinqüenta e dois versos
desse poema compõem o décimo quarto livro publicado pelo autor.
Livro que, ao fundir os contrários para forçar a manifestação da
totalidade, é ao mesmo tempo a cara e a coroa, o fundo e a figura, o
significante e o significado, o sujeito e o objeto, o micro e o
macrocosmo, o obscuro e o luminoso, o feitiço e o enfeitiçado. O
corpo o luxo a obra é o exemplo mais bem-acabado, na longa
carreira de Helder, da fusão xamânica e da transfiguração alquímica
dos diferentes domínios — o mineral, o vegetal, o animal, o humano e
o cósmico — que séculos e séculos de civilização separaram e
catalogaram, ao compartimentarem a nossa mente e o mundo.
Nesse poema exemplar (incluído integralmente na
antologia homônima, lançada há pouco tempo no Brasil pela editora
Iluminuras), Helder persegue com intensa vontade o instante edênico,
o instante pré-babélico, o instante em que as palavras e os objetos
por elas designados eram a mesma coisa, o mesmo eu. Essa obsessão
pela utopia perdida o leva diretamente aos braços do hermetismo de
Hermes Trismegisto: O corpo o luxo a obra é a pedra filosofal
desse poeta nascido em 1930, na Ilha da Madeira, para quem no âmbito
dos valores simbólicos o poema é o corpo da transmutação, da
transformação, da metamorfose. Porém é sabido que a linguagem,
quando transformada pela ação alquímica, afasta-se do código
estabelecido pelo senso comum, deixando de ser compreensível a todas
as pessoas, tornando-se ilegível para a maioria. Mas ilegível
não significa inacessível ou impossível de ser
decodificado. Significa que enunciados sintática e
semanticamente subversivos estão sendo articulados de maneira
proibida pelo código, significa que certo processo de ruptura com a
cultura oficial está desenterrando o esqueleto de outra cultura
ainda mais antiga, até então abafada. É claro que essa estratégia de
desautomatização gera no início angústia e até mesmo incompreensão.
Mas não há por que desesperar. Joaquim Manuel Magalhães, poeta e
ensaísta português, não afirmou à toa: “Herberto Helder é difícil
até para o próprio Herberto Helder, pois a sua linguagem está onde
não chegou ainda a linguagem de todos, que é também a sua.”
O corpo o luxo a obra
abre com uma epígrafe tirada do sexto livro do autor, Húmus,
de 1967. São oito versos nos quais entrelaçam-se a pedra, o ouro, as
palavras, os peixes, a água, os mortos, as árvores e o céu, seres
substantivados sempre presentes na obra de Helder. Aliás, ambos os
poemas apresentam a mesma configuração gráfica. Os versos tanto do
primeiro quanto do segundo ocupam e desocupam a página de maneira
semelhante, formando degraus, ou raízes, pois como observou Maria
Estela Guedes esse arranjo visual faz com que o texto lembre “o modo
como a árvore habita o espaço tridimensional: subterrâneo, terrestre
e aéreo” (em Herberto Helder: poeta obscuro). O livro
encerra-se com uma nota do autor, na qual este justifica o poema que
a antecede, citando a clássica Tábua de esmeralda, de Hermes
Trismegisto (“É verdade, sem engano, certo e real: o que está no
alto é como o que está embaixo e o que está embaixo é como o que
está no alto”), e reforçando o seu percurso estético: “A
transmutação é o fundamento geral e universal do mundo, ela alcança
as coisas, os animais e o homem com o seu corpo e a sua linguagem.”
Diferente do que o título sugere, o corpo, o luxo e a
obra não são os únicos temas do poema. A cadeia temática é na
verdade composta de seis células: as três precedentes e, além
dessas, a árvore, a Terra e o cosmo. O corpo surge ora por inteiro
ora metonimicamente: os dedos, as mãos, os braços, os ossos, o
coração, a vulva, as membranas, o rosto, o sangue, os rins, a
uretra, a garganta, as omoplatas, os pulmões, as veias, as artérias,
as espáduas e os músculos. O luxo aparece sempre na forma do ouro.
Se para os antigos a alquimia era a operação simbólica que
transformava os metais menos nobres em ouro, para Helder ela é a
operação poética que arranca o cidadão sonolento da trama da
sociedade reificada e o reintegra ao mundo original. Se para os
antigos encontrar a pedra filosofal era descobrir o Absoluto, era
possuir o pleno entendimento do cosmo, para Helder encontrar o poema
fundamental é rever, depois de milhares de anos de ausência, a
linguagem essencial, a representação verbal do mundo enquanto
Espírito. O ouro, segundo os textos védicos, representa a
imortalidade da alma. O poema, segundo Helder, é o resumo possível
da eternidade, é a menor fração do irresumível. Já a obra, citada
apenas três vezes ao longo do poema, é o resultado da violenta
mistura do corpo, do ouro e da árvore, sob o signo harmônico da
Terra e das estrelas.
Para que funcione, a utopia órfica de Helder depende
totalmente da tautologia, da repetição áspera de determinados
motivos, como ocorria tempos atrás com as profecias apocalípticas,
como ocorre ainda hoje com os relatos míticos dos povos tribais, com
a cantilena dos pajés, dos feiticeiros e dos xamãs. O corpo o
luxo a obra não tem enredo, não apresenta discurso linear. O seu
lirismo exacerbado é elíptico. Os mesmo seis temas mencionados vão e
vêm, conectando-se de maneiras variadas, desconectando-se,
repetindo-se infinitamente. O poder mimético que dá vida ao poema
cola ao corpo humano as diversas formas de vida existentes na
natureza. O corpo se confunde com os minerais, as plantas, os
animais e as estrelas, porque se entranha neles através do processo
metamórfico da poesia. O tema do corpo identifica-se com o da
árvore, sendo que a árvore funciona como o axis mundi, o eixo do
mundo, o cabo de aço que liga o alto e o baixo. Duplicando essa
idéia, o corpo ereto e de braços abertos, fulcro da condensação de
forças distintas, assume exatamente a mesma dimensão simbólica: ele
é a cruz, o tronco vertical que aponta para os quatro pontos
cardeais e ao mesmo tempo liga os dois domínios, a terra e o céu.
Porém a árvore da existência, cujos extremos são o feminino e o
masculino, abre-se à mais ampla significação erótica, visto
condensar as duas trajetórias perpendiculares do destino humano: a
vida, erguendo-se verticalmente da raiz ao fruto, e a morte, de que
se alimenta ao absorver e reciclar a matéria orgânica subterrânea.
As artérias por onde passa a seiva vão estabelecer os laços
indissolúveis entre Eros e Tanatos, ou seja, entre os vivos e os
mortos.
A violenta mistura do corpo, do ouro e da árvore, sob
a influência da Terra e das estrelas, é dolorosa: “Lanho a lanho /
cerrara-se a carne em seu tecido / redondo”, “E o golpe que me abre
desde a uretra / à garganta / brilha / como o abismo venoso da
terra”, “Vi / dorsos torcerem-se à volta da sua dor”. O sangue
jorra, a carne arde, respirar dói: “Tudo faísca: a fruta / que se
apanha, o feixe / vertebral, os orifícios de sangue / entre os poros
/ da madeira”. Componente inseparável dessa dor é o cadáver ao qual
o corpo saudável é fundido. Levando-se em conta as muitas vezes que
surgem no poema, os mortos poderiam ser certamente a sua sétima
célula temática. O espelho, a oitava, pela mesma razão.
O luxo a que o poema se refere é de fato o ouro: a
radical subversão da linguagem utilitária. Contra esse tipo banal e
burocrático de linguagem avança o artefato mais inútil já criado
pelo homem: a própria poesia. No seu estudo sobre O corpo o luxo
a obra são os demolidores discursos de Breton que Maria Estela
Guedes recupera ao afirmar: “A obra transmutatória, por exemplo,
pode ser encarada como luxo, por incidir essencialmente no domínio
do individual e do particular: o sujeito e a sua linguagem. Mas na
verdade o poeta só pode inserir-se no processo metamórfico geral e
universal através da sua própria transformação corporal: a
transformação do pensamento e conseqüentemente da linguagem. Só na
medida em que o poeta atua transformadoramente no seio da matéria
verbal pode ele transformar as suas estruturas de pensamento e agir,
através dessa metamorfose, no espaço da linguagem e do pensamento
sociais. As revoluções só podem vingar a partir da alteração do
sistema de pensamento, que é o mesmo que dizer, a partir da
revolução da linguagem.”
2. Poesia engajada?
Todo poema, por mais abstrato que seja — mesmo o
poema mais afetado pelo murmúrio da linguagem transmental (zaúm) de
Khlébnikov ou pelo ruidoso claro-escuro da pesquisa verbivocovisual
dos concretistas —, aponta para a realidade palpável da circulação
de mercadorias. Todo poema, inclusive os inúmeros poemas
pertencentes à extensa e hermética obra de Herberto Helder, indica,
muitas vezes de modo acusador, a rotina doméstica, o guia de tevê, o
bilhete do metrô, as contas do final do mês, a lista do
supermercado, em resumo, o nosso burocrático cotidiano burguês. Mas
essa constatação parece impor-se de maneira bastante constrangedora.
Afinal, cem anos de sofisticada crítica literária estão aí
justamente para demonstrar que a grande poesia é constituída de
tantas camadas quanto o macrocosmo de Einstein e o microcosmo de
Heisenberg. Cem anos de lingüística, psicanálise, formalismo russo,
semiologia, semiótica, new criticism, estruturalismo, fenomenologia,
teoria da recepção, new historicism estão aí justamente para provar
que o poema é em primeiro lugar um objeto entre outros objetos, algo
cuja principal função é referir-se a si mesmo, às suas próprias
leis, não às leis externas que regem a sociedade ou a mente que o
gerou. Enquanto a poesia mais discursiva discorre diretamente, sem
pudor algum, sobre os infinitos aspectos da realidade social — o
amor, a morte, Deus, o diabo, a luta de classes, a própria arte
poética —, a poesia hermética, ao falar apenas do que está situado
para além do horizonte do senso comum, procura fugir da experiência
trivial e mesquinha do cotidiano.
A arte que vai de Góngora a Herberto Helder, passando
por Hölderlin, Mallarmé e Jorge de Lima, é a concretização desse
impulso irresistível, desse desejo de escapar a todo custo da
banalidade do homem médio. Porém, como nada no mundo escapa ao
demônio da dialética, essa concretização jamais é perfeita. Quanto
mais distante da realidade, mais a realidade está presente nos
espaços vazios que a sua ausência deixou no poema. Se esse fenômeno
não é claramente perceptível na enigmática poesia de Góngora,
Hölderlin, Mallarmé e Jorge de Lima, na de Herberto Helder é ele que
primeiro sacode todos os nossos sentidos. A razão disso é bastante
simples: o abandono das formas fixas (soneto, ode, elegia, epopéia)
e a elasticidade do verso livre, característicos da poesia de Helder
e de outros visionários aparentados, faz com que a atenção do
leitor, em vez de se envolver com os efeitos sensorias provocados
pela métrica e pela rima, caia diretamente no sentido do enunciado.
Ou, melhor dizendo, na falta de sentido do enunciado.
Essa percepção ocorreu-me de maneira intuitiva
durante a leitura de vários poemas de Herberto Helder, mas jamais
chegou a se cristalizar na noção clara e irrefutável de
adjacência ideológica, noção que aproxima duas esferas tão
distintas e antagônicas: a do senso comum e a da poesia hermética.
Somente ao ler o comentário que Antonio Candido faz na abertura da
sua análise do poema O pastor pianista, de Murilo Mendes, foi
que a ficha caiu. Bingo. A percepção solidificou-se e agora me serve
de base de lançamento, a partir de onde enviarei novas sondas em
direção a’O corpo o luxo a obra, de Helder. Candido diz:
“Quando enfrentamos um poema segundo a versificação tradicional,
devidamente metrificado e rimado, a análise tende a se apoiar nas
características aparentes, que definem a fisionomia poética. Metro,
rima, ritmo, cesura, divisão em estrofes atraem logo a atenção e,
servindo para trabalhar o texto em certo nível, podem induzir o
analista a não ir mais longe, e a não tirar deles o que podem
realmente significar. Como se viu nas análises anteriores,
esses elementos materiais do poema são portadores de sentidos
que contribuem para o significado final. Mas quando se trata de um
poema não-convencional, isto é, sem métrica nem rima, sem pausa
obrigatória nem lei de gênero, a camada aparente parece não
existir, ou não tem importância, e nós somos jogados diretamente no
nível do significado. No entanto seria erro supor que um poema
desses não tenha organização. Mesmo que os recursos convencionais de
formalização sejam descartados, os códigos continuam a existir. Na
análise de um poema livre, o objetivo inicial é a própria
articulação da linguagem poética — fato mais geral e durável do que
as técnicas contingentes que a disciplinam nos vários momentos da
história da poesia.”
Helder, à maneira de Murilo, não só descartou a
métrica, a rima e os demais elementos constituintes das formas
clássicas da poesia, como também baniu do seu trabalho as
associações lógicas e a coerência aristotélico-cartesiana. No seu
jardim grotesco, o poeta lusitano — da mesma maneira que Murilo e,
antes dele, os poetas surrealistas — vem, desde O amor em visita
(1958), cultivando somente os nexos descabidos e as incongruências
sintáticas e semânticas. São justamente esses nexos e essas
incongruências que nos atraem de imediato, que prendem a nossa
atenção, por configurarem a única camada palpável (“o nível do
significado” mencionado por Candido) de poemas como O corpo o
luxo e obra e de tantos outros. Essa camada, cujo cimento não é
o mesmo da escrita automática, por incorporar as sucessivas revisões
e correções do texto proíbidas na técnica da escrita automática,
apesar disso também é composta unicamente de imagens (na
concepção de Pierre Reverdy). Ou seja, trata-se, no jargão
surrealista, da aproximação quase fortuita de duas ou mais
realidades razoavelmente distanciadas. Versos como “Vi / a massa
arterial das casas / contorcendo-se / no fundo / da luz” ou “E o
golpe que me abre desde a uretra / à garganta / brilha / como o
abismo venoso da terra”, característicos de Helder, são junções de
realidades lingüísticas mais ou menos distantes (casas não têm massa
arterial, a luz não possui fundo, golpes e abismos não brilham),
cuja conexão range e chia, como quando introduzimos a chave errada
na fechadura errada. Mas essa aproximação de termos originários de
esferas distintas, de palavras semanticamente incompatíveis, produz
outro fenômeno curioso: os termos de domínios afastados acusam a
ausência das palavras corretas, sem valor poético, que
deveriam estar ocupando o seu lugar de direito. Ou, como diz
Candido: “A combinação se torna poética no nível lingüístico devido
à seleção: no caso, ela instaura o impossível lógico, inesperado e
incongruente, mas transfigurador. A palavra escolhida carreia para a
frase resultante as conotações abafadas de outras palavras que
poderiam ter sido preferidas (e seriam poeticamente possíveis nos
contextos adequados), mas acabaram virtualmente postas de lado, como
alternativas rejeitadas.”
Aqui cabe a similaridade com certo objeto celeste. Os
astrônomos que ocupam o seu tempo caçando buracos negros sabem que
não devem apontar os seus instrumentos para o objeto que procuram,
pois ele não emite sinais perceptíveis. A única maneira de
detectá-lo, de comprovar a sua presença, é medindo o transtorno
gravitacional que ele provoca ao seu redor, nas estrelas e nos
planetas das imediações. O poema alquímico de Herberto Helder
funciona de maneira semelhante: ele acusa a banalidade do cotidiano,
a mediocridade da política nacional e internacional, a imbecilidade
dominante nas escolas e até nas instituições artísticas, as
injustiças sociais e as dores da infindável luta de classes,
simplesmente não falando de nada disso. Poemas como O corpo o
luxo a obra reinventam a imagem de Pierre Reverdy e dos
surrealistas, potencializando-a. Continuamos com a aproximação quase
fortuita de duas ou mais realidades razoavelmente distanciadas.
Porém algo novo está acontecendo: muito do que não é aproximado
continua sendo percebido, agora, pela sua ausência, pelo transtorno
gravitacional que provoca ao seu redor. A realidade circundande, as
circunstâncias históricas do poeta, o aqui-agora da existência
sócio-econômica, tudo isso são os elementos contrastantes, da esfera
não-poética, cujo lugar vago, no poema, revela aos gritos a sua
ausência.
Assim a passos largos chegamos a Theodor Adorno, para
quem a verdadeira poesia jamais deve se curvar à alienação imposta
pela práxis dominante. Isso fica claro na sofisticada Palestra
sobre lírica e sociedade, cujas linhas gerais permeiam a aula de
Antonio Candido sobre Murilo Mendes: “As mais altas composições
líricas são aquelas nas quais o sujeito, sem qualquer resíduo da
mera matéria, soa na linguagem, até que a própria linguagem ganha
voz. O auto-esquecimento do sujeito, que se entrega à linguagem como
a algo objetivo, é o mesmo que o caráter imediato e involuntário de
sua expressão: assim a linguagem estabelece a mediação entre lírica
e sociedade no que há de mais intrínseco. Por isso a lírica se
mostra mais profundamente assegurada, em termos sociais, ali onde
não fala conforme o gosto da sociedade, ali onde não comunica nada,
mas sim onde o sujeito, alcançando a expressão feliz, chega a uma
sintonia com a própria linguagem, seguindo o caminho que ela mesma
gostaria de seguir.”
Examinar poemas exacerbadamente líricos,
aparentemente distantes da realidade social, como obras capazes de
provocar grandes impactos políticos, essa foi a especialidade de
Adorno. O pensador alemão acreditava que, ao abordar a pura
subjetividade, a mais alta individualidade, todo poema é capaz de
apontar elementos referentes à coletividade: essa seria a função
social da lírica. O corpo o luxo a obra, na medida em que é
lido como fuga mística de certa organização social hostil e
opressiva, só faz confirmar esse pressuposto. A fuga e a ausência
são aqui sinais de protesto e presença. A tensão interna do poema de
Helder só é significativa quando relacionada com a tensão externa,
com os eventos coletivos. O corpo o luxo a obra, ao provocar
choques semânticos, perturbações no código, transtornos de recepção,
produz o necessário estranhamento crítico que deve reger as
condições de percepção da realidade social: o positivo passa a ser
percebido pelo seu negativo. Transmutar a poesia em crítica tem sido
a tarefa de muitos alquimistas contemporânos. É muito relevante,
nesse ponto, a observação feita por Adorno sobre o paradoxo
constitutivo da crítica cultural. Segundo o pensador alemão, pelo
fato de toda atividade crítica ser exercida dentro de determinado
sistema cultural, quando o intelectual se dedica a essa atividade
ele necessariamente incorpora, quer queira ou não, elementos do
sistema de que faz parte e a respeito do qual se posiciona
criticamente. O paradoxo consiste no fato de o crítico estar dentro
do sistema que pretende criticar. Portanto toda crítica desse
sistema será também a crítica de si mesmo. Nos termos da poesia de
Helder: o corpo está fundido no espírito que pretende entender, e
vice-versa. Ainda para Adorno, o crítico dialético da cultura deve
participar e não participar da cultura, só assim ele consegue fazer
justiça ao seu objeto de estudo e a si mesmo. Seguindo a mesma
trilha, para Helder o poeta dialético deve participar e não
participar da sociedade, só assim ele consegue transmutá-la, mesmo
que minimamente.
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